“A escritora brasileira contemporânea, a partir da sua acosmia, retira as mulheres dos confinamentos e as colocam em movimento, promovendo a visibilidade de novos papéis típicos de tempos feministas, estamos falando de um outro contexto. Tenho dados concretos que mostram isso”.

 

Lúcia Osana Zolin possui graduação em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (1987), mestrado em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1994), doutorado em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2001) e pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007). Compõe o corpo docente do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura de autoria feminina, crítica literária feminista, personagem feminina e representação de identidades. Tem livros, capítulos de livros e artigos publicados sobre os temas referidos. É líder do Grupo de Pesquisa Literatura de autoria feminina brasileira – LAFEB; e integra o Grupo de Pesquisa em Literatura Brasileira Contemporânea – GELBC. Em 3 de outubro de 2022, em entrevista-aula concedida a O Consoante, intitulada “De escolhas inclusivas e estratégias de subversão: aspectos da literatura de autoria feminina contemporânea”, a Prof. Dra. Lúcia Zolin promoveu reflexões sobre a construção literária de autoria feminina brasileira e o lugar que essa literatura ocupa hoje, a destacar as realizações das autoras durante os anos, que parágrafo a parágrafo e verso a verso, conquistaram o direito que já lhes deveria pertencer: serem lidas.

 

por Anna Larissa Mota, Carlos Cunha, Fabiana Floss, Fernanda Garcia Cassiano, Izabelle Diniz da Silva, Neil Franco e Thays Pretti (part. especial).

 

O Consoante: A literatura no Brasil tem seguido às demandas de uma sociedade fundamentada no patriarcado e de características extremamente machistas, contribuindo, por exemplo, para a manutenção da leitura dos mesmos autores, predominantemente masculinos e consagrados como cânones. Esse contexto acaba por excluir o protagonismo da mulher tanto no fazer desta arte quanto no arquétipo de sua representação em papéis que proliferam uma imagem de submissão e necessidade de proteção. Na sua percepção, de que forma a educação pode atuar como ferramenta para mudar essa realidade, essa verdade construída?

Lúcia Zolin: Como o universo literário sempre foi masculino, os grandes nomes do cânone ocidental, que segundo a crítica deveriam ser lidos por todos/as, sempre foram masculinos. Harold Bloom, um dos mais influentes críticos literários norte-americanos, argumenta que se vivemos em média 70 anos, não temos tempo para ler tudo o que há, temos que fazer escolhas em nome do “estético”; e o “estético”, como bem se sabe, sempre foi circunscrito pelo homem branco ocidental. Segundo ele, não há que se gastar nosso precioso tempo lendo “subliteratura” para fazer justiça social.

No Brasil não foi diferente, nosso sistema literário foi edificado no contexto do Romantismo a partir das vozes masculinas que conseguiram ser ouvidas e legitimadas, por razões pontuais da época, como a necessidade de construção de um rosto para a nação recém independente de Portugal. Os escritores, ávidos por desempenharem essa tarefa, construíram uma literatura a partir da perspectiva patriarcal que reinava absoluta no contexto do Romantismo. Coube aos ilustres homens das letras a responsabilidade de construir a nação, idealizando nossos heróis em caráter, temperamento e valores, consolidando costumes – os papéis tradicionais de gênero foram reafirmados como se não houvesse outra possibilidade. Neste contexto, às mulheres não cabia o fazer literário, a elas era adequado apenas cuidar do lar, marido e filhos com recato, obediência e silêncio. Em seu silêncio, quando muito, podiam ler textos escritos pelos homens – em que eram representadas conforme padrões exigidos para as mulheres no contexto da segunda metade do século XIX. Vale ressaltar que as representações de mulheres subversivas à ordem vigente contavam sempre com exemplares punições, como exclusão social, loucura ou morte. É o que acontece em Iracema e Lucíola, de José de Alencar.

Diante disso tudo, eu não tenho dúvidas de que só por meio da educação se pode impulsionar a mudança desse estado de coisas. A educação alarga os horizontes e instiga a desconfiança a respeito da suposta naturalidade dessas relações hierarquizadas de gênero, não apenas as relações representadas na literatura canônica, mas também as vivenciadas fora dela – decidindo inclusive quem pode ou não fazer literatura. Apenas por meio da educação é possível explicitar o quanto é arbitrária a estrutura binária dominação masculina X subjugação feminina. É só a partir do conhecimento que se torna possível compreender os processos de naturalização de convenções sociais que foram construídas segundo os interesses das instâncias de poder. É também por meio do conhecimento que acontece a desmistificação da arte literária, permitindo entendê-la como um discurso que pode, sim, representar pessoas comuns em sua diversidade, alargando os horizontes de representatividades. Trata-se de dar a conhecer outras palavras para além daquelas que figuram no cânone (como a de mulheres, a de etnias não-brancas, a de pessoas LGBTQIA+), capazes de fazer os/as leitores/as se sentirem representados/as em textos escritos a partir de outras óticas, cuja heterogeneidade promove as tão desejadas mudanças de mentalidades de que falamos quando o assunto é literatura de mulheres.

OC: No texto: “Um retrato do romance brasileiro contemporâneo de autoria feminina”, você afirma que o campo literário é um lugar de disputa pelo direito de expressão. Nessa disputa, qual seria, do seu ponto de vista, o espaço conquistado pelas escritoras contemporâneas no campo literário brasileiro?

LZ: Não seria exagerado dizer que a principal meta dos escritores e das escritoras é fazer com que suas obras sejam integradas ao campo literário, ou seja, que sejam publicadas, vendidas, lidas, debatidas, estudadas e citadas. A pesquisa intitulada “A personagem do romance brasileiro contemporâneo – 1990-2004” desenvolvida pela professora Regina Dalcastagnè (2005), citada no artigo referido, comprova que os homens ocupam majoritariamente o campo literário brasileiro, haja vista que mais de 70% dos/as autores/as publicados/as pelas grandes editoras brasileiras são do sexo masculino e, além disso, são majoritariamente brancos/as, integrantes das classes mais elevadas, membros da elite intelectual e moradores de grandes centros urbanos.

