A pandemia não cessou e seu pior momento sempre se renova. Sobretudo nas terras de cá, em que sempre foi tratada com incúria. O Brasil de 2021, em apenas quatro meses, perdeu mais vidas humanas vítimas da Covid-19 — e, está claro, da negligência voluntária de setores do governo federal — do que em todo o ano de 2020. Com tamanha tragédia, é preciso exercitar a sensibilidade para não se deixar contaminar pela indiferença diante das milhares de crianças órfãs, das mães sem filhos, das pessoas viúvas, dos amigos sem pares, da falta de ar, do asfixiamento e das inumeráveis existências brasileiras ceifadas pelo novo coronavírus e pelo que, sobretudo, deixa-se de fazer no combate a essa pandemia.

            Caminhamos a passos largos numa espécie de competição pelo recorde mundial de óbitos, em direção à marca de meio milhão de vidas perdidas. Caminhamos, assim mesmo, na primeira pessoa do plural, porque embora a autoridade máxima do país se esforce para obstruir medidas restritivas, para transformar máscara de proteção em acessório facultativo, para fazer valer a “vontade individual” de tomar ou não vacina, a pandemia continua sendo uma questão de ordem sanitária e, portanto, pública. Coletiva. Após o primeiro aniversário do novo coronavírus, é certo dizer que responsabilidade individual não basta para aliviar os danos e as perdas de um vírus tão contagioso quanto letal.

            Para quem sobreviveu, atento e forte, ao primeiro ano de pandemia, é difícil acreditar em reles irresponsabilidade ou simples ignorância. Lembrando o filósofo francês Michel Foucault e seu conceito de biopoder, isto é, o poder de controle da vida, expressão máxima da soberania, o chefe de Estado brasileiro parece mais interessado em deixar morrer sua população do que em fazê-la (sobre)viver. Em verdade, diante de seus apelos e discursos controversos e de sua política contrária aos protocolos mínimos de segurança defendidos pelas comunidades científicas de saúde, não soa inapropriado definir essa política como a do “fazer morrer”. Pode-se lembrar, também, da necropolítica conceituada pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, isto é, o poder sobre a vida se eleva à categoria de poder sobre a morte — talvez essa seja a faceta mais perversa da pandemia no Brasil.

             O embate travado pela esfera federal não é contra o vírus, que não passa de uma “gripezinha” com algumas “mortes necessárias”. A guerra é declarada contra os governadores e prefeitos que se prontificam a fazer o que lhes é de dever — cumprir medidas restritivas e viabilizar políticas públicas que permitam o exercício da quarentena. No Ministério da Saúde há dança de cadeiras, egos inflados, que transformam a peste em entrave político e a saúde pública em arena bélica. Às custas desta guerra, como em todas, o massacre. Para quem tiver sorte, o luto.

              Mas as pessoas da sala de jantar estão por demais ocupadas para se preocuparem com a vida — dos outros. Frente à esperança renovada pela vacina, renovam-se os absurdos e escândalos: aplicações falsas, falta e, até mesmo, desvio de recursos, fura-filas. Aos “civis” a vacina chega bem devagar. E perante uma crise sanitária na qual as regras são ditadas pela (falta de) consciência de cada um, nossos limites éticos vão sendo desafiados na medida em que nossa sobrevivência é igualmente testada.

         E, assim, seguem hospitais sem leito, sem intubadores, sem remédios, sem oxigênio e com profissionais esgotados. O leite condensado que escorre do Palácio da Alvorada mistura-se ao necrochorume que encharca estes solos. Outras pandemias já foram experimentadas e superadas pela humanidade. Caberá aos historiadores desvendarem o ineditismo da peste do coronavírus, gerido pela política de morte em sua forma mais escrachada? Machado de Assis escreveu que a sandice está por aí, e, de acordo com a Razão, o que ela quer “é passar mansamente do sótão à sala de jantar, daí à de visitas e ao resto”.

 Imagem:  @studio.zec

2 comentários sobre “EDITORIAL – A tragédia de meio milhão

  1. Não podemos baixar a guarda. Temos que fazer a nossa parte. Tenho uma amiga, dentista, que já recebeu a segunda dose da vacina há 50 dias. Infelizmente, adquiriu a doença novamente, assim como o marido e a filha! Possivelmente, terá sintomas fracos, mas, mesmo assim, é preocupante. Só quem não se importa é esse maluco que ocupa a presidência!

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