por Íngrid Lívero e Nathália Mulza

          Existem muitos pioneiros na história do mundo e de todos os países, até mesmo aqueles que iniciaram algo significativo no ambiente acadêmico. Maria Céli Pazini, graduada na Pontifícia Universidade Católica de Campinas, torna-se maringaense depois de casada e, notavelmente, a pioneira da matéria de Linguística no curso de Letras na Universidade Estadual de Maringá (UEM).

          A professora começa a ter contato com o que seria sua carreira acadêmica na Universidade ao conhecer o professor Amauri Meller, seu vizinho e dono do Colégio Paraná, ao qual é confiada a missão de fundar o curso de Letras na UEM, junto a outras áreas das Ciências Humanas. Com sua formação única em Linguística, matéria que não se encontrava em muitas universidades, ela era a profissional da região habilitada a ministrar a dita matéria. Não que fosse sua primeira paixão, afinal, a escolha do estudo das letras tinha como finalidade o ensino da língua francesa, inspirado por uma de suas professoras de francês na educação regular.

           Esse ensino chegou a ser concretizado: a esposa do professor Meller lecionava francês no Colégio João XXIII e, uma vez com os filhos recém-nascidos, convidou Maria Céli para assumir suas aulas em 1965. O encargo trouxe uma grande felicidade, conforme ela própria conta em meio a risos, já que era a sua matéria. Em meio às conversas entre vizinhos e a descoberta de sua formação, a professora de francês iria resolver o problema da falta de profissionais para lecionar Linguística.

            A questão da autenticidade confirma-se a cada fala e detalhe contado. A fotocópia era necessária para que autorizassem a abertura do curso na Fundação Universidade Estadual de Maringá. Ao mesmo tempo em que um antigo colega de classe também assume a novidade da Linguística na PUC, Maria Céli vai a Campinas em busca de livros e materiais para o curso recém-implantado, de forma que “foi um suor” achar nas livrarias de Campinas o material que faltava para ministrar suas aulas em Maringá.

        “Minha sorte foi essa, ninguém sabia nada de linguística” diz a professora, acrescentando que, na cidade, ninguém também a conhecia e foi um desafio para uma jovem de 25 anos ensinar no local onde os professores dos colégios da região eram aqueles bem aceitos. Ao retornar da busca de materiais em Campinas, descobriu que estava à espera de sua primeira filha e, com um sorriso, conta que logo pediu: “tirem meu nome que não vou dar aula”. Numa tentativa de nos transportar para décadas atrás, ela pede para que nos imaginemos com a sua idade na época, num lugar estranho e totalmente novo, sem a paixão pela Linguística (que agora é mais do que certa), e nos afirma com convicção que, por mais que se pareça com uma fantasia, essa foi realmente a forma como iniciou sua admirável carreira.

           Na medida em que as memórias avançam, a conversa assemelha-se a uma viagem no tempo: os detalhes de como os estudos e a paixão derradeira pela área começou, as dificuldades encontradas posteriormente para uma especialização, o dia a dia na universidade ao falar sobre as conquistas do time de quatro professores que iniciaram no curso com os quais ainda manteve contato por muitos anos – visto a proximidade que havia na rotina de estarem todos juntos na mesma sala de professores sem distinção de matérias e departamentos. Ao falar sobre a amizade que nasceu entre eles, a professora Maria Céli se emociona, comenta que ao olhar para trás, os bons e maus momentos, lembra principalmente do professor Walter Pelegrini, a quem considerava como irmão, dizendo que eles se entendiam muito bem, as famílias tinham amizade, “ele sempre foi uma pessoa muito respeitável” ela completa. Nesse momento, então, a lembrança da comemoração de 35 anos do curso vem à tona, evento organizado pela professora Mirian Zaponi, que solicita à Maria Céli a entrega de uma lembrança ao professor Walter, que estava em Curitiba. Esse foi o último encontro dos amigos, em outubro, pois, ao final do ano o professor faleceu, deixando as boas memórias do tempo de serviço prestado em conjunto.

          Não somente episódios saudosos eram recordados. Na ocasião de visita a universidade, a professora comenta o quanto mudou, afinal no começo eram dois blocos e muito “mato”, expressão utilizada por ela mesma, junto ao barro em dias de chuva para dificultar a chegada no período da noite. Em meio a risos ela diz que são detalhes pessoais, mas detalhes marcantes do seu tempo de docência acadêmica, bem como o horário de saída às onze horas da noite, horário marcado com a ajuda do trem que passava ali perto, sempre a fazer manobras ruidosas que os alunos e professores ouviam. A questão do trabalho por aula é outra a ser recordada, além do primeiro salário do qual “fomos ver a cor só em setembro” como ela diz rindo, e depois mostra o contrato, datilografado, feito em 1967 com a remuneração de 25 cruzeiros a hora-aula, contrato esse muito bem conservado e lido pela professora, no momento, com todo um tom de alegria e satisfação.

            Desde o primeiro vestibular preparado em 1966, muitos fatos caminharam entre bons tempos, tempos de greve – sobre esse assunto, Maria Céli comenta que são movimentações necessárias para se conseguir o que precisa – e tempos em que os cursos de licenciatura precisaram de divulgação para sair da situação de poucos alunos. Foi preciso “fazer mesmo propaganda do curso”, diz a professora. Também comenta que muito do professorado melhora quando começam os incentivos para saídas a congressos, apresentações de trabalho, uma vez que de primeiro não havia nem dinheiro ou condições de fazer isso; a proposta do TIDE seria outro ponto de segurança para o trabalho na universidade, ponto este que ela define como “algo que não podia jogar fora”. Ainda sobre segurança, a lembrança da declaração para regularização dos cursos é retomada com muitos risos quando a professora mostra o documento que comprovava sua entrada na função por meio de concurso de títulos, “isso depois de estar na sala de aula por muito anos e, na verdade, na época, só precisei mostrar meu diploma de licenciada em Linguística”.