Mesmo assim, os menos de 30% de escritoras que conseguiram romper as muitas interdições dessas importantes casas editoriais e finalmente se inserirem no campo literário brasileiro representam uma grande conquista. Claro que para conquistar os espaços tão disputados dessas grandes editorias – que fazem os textos circularem, aparecerem nas livrarias e serem divulgados nos grandes jornais, sites e rankings – essas escritoras precisavam contar, no mínimo, com as mesmas condições socioculturais dos escritores que lá estavam desde há muito tempo: elas integram, como eles, a elite intelectual e a etnia hegemônica brasileiras, além de se situarem nos estratos socioeconômicos mais elevados, conforme mostram os resultados da pesquisa “Literatura de autoria feminina: escolhas inclusivas?”, coordenada por mim na UEM. Não nos parece casual o fato de serem essas escritoras as primeiras a adentrarem as grandes casas editoriais brasileiras, e não outras que se encontram à margem desses meios. Ainda que, muito provavelmente, para alcançarem esse patamar, tenham tido que superar inúmeros obstáculos, o fato é que sendo quem são, tiveram mais oportunidades que outras mulheres situadas fora desse circuito.

OC: Na sua opinião, quais são as forças que mais impõem dificuldade à inserção de mulheres plurais na literatura brasileira?

LZ:  Essa é uma questão bem complexa. A gente precisa intensificar os debates sobre esse tema. O campo literário é regulado por forças e poderes de ordem diversa. Nem sempre os critérios são democráticos. Por exemplo, tomando apenas o texto literário como foco, muitas vezes, um desses critérios é o prestígio daquele ou daquela que escreve. Pode-se dizer que o campo literário é constituído de vozes autorizadas e vozes não-autorizadas. Como costuma-se falar muito, existem alguns espaços em que nem todos/as podem adentrar, embora eles não exibam uma placa de proibição. Há uma espécie de código de interdição implícito, seja porque não se está com a roupa ideal, seja porque não se tem, ou não se parece ter o status necessário à compatibilidade com o lugar. Uma pessoa comum pode até estar passeando, por exemplo, na frente de uma loja de grife, mas a figura do segurança engravatado, parado ante a porta fechada, com ar grave, analisando-a de cima a baixo logo a faz perceber que não é bem-vinda ali –  “não posso entrar, isso é interditado para mim”. O campo literário também é assim. No caso da literatura de autoria feminina, a gente sabe que as vozes autorizadas são aquelas chanceladas pela academia, pelo mercado editorial, pelas mídias hegemônicas etc.  Para circular no campo, as escritoras precisam, de alguma forma, contar com o aval dessas instâncias.

Os resultados da pesquisa “Literatura de autoria feminina: escolhas inclusivas?” ajudam a compreender esse quadro. Trata-se de uma pesquisa que levou vários anos para ser concluída e envolveu uma equipe muito empenhada de orientandos/as –  alguns trabalharam comigo desde a iniciação científica, passando pelo mestrado e pelo doutorado – e também de egressos que já estão inseridos no mercado de trabalho. Pesquisamos detalhadamente um corpus de 151 romances escritos por mulheres e publicados por três grandes editoras, entre os anos 2000 e 2015. Esse é o recorte editorial e temporal da pesquisa. Os dados levantados demonstram que conseguiram, não sem muito esforço, receber o “crachá” de escritora autorizada a publicar nessas editoras, e terem seus nomes integrando as listas de literatas importantes, as mulheres que, não por acaso, são intelectuais, brancas, e bem situadas espacial e socialmente.

E não é muito difícil a gente entender esse quadro: existe todo um mecanismo estrutural, uma série de interdições que essas escritoras conseguiram ir vencendo, tendo em vista o conhecimento que elas acumularam, o lugar em que elas trabalham, a classe social a que pertencem, os contatos que elas conseguiram fazer e assim por diante. Outras escritoras menos influentes, aquelas marcadas pela intersecção de múltiplos eixos de diferenciação, além do gênero, são mulheres também e escrevem, mas se deparam com uma gama maior de dificuldades, como, por exemplo, a de classe social, a de cor da pele, a de localização geográfica. Onde é, por exemplo, que elas moram? Num local distante lá no Nordeste ou no Sul, Sudeste do Brasil? Dentro das cidades, elas moram na região central ou nas periferias? Quais espaços culturais frequentam? E as escritoras negras? Em quais tribunas foram convidadas a falar? Esses são eixos que vão se interseccionando e se somando à questão da autoria. Esses eixos todos tornam essas mulheres sujeitas a toda a sorte de esquemas de poder que as classificam subliminarmente como vozes não autorizadas. Não integram o grupo das mulheres brancas intelectualizadas, muitas delas professoras universitárias ou escritoras profissionais que já vivem da literatura, já caminharam um longo percurso de estrada, já participaram de tantas outras coisas… Ainda assim, elas tiveram que enfrentar muitas interdições pelo simples fato de serem mulheres. Tiveram que ir construindo aos poucos esse espaço que ocupam. Elas são, sim, vozes autorizadas, enquanto outras tantas são vozes não autorizadas e terão que se empenhar muito mais.

Trata-se de uma estrutura de poder tão bem solidificada que faz parecer natural e até óbvia a classificação das pessoas que podem e as que não podem se aventurar pelo universo literário. No caso das mulheres, o gênero é apenas o primeiro aspecto que motiva essa interdição. Como dissemos, o universo literário é masculino, tradicionalmente masculino, sempre foi masculino, mas a interdição de gênero é apenas um dado seguido dos muitos outros que mencionei, como classe social, cor da pele, etnia e assim por diante.  Antes de as mulheres negras conseguirem dar a público os seus escritos, elas precisam vencer a questão da interdição racial, como se a cor da pele, por si só, pudesse classificar suas vozes como sendo “não autorizadas”. O mesmo acontece com as moradoras das periferias. Essas mulheres, antes de mais nada, precisam conseguir desassociar sua capacidade intelectual de sua condição social para provar que elas podem escrever literatura. Também o fato de as mulheres não possuírem grau superior de ensino ou pós-graduação faz com que primeiro elas precisem provar que tal fato não as impede de escrever literatura. Nessas e em muitas outras circunstâncias, as mulheres que escrevem precisam brigar primeiro pelo direito de escrever, tornando mais complicada suas trajetórias literárias.

Por outro lado, nós estamos inseridos/as em um contexto em que questões de identidade e de diferença estão sendo debatidas com muita intensidade. Grupos sociais historicamente marginalizados, subalternizados, estão reivindicando o direito de falar, de ocupar um lugar na sociedade, estão problematizando as práticas de poder responsáveis por sua exclusão, estão denunciando abusos… ainda que precisem gritar mais alto, nessa espécie de campo de batalha, para se fazerem visíveis e terem sua perspectiva estético-ideológica integrada ao que se entende por Literatura Brasileira.

OC: Dalcastagnè (2005, p. 27) destaca que o romance contemporâneo em geral, mesmo representando a mulher mais presente em outros espaços da vida pública, ainda continua “a privilegiar a associação entre a figura feminina, o lar e a família”.  Em sua percepção como pesquisadora do tema, quais são os motivos para que isso ocorra e, complementarmente, você acha que é possível mudar esse cenário de alguma forma?”

LZ: A questão fundamental colocada, aqui, é a informação que a pesquisa desenvolvida por Regina Dalcastagnè traz de que a mulher representada na literatura ainda está associada com a figura feminina, o lar e a família. É preciso contextualizar que a pesquisa da Professora Dalcastagnè foi desenvolvida com mais de 250 romances, publicados entre os anos de 1990 e 2004, por escritores (70%) e por escritoras (30%). Como a perspectiva autoral é predominantemente masculina, os dados levantados, parecem revelar as marcas da tradição patriarcal, em que os papéis tradicionais femininos são associados aos cuidados da família, da casa e os masculinos ao mundo lá fora. As personagens representadas tendem a estar associadas, mesmo em romances publicados agora a partir dos anos 2000, com essa visão da mulher voltada para o lar e do homem transitando por espaços múltiplos. Quando atentamos para o fato de que a maioria das vozes representadas nessa pesquisa são masculinas, entendemos o porquê de isso acontecer.

A questão da perspectiva de onde emana o texto pode explicar isso, quem está por trás desse texto? Qual é a sua visão de mundo? Não faz muito tempo que tomei conhecimento de uma terminologia, por meio de uma orientanda, que fez doutorado sanduíche na Espanha (é bom que se dê o crédito!), que ajuda a entender melhor a questão: o conceito de acosmia, desenvolvido por Françoise Collin, filósofa feminista belga, para se referir ao fato de que homens e mulheres não dispõem de outros mundos, além do mundo interior subjetivo que os mesmos expandem em palavras. Uma espécie de cosmos pessoal que lhes institui a visão de mundo. Então, não é difícil compreender porque os escritores tendem, mais do que as escritoras, a lançar mão do referencial patriarcal, infelizmente, ainda muito presente na nossa sociedade. O mundo interior masculino tem características próprias, como por exemplo, a história da tradição patriarcal de milênios que eles tendem a carregar no imaginário. E isso não é uma escolha consciente, é um legado cultural que vem passando de geração a geração. Num certo sentido, essa tradição, ainda que muito contestada pelos feminismos, chega até os anos dois mil. A imagem mais recorrente é a do pai trabalhando fora tentando trazer o pão de cada dia para casa, e a da mãe cuidando da casa e dos filhos. Isso de alguma maneira está no imaginário, na subjetividade, no mundo interior masculino e será expandido em palavras. Quando se tornam escritores, tendem a falar a partir dessa acosmia, desse universo que eles conhecem tão bem, dada a força do discurso patriarcal. A autora belga salienta que os homens não dispõem de outro mundo além desse, por isso, não há que se estranhar muito, quando em um corpus como o que constitui a pesquisa da professora Dalcastagnè, composto majoritariamente de obras autorais masculinas, que as mulheres estejam associadas de alguma maneira à família, à casa e ao lar. É essa espécie de cosmos pessoal que institui sua visão de mundo, isso que eu chamo de perspectiva sociocultural e, apesar do esforço dos escritores homens representarem papéis femininos, a visão de mundo de onde emanam as histórias que narram é masculina.

Marina Colasanti pergunta em um de seus ensaios acadêmicos algo assim: por que me perguntam se eu escrevo como mulher? Eu sou mulher, só posso escrever como mulher! Isso é o mesmo que me perguntarem se eu existo. Ela vale-se desse tom bem-humorado para dizer que é óbvio que a literatura de autoria feminina existe, assim como é óbvio que as mulheres escreverem como mulheres, elas são mulheres, não disponhem de outro universo. Por isso, não é difícil compreender por que os escritores, mais do que as escritoras, tendem a lançar mão desse referencial patriarcal, infelizmente ainda muito presente em nossa sociedade.

Por outro lado, quando eu e meu grupo de pesquisa concluímos a pesquisa “Literatura de autoria feminina: escolhas inclusivas?”, a partir de um corpus constituído de romances escritos por mulheres, outro quadro emergiu: é a acosmia feminina que está agora na origem das histórias narradas. Ainda que essas histórias narrem relações familiares e amorosas, temas recorrentes na literatura de todos os tempos, um percentual expressivo desses romances, são protagonizados por mulheres que se deslocam, por exemplo, por múltiplos espaços, para além dos muros da casa. A escritora brasileira contemporânea, a partir da sua acosmia, retira as mulheres dos confinamentos e as colocam em movimento, promovendo a visibilidade de novos papéis típicos de tempos feministas, estamos falando de um outro contexto. Tenho dados concretos que mostram isso.

Enfim, em relação à segunda parte da sua pergunta, acredito que sim, que é possível mudar esse paradigma literário de representação de mulheres confinadas dentro do ambiente doméstico, como revela a pesquisa de Dalcastagnè. Há que se mudar essa rota patriarcal abrindo espaço para que as mulheres, de perfis diversos, escrevam cada vez mais. Se houver mais mulheres escrevendo e mais mulheres inseridas em contextos que lhes sejam menos cerceadores de sua subjetividade e se os textos por elas escritos estiverem, de fato, circulando no cenário literário brasileiro, certamente, esse estado de coisas, esse paradigma de representação muda. Se na realidade extraliterária, elas estão hoje fora dos limites da casa, sentindo-se capazes de transpor seus limites irem para a rua, construírem o mundo lá fora, assim como os homens o fazem, desde há muito, as autoras irão representar mulheres vivendo situações parecidas, vivendo outros contextos, outras experiências para além dos muros da casa. Não que as histórias vivenciadas no âmbito do lar, em torno de temas familiares, amorosos, de traição ou de desejo deixarão de existir, mas à medida que as pessoas que escrevem circulam por outros ambientes, vivem outras experiências, se deparam com questões de outra ordem, elas tendem a representá-las nos romances que escrevem. Então, eu acho que sim!

OC: Em seu texto “Elas escrevem sobre o quê?”, você aponta que apenas 13,9% dos romances tratam da temática das relações de gênero. Esse distanciamento da abordagem de questões de gênero revela uma continuidade mesmo que sutil da prevalência de narrativas patriarcais que rege a hierarquia de gênero na sociedade?  Como pesquisadora da literatura de mulheres, como você avalia esse cenário? Poderia abordar quais seriam os temas mais recorrentes nesse recorte?

LZ: Neste artigo, “Elas escrevem sobre o quê?”, analiso o conjunto das temáticas mais recorrentes nos 151 romances estudados. Para cada romance, a equipe deveria indicar até três temas entre os mais importantes trazidos à baila ao longo da história. De fato, quando a gente computou os dados levantados, foi possível verificar que apenas 21, dentre os 151 romances analisados, trazem a temática das relações de gênero e as problematizam no primeiro plano da narrativa, de modo que as personagens femininas estejam submetidas à dominação masculina em suas inúmeras configurações; e, sendo assim, são flagradas tendo que lidar com a situação, debatendo-a, problematizando-a, ou, simplesmente, relatando a maneira como são vitimadas nas relações de gênero.

Quando a crítica literária feminista analisa a trajetória da literatura de autoria feminina no Brasil, é consenso o fato de aquelas que vieram primeiro tenderem a registrar a ideologia patriarcal dominante naquele contexto da passagem do século XIX para o XX, muitas vezes, sem problematizá-la. Isso porque essas pioneiras não podiam contar com muitos argumentos disponíveis para fazerem diferente, quase nenhum respaldo sociocultural. As críticas aos sistemas hierarquizados de gênero apareciam nas entrelinhas, com muita sutileza, quase que pedindo licença para falar das arbitrariedades que regulavam as relações entre os sexos. Assim, simplesmente registravam a opressão, as agruras sofridas pelas personagens oprimidas, sem nenhum respaldo para fazer críticas mais contundentes. Ao historicizarmos esses romances à luz de todo o aparato feminista com o qual contamos hoje, fica muito mais fácil de reconhecer a crítica embutida naqueles enredos, uma vez que a simples representação das práticas patriarcalistas corriqueiras envolvendo as mulheres oitocentistas soa absurda. O simples fato de representá-las já é uma crítica, mas, naquele contexto, não era, porque era comum que as mulheres vivessem e fossem tratadas e desempenhassem aqueles papéis.

Já as escritoras que passaram a escrever a partir dos anos 1960 (momento em que o feminismo estava em plena ebulição, gritando alto pela igualdade de direitos entre os sexos), construíam histórias intensamente marcadas pela problematização das relações de gênero, denunciando práticas de opressão, de silenciamento, de dominação das mulheres/protagonistas pela cultura patriarcal. Até a década de 90, esses textos, de modo geral, permaneceram empenhados em demostrar o quanto aquele quadro de dominação masculina X subjugação feminina era insustentável, o quanto era necessário que as escritoras, que finalmente puderam fazer literatura, reagissem, discutissem, representassem as mazelas das relações de gênero nos seus romances. Dificilmente um romance escrito por Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, Nélida Piñón, Lya Luft, por exemplo, publicado nesse período, não problematize, de alguma forma, as relações de gênero. Mas a partir da última década do século XX, momento em que os feminismos já haviam computado muitos ganhos em prol da liberdade feminina, do direito de as mulheres fazerem escolhas, a literatura de autoria feminina começa a incorporar em seus enredos personagens femininas menos vinculadas a esses debates. Pelo menos de forma tão direta.

A essa altura, as mulheres já tinham conquistado certa independência na realidade extraliterária, trabalhavam fora, tinham acesso à instrução, ou pelo menos ao direito de se instruírem, contavam com políticas públicas capazes de garantir-lhes o direito de ir e vir, a constituição de 1988 já havia sido promulgada. A partir desse momento, as escritoras passaram a se desvencilhar da necessidade de debater as relações de gênero com tanta veemência. É perceptível o fato de outras questões passarem a integrar o escopo de suas preocupações e, portanto, as temáticas de suas narrativas, como as relacionadas a identidade, pertencimento, ao modo de estarem no mundo; outras angústias femininas que existem para além daquelas afetas às relações de gênero e à dominação masculina. A crítica vai constatando a desaceleração da quantidade de romances que problematizam o gênero. Gosto de dizer que as escritoras já se sentem mais à vontade para falar a partir do novo contexto em que as mulheres estão inseridas, de seu próprio contexto, o das conquistas feministas, pois galgaram o direito de ocupar espaços nessa nova sociedade e já podem usufruir disso.

Claro que é preciso relativizar esse quadro, nem todas as mulheres a partir dos anos 90 (muito longe disso) conseguiram se inserir aí, mas as escritoras pioneiras já haviam trilhado um bom caminho rumo à problematização do modo de estar das mulheres na sociedade patriarcal, de modo que as mais jovens já foram educadas dentro de um contexto feminista. Bem sabemos que a subjetivação feminina não é a realidade de todas as mulheres contemporâneas; existem intersecções de classe social, de região, de etnia/cor da pele que modificam essa situação e continuam submetendo-as às hierarquias de gênero. Ocorre que, no artigo a que você se referiu, estamos falando de um recorte privilegiado de escritoras, aquelas que conseguiram publicar em importantes editoras brasileiras, talvez por serem em sua maioria brancas, de classe média, cultas etc., que tendem a representar mulheres nas mesmas condições que elas próprias, ou seja, tendem a se autorrepresentar. Tendo em vista esse raciocínio, fica mais fácil compreender o porquê de elas não mais problematizarem com tanta frequência as relações de gênero; elas as problematizam, sim, mas isso não é o centro de seus interesses. Isso não significa que elas estão menos comprometidas com a questão da independência e da subjetividade feminina. Significa, apenas, que elas estão já vivenciando outras possibilidades. 

Quanto às temáticas mais recorrentes no recorte referido, muitas delas são as mesmas que, tradicionalmente, vêm consistindo no foco de interesse do gênero romanesco, tomado de forma ampla, como é o caso das questões familiares, por exemplo, que há muito tempo estão presentes na literatura, quase sempre agregando junto a si histórias de amor, de traição, entre outras situações típicas do meio. Mas, nessas histórias que envolvem relações afetivas entre homens e mulheres, nem sempre a questão da opressão de gênero está em primeiro plano, como é recorrente em obras publicadas em épocas anteriores; outras questões permeiam esses relacionamentos, como sexualidade, temperamento, escolhas, incompatibilidades, filhos ou a ausência deles, valores, trabalho etc.

Se no corpus da pesquisa, os embates no entorno da família e dos amores estão em quase 40% dos romances, as relações familiares e as amorosas representadas são aquelas típicas do século XXI. Não são as mesmas do século XIX, em que um patriarca todo poderoso estava no centro da casa ditando comportamentos, oprimindo e impedindo as mulheres de serem quem são. O assunto “relações de gênero” sempre aparece, em alguma medida, nessas histórias, porque, afinal, se observarmos os casais contemporâneos, adaptados ao mundo contemporâneo, vez por outra, um ou outro, se vê, ainda que momentaneamente, vivenciando práticas comportamentais típicas dos relacionamentos tradicionais que são logo problematizadas. De modo geral, esse tema aparece, mas não é mais o centro, é uma questão a mais, um dado que o romance trás, fazendo lembrar que existem práticas machistas escamoteadas em meio aos costumes feministas do tempo (cerca de 13% dos romances analisados).

Resumindo, os temas mais recorrentes nesse recorte são a família, os amores, a sexualidade feminina – muito interessante o fato de as personagens representadas quebrarem tabus e falarem de suas próprias sexualidades, elas são donas do próprio corpo e querem se realizar sexualmente. Falam disso! Falam também de (re)construção identitária, se colocam como sujeitos no contexto contemporâneo, com problemas relacionados a origens, valores, heranças culturais, pertencimento, tradições que, a certa altura de suas trajetórias, passam a ser problematizadas, deixam de fazer sentido, convertendo-se, elas mesmas, no tema central do romance. Essas escritoras abordam também, com muita frequência, os deslocamentos espaciais (viagens, (i)migração, exílio, aventuras), experienciando situações típicas do mundo globalizado.

Essas são as temáticas mais recorrentes, mas as relações de gênero, as criminalidades, e o fazer literário também são tematizados. O fato de as escritoras focarem em mulheres escrevendo literatura, parece passar a mensagem que não só escrevem literatura, mas também representam mulheres que escrevem literatura, sinalizando e reforçando a cristalização da ideia de que literatura é coisa, sim, de mulher. Além desses principais temas que povoam a literatura de autoria feminina brasileira contemporânea, outros vão se somando, embora com menor recorrência, como, por exemplo, o da morte, das doenças, das questões sociais e ideológicas, da luta de classes, das questões de amizade, de religiosidade, de transcendentalismo, de identidade nacional e as étnico-raciais. Trata-se, afinal, de as escritoras contemporâneas retratarem criticamente a atualidade, pois elas, como as mulheres em geral, estão participando de tudo, estão discutindo, problematizando e vivenciando plenamente o mundo contemporâneo, sem que precisem contemplá-lo pelas frestas das janelas. Podem retratá-lo, portanto, a partir de suas próprias perspectivas.

OC: A produção literária de Ana Paula Maia e Patrícia Melo, conforme você analisa no texto “Um retrato do romance brasileiro contemporâneo de autoria feminina”, envereda “pela representação de homens brutos que, ao serem incumbidos de fazer o ‘trabalho sujo dos outros’, têm suas trajetórias irremediavelmente marcadas por emoções violentas, pela banalização do mal e pela anestesia moral”. É possível afirmar que foram os avanços feministas que corroboraram o aparecimento e a permanência de vozes femininas que têm autonomia para expor, criar e versar sobre temas literários que nem sempre falam sobre e pela voz da mulher? E, sendo assim, em que medida a literatura de autoria feminina (como um subgênero literário) ainda aproxima a autoria da narratividade, de modo que a escritora tenda a se auto representar?

LZ: Veja bem, eu sinto nessa pergunta que existe uma espécie de entendimento de que quando a gente pensa em literatura de autoria feminina, logo pensa em autorrepresentação da escritora, como se isso fosse uma coisa negativa. Mas, veja bem, não só a literatura de mulheres tende a representar o universo de suas autoras, a literatura de autoria masculina também é assim, as pesquisas mostram isso, o que não torna nenhum tipo de literatura menor ou menos importante. Se considerarmos que tanto os escritores quanto as escritoras só podem escrever a partir da sua perspectiva, não se pode desvincular aquilo que é narrado do universo de quem narra.

Pensar que a literatura de autoria feminina aproxima a autoria da narratividade de modo que isso se converte em um aspecto negativo é um equívoco. Não tem como ser diferente, não há como separar a autoria do texto produzido. Claro que foram os avanços feministas que possibilitaram às mulheres, pensando nas mulheres escritoras, falarem sobre os assuntos que bem entenderem em seus textos literários, mas ainda assim elas falam do que bem querem a partir da sua própria perspectiva. Elas tomam posse do direito de falarem de tudo, inclusive de criminalidade, de violência e de outras contravenções, assim como fazem Ana Paula Maia e Patrícia Melo. Quase 15% desses romances, desse corpus que a gente analisou, abordam esses temas, como é o caso daqueles produzidos por essas escritoras. Elas colocam em cena protagonistas do sexo masculino narrando suas histórias no submundo do crime, por exemplo, mas elas estão lá, estão por de trás dessa voz. Elas subvertem não apenas a maneira tradicional de representar os sujeitos femininos, mas também os masculinos. Nesses 15% de romances que abordam a temática das criminalidades, verificamos, de um lado, mulheres protagonizando as histórias, seja reagindo contra as arbitrariedades desferidas sobre elas e sobre os seus, dentro dessas situações de crime, de violência, seja, elas próprias, agindo como contraventoras ou mentoras intelectuais de práticas criminosas. É interessante pensar nisso porque esse recorte aponta também para a quebra do vitimismo feminino, da ideia de que as mulheres só podem ser consideradas as vítimas das arbitrariedades masculinas. Não! As mulheres também cometem crimes. Patrícia Melo, por exemplo, tem um desses romances. Em Inferno, uma das protagonistas assume o controle do narcotráfico em um dos morros no Rio de Janeiro. De outro lado, elas são representadas nesses romances com a missão de desvendar subversões criminais. Às vezes, elas encarnam as investigadoras enquanto gerenciam os seus próprios dramas, questões identitárias, de relacionamento, de família. Agora, em uma terceira possibilidade, elas representam também, sem constrangimento nenhum, o universo masculino e suas práticas de violência, explorando as motivações desses homens violentos.  Desse modo, o universo masculino é agora examinado a partir de outra perspectiva – a perspectiva da mulher. As mulheres que sempre foram representadas a partir da perspectiva hegemônica masculina tomam para si o direito de representar os homens. E por que não? O universo romanesco de autoria feminina vai se alargando, sempre avançando um passo a mais: elas representam mulheres, as mulheres estão no centro desses romances, mas não apenas, os homens também estão, só que eles estão lá representados a partir da perspectiva feminina.

Nesse sentido, esses romances a que você se refere na pergunta não só subvertem pelo tema, porque é um tema considerado pela lógica patriarcal fora do alcance da perspectiva sociocultural das mulheres, mas também pela potencialização do teor subversivo dessas narrativas: não se trata apenas de elas representarem simplesmente homens brutos, violentos, empenhados em vitimar mulheres indefesas. São homens, que também são vitimados pela violência estrutural da sociedade capitalista, uma sociedade que tira deles a dignidade de seres humanos. Em contrapartida, eles revidam com mais violência contra aqueles que, naquele momento, eles julgam merecedores de serem o alvo da violência deles.

Para finalizar, a gente pode dizer que o fato de as escritoras se sentirem autorizadas, com os avanços feministas, a falar de qualquer assunto, incluindo aqueles que tradicionalmente não faziam parte de seu horizonte, já que historicamente elas estavam confinadas na casa, não significa que esses assuntos não passem pelo crivo da subjetividade feminina. É pela perspectiva feminina que esses assuntos estão sendo abordados. A tendência de a escritora de se autorrepresentar não implica que ela esteja impedida de representar o outro. Não como se ela fosse o outro, isso é importante sublinhar, não como se ela fosse o homem, mas ela o faz a partir da sua visão de mundo, que é feminina.

OC: A proposta da pesquisa “Literatura de autoria feminina: escolhas inclusivas?”, desenvolvida junto a seu grupo de pesquisa na UEM, é a de desenhar uma espécie de “retrato” do romance contemporâneo de autoria feminina. Como a crítica literária feminista pode formalizar as estruturas que se constroem dentro dessas narrativas?

LZ: Quando eu digo que pretendia fazer um retrato do romance contemporâneo de autoria feminina, essa questão causa um pouco de estranhamento. Como é possível? Para se chegar nesse retrato, o que foi preciso fazer? Não é um achismo, não é uma coisa subjetiva… Para se chegar a esse retrato ou, como você coloca, encontrar as estruturas que se repetem no conjunto desses romances, foi necessário realizar um minucioso mapeamento dessas estruturas. Para isso, utilizamos a mesma metodologia desenvolvida por Regina Dalcastagnè. Metodologia essa que sempre causa algum estranhamento relacionado ao modo como se teríamos chegado aos percentuais, aos resultados numéricos, ou seja, à essas estruturas do romance contemporâneo. Nos resultados da pesquisa, foi concluído como já mencionamos, mas para contextualizar, que 70% dos autores publicados por essas editoras são do sexo masculino, brancos, moradores de grandes centros urbanos e, que a personagem representada nesses romances, é majoritariamente do sexo masculino, branca e integrante das classes mais favorecidas, reforçando os pontos já colocados sobre a autorrepresentação, a construção das histórias sob a sua visão de mundo. Foram esses resultados que me motivaram a pesquisar se esse perfil se repete quando isolamos apenas os romances escritos por mulheres e, apesar de minha intuição dizer que não era assim que ocorria, não bastava me guiar pela intuição, era preciso fazer um mapeamento, conhecer o passo a passo da produção desses romances e assim fazer afirmações.

Mapeamos o modo de construção de personagens, a partir de um corpus com 151 romances de autoria feminina, publicados por grandes editoras entre os anos de 2000 e 2015. A equipe analisou 618 personagens consideradas fundamentais para o desenrolar da trama, cujas trajetórias foram ponderadas por meio de um questionário com 88 questões, as quais visavam detalhar, minuciosamente, a construção de cada uma delas para, depois, olharmos para o conjunto. Além disso, detalhamos o lugar de fala das autoras, a intensidade de crítica com que cada obra aborda a temática em torno da qual se desenvolve. Os resultados, foram implantados em um software, que nos permitiu contabilizar, cruzar e interpretar os dados obtidos. Trata-se de um instrumento de “aferição” que embora pareça demasiado objetivo e, portanto, antagônico ao caráter escorregadio, sugestivo e subjetivo do texto literário, funciona, sim, como um retrato dessa produção. De posse desse material, é possível formalizar as recorrências, não aquelas relacionadas às sutilezas estéticas desses romances, mas as escolhas das escritoras, propriamente ditas: quem narra? Quem são as personagens representadas? Seu sexo, cor da pele, grau de instrução, ocupação, características físicas, psicológicas, ambientes em que estão inseridas, temas abordados. São dados bem concretos que nos abre a possibilidade de fazermos afirmações, sem medo de cair no impressionismo.

Ao final da pesquisa, formalizamos um retrato do romance contemporâneo de autoria feminina em que se observa: a predominância de personagens femininas, brancas, de classe média alta, bonitas, inteligentes, em sua maioria instruídas e inseridas no mercado de trabalho; o protagonismo das histórias é predominantemente feminino. As personagens femininas, são subjetivadas e imbuídas do direito de falar e de narrar, de modo que são também, com muita frequência, as narradoras das histórias. Isso é muito interessante, quando temos em vista o fato de que o romance tradicional conta sempre com seu tradicional narrador masculino ou onisciente, incumbido de salientar o comportamento generificado de personagens masculinas e femininas, fazendo avultar a dominação masculina, de um lado, e a subjugação feminina, de outro. Desse modo, são as masculinas que escolhem, não são escolhidas, dominam a cena, decidem quando será, como será e com quem será. Na literatura de mulheres, elas vivenciam a sexualidade para além desse duplo padrão de comportamento, com inúmeras outras possibilidades e situações. Elas deslocam-se, outro dado que é preciso salientar nesse retrato. Elas deslocam-se pelos múltiplos espaços urbanos ou domésticos disponíveis. Há, inclusive, uma pergunta na pesquisa que analisa os espaços mais frequentados pelas personagens femininas dentro da casa, onde é que a mulher normalmente é flagrada? É, predominantemente, na cozinha, na lavanderia, na área de serviço ou é na sala ou escritório? A conclusão que chegamos é que ela se desloca por todos esses ambientes e pelos espaços urbanos disponíveis também! As mulheres estão na rua, frequentando estabelecimentos diversos e assumindo o que esses espaços podem oferecer tanto conforto como risco, estão sujeitas a toda sorte de risco como estão sujeitos, desde sempre, os homens. Além disso, suas principais demandas são de ordem subjetiva, em que pesam as relações entre o eu e o outro e do eu consigo mesmo. E como dissemos, a família, os amores, a sexualidade, a (re)construção identitária, os deslocamentos espaciais, as criminalidades e o fazer literário são as temáticas mais recorrentes na constituição dos enredos. Esse é o retrato!

OC: Como a crítica feminista e literária pode funcionar como material complementar para outras leituras identitárias e histórias da literatura de autoria feminina? Afinal, é possível pensar essa literatura, seja por meio do viés psicanalítico, das leituras do silenciamento, da violência, do discurso histórico e memorialístico, sem antes considerar que a voz da mulher já é transpassada por uma série de barreiras comunicativas e convenções sociais?

LZ: Como é que a crítica feminista pode contribuir com outros seguimentos, com outros métodos de investigação literários. Eu sempre digo para os meus alunos que quando a gente está analisando um texto literário é imprescindível detectarmos de onde aquelas ideias ali representadas emanam. Quem escreve? Qual é o lugar de fala desse escritor ou dessa escritora? Quais as ideologias que estão sendo defendidas ou refutadas? Qual o contexto de produção do texto? Nesse sentido, independentemente de eu estar ou não trabalhando diretamente com a crítica literária feminista, eu me valho de suas estratégias analíticas. Pode ser muito útil pensar as marcas da dominação masculina quando da análise literária, assim como interdições de ordem diversa que emanam desse viés hegemônico, estratégias discursivas, modulações da linguagem, recorrência a estereótipos sexistas e, também, formas diversas de agência e de subjetivação.  Quando se vai analisar a perspectiva da mulher ou mesmo a do gênero masculino em narrativas diversas, eu tenho que necessariamente lançar mão desse tipo de questionamentos, mas, não raramente, eu posso ser “convidada” pelo texto a recorrer a eles mesmo quando estiver o analisando de outras perspectivas epistemológicas. Então, penso que sim! A crítica literária, pode funcionar como suporte para abordagens literárias diversas de textos de autoria feminina, mas não apenas, as análises de textos escritos por homens também podem ser beneficiadas. A crítica feminista oferece suporte para o/a pesquisador/a situar melhor o lugar de falar, tanto da instância autoral, quanto das personagens, e a partir daí fazer constatações, aferir algumas especulações, desconfiar do sentido literal das ideias. Veja bem: quem é o Bentinho/Dom casmurro? Se a gente tomar como exemplo o romance narrado por esse emblemático personagem-narrador, não há como não problematizar seu lugar de fala. Qual a dimensão que a perspectiva patriarcal ocupa em seu discurso? Esse é só o começo das inquietações suscitadas pelo romance de Machado de Assis. Então, sim! A crítica feminista pode estar a serviço de outras epistemologias analíticas.  Aquele/a que fala tem um gênero e uma visão de mundo que sinaliza a direção do que é falado.

OC: No artigo “Mulherio das Letras: escrever, resistir, existir”, você esclarece que a coleção artesanal de narrativas curtas “Mulherio das Letras” surgiu como forma de resistir ao apagamento e às interdições da literatura de autoria feminina ao longo da tradição patriarcal. Como podemos avaliar os movimentos/ações que reivindicam a legitimidade da literatura feita por mulheres de etnias, classes, grau de instrução heterogêneos? Podemos falar em igualdade de oportunidades no ramo editorial? (Ou quanto ainda falta para o alcance de uma “igualdade”?)

LZ: “Mulherio das Letras” é uma coletânea de narrativas curtas que surgiu em função da agremiação de muitas escritoras brasileiras cujas obras não estão integrando o rol de publicações das grandes editoras brasileiras. o fato de termos escolhido constituir o corpus da pesquisa “Literatura de autoria feminina: escolhas inclusivas?” com romances publicados por três dentre as mais influentes editoras brasileiras está diretamente relacionado à certeza de que são essas obras que, de fato, integram o campo literário. Mas, como eu disse, essas autoras que aí conseguiram publicar são representantes da elite intelectual, da etnia hegemônica brasileira, de descendência europeia, além de se situarem nos estratos socioeconômicos mais elevados.

Isso não significa que todas as outras escritoras que não publicam nessas editoras, estejam invisibilizadas, mas essas contam com uma maior estrutura de divulgação. São elas que estão em todas as livrarias, que circulam na mídia, que são resenhadas e debatidas pela crítica… Mas nós bem sabemos, também, que existem mulheres de perfis heterogêneos, marcados por múltiplos eixos de diferenciação, escrevendo, e escrevendo muito.

Claro, elas são estimuladas por movimentos que a partir dos anos 1990 passaram a reivindicar seu lugar de fala, a lutar pela legitimação da sua perspectiva autoral, pelo direito de falar como vozes subalternizadas pelo estrato socioeconômico em que se inserem, pela cor da pele, pela etnia, pela orientação sexual, pela região em que vivem… É o caso do grupo “Mulherio das Letras”. Esses movimentos foram ganhando cada vez mais ênfase, inclusive, pelos avanços da internet e das redes sociais. Claro que não na mesma proporção do que aquelas que estão circulando por grandes editoras. Não sejamos ingênuos, não há igualdade no campo editorial e ainda falta muito para que ela seja alcançada. Mas a boa notícia é que, em âmbitos acadêmico, cultural e político, as discussões sobre cidadania, diversidade, identidade, combate ao racismo estrutural e à desigualdade de gênero ou de classe estão cada vez ocupando mais espaços no país.

Além disso, no âmbito da literatura e da arte em geral, essas vozes dissonantes estão sendo incentivadas por movimentos – como o Mulherio das Letras – que tem se valido de plataformas digitais, redes sociais, agremiações, coletivos culturais, clube de leituras e entre outros veículos de divulgação das chamadas escritoras periféricas em relação ao campo literário. Também, as curadorias das feiras literárias estão, em maior ou menor medida, empenhadas em diversificação das vozes convidadas a participar e expor seus trabalhos. Então eu diria que o momento é favorável para que novas vozes se sintam autorizadas a fazer literatura! Há incentivo!

De modo especial, as editoras de pequeno porte, especializadas na publicação de literatura negra (Mazza edições, Malê, Ananse), de pessoas LGBTQIA+ (Malagueta), e de outras minorias e marginalizados/as estão desempenhando um importante papel na visibilização desses textos, os quais embora não possam contar com a estrutura de divulgação e distribuição das grandes casas editoriais, atendem às expectativas de um público mais restrito, porém ávido de se sentir representado ou de ampliar sua visão de mundo.

É nesse contexto que nasceu o Mulherio das Letras –  agremiação de mulheres que escrevem que lançou mão do termo “mulherio” justamente para dar a ideia de grande quantidade – porque são muitas mulheres escrevendo. O grupo surgiu primeiro em João Pessoa, a partir da ideia de reunir mulheres para falar de literatura de mulheres, práticas culturais de mulheres, temas que estão na literatura de mulheres seja qual for o tipo de literatura. Trata-se de um grupo de mulheres empenhadas na valorização e visibilidade de literatura de autoria feminina e querem libertar os escritos das mulheres das gavetas.

A coleção artesanal Mulherio das Letras, publicada pela editora artesanal Mariposa Cartonera, resultou do primeiro encontro do grupo em 2017, e reúne narrativas curtas de cerca de cem escritoras e traz um leque de interesses e de perfis femininos que conversam entre si e, no conjunto, oferecem uma amostragem de o quão múltiplas e diversificadas são as questões que povoam o imaginário da mulher contemporânea. Esse material está disponível e demonstra que há muitos rostos na literatura brasileira, transpassados por muitos outros eixos de discriminação. É um material muito rico e, se ainda não podemos escancarar as portas das grandes editoras para as mulheres, podemos apresentar outras oportunidades de publicações – as quais tendem a chegar à Academia por meio de iniciativas de professores empenhados e, aos poucos, ganharem visibilidade.

 

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