            A professora Maria Céli comemorou por muitos anos os aniversários do curso. Mostrou-nos um dos folhetos guardados do 25º aniversário. Além do folheto, a professora guarda jornais e fotos do primeiro vestibular da universidade, com risos apresenta a foto da primeira turma formada em Letras pela UEM e também se identifica na foto do primeiro vestibular. Nesse momento, Maria Céli se emociona e diz que às vezes pensa em qual curso ela poderia ter escolhido e chega à conclusão que nada a atrairia mais do que ser professora, algo extremamente apaixonante. Acrescenta que fica muito contente ao ver quantos ex-alunos seus já têm seus próprios ex-alunos.

            Ao questionamento sobre algum episódio que ficou marcado, Maria Céli responde que nunca teve problemas ou desavenças com alunos, que por sinal eram bastante respeitosos para com o professor. Mostrou também seu documento de aposentadoria, de 1987, e algumas fotos da festa que fizeram na ocasião, além de fotos de uma viagem com os alunos para Florianópolis, identificando alguns deles da turma de 1975. A respeito dessa turma, ela conta que há poucos anos eles montaram um grupo e a convidaram para fazer parte, e ainda hoje marcam reuniões e encontros.

            Nesse movimento de ida e volta pela história, assumido durante toda a conversa, a professora compartilha sua satisfação ao ver como a universidade cresceu junto à cidade e às próprias filhas, uma vez que a mais velha também faz aniversário no próximo mês, “ela sempre me diz que o aniversário dela eu não posso esquecer” conta sorrindo. A isso se atrela a memória dos tempos de mestrado em Florianópolis, tocado adiante apenas com um salário e com a distância do marido como obstáculo, mas Maria Céli conta que ele a incentivou bastante a ir e ela levou suas filhas e sua empregada, a qual não considera dessa forma, “ela mora comigo há mais de 50 anos, já é mais que da família”. A situação melhoraria posteriormente, conforme diz, mas em fase de cumprir um possível doutorado já havia passado o tempo e considerou que não era mais tão oportuno; aqui também recorda-se que trabalhou em muitos cursos de professores de Maringá e região e, mostrando mais fotos, cita vários nomes de professores dizendo que “toda aquela gente” com quem conviveu faz parte de sua história, uma vez que faziam várias reuniões na casa um do outro, situações oportunas numa cidade nova com grande parte das pessoas vindas de fora.

            Quando questionamos se foi um trabalho significativo para sua vida pessoal, a professora assume uma grande convicção ao responder afirmativamente e complementar com risos “sou professora de linguística ainda!”. Vai, daí, comentar que muito da Linguística mudou, pois quando começara trabalhou apenas com Saussure e suas dicotomias, mas hoje há um leque de perspectivas no sentido de pensar essa mudança de foco do ensino de língua, “não ficar mais corrigindo tudo”. Ela ainda conta que até hoje perguntam “tá certo professora?”, ao que, rindo, responde com um “não adianta me perguntar, porque tá tudo certo”. É claro que, conforme a situação, é preciso corrigir, ponderou, e nos convidou a imaginar como era entrar em sala falando isso que nada está errado, “você tira o pé, o apoio da pessoa que estava se sentindo segura, que sabia gramática e agora percebe que não vai mais precisar de tudo aquilo”.

              Ainda sobre esse assunto, Maria Céli diz que foi tudo muito bom e não se arrepende, pois adorava dar aulas. Questionamos se, do ponto de vista pessoal dela, vale a pena investir na carreira docente, e sem titubear ela nos respondeu reiterando que nunca se arrependeu e que “tem que falar que é professora sim!”. Conta que hoje em dia é muito reconhecido, mesmo que não pareça, em comparação à época em que as licenciaturas em geral não tinham o devido valor, o que foi preocupante, e emenda dizendo que realmente se empolga ao trabalhar com a Linguística, pois todos os campos em que pode se pensar em estudar, “você pode ir a fundo que vai sair alguma coisa, é uma realização”. A ideia de aposentadoria só viria por uma percepção de que já era hora para tal e por toda a parte burocrática que envolvia a divisão de departamentos, logo chefias e coordenação de colegiado – que chegou a assumir por um tempo -, parte “que não me fazia, meu negócio era trabalhar com aluno mesmo” confessa com determinação.

             Conforme a conversa encaminhava-se para o fim, Maria Céli recorda-se mais uma vez da professora de francês que a inspirou a estudar Letras, e aliada a essa memória vem a do sonho de estudar em São Paulo, mas a proibição do pai que não confiava na cidade grande desviou os planos para Campinas, “mais perto e menor” conforme classificou. Reitera aqui também que sempre pensou em alguma coisa que mexesse com a linguagem ou com pessoas para seguir carreira. Perguntamos, então, se as aulas de francês surgiram depois, e ela responde que já estava com a cabeça em Linguística, logo já não era mais tempo. Comenta que hoje têm as escolas de línguas que ensinam para aqueles que querem ir para a França mesmo, mas em sua época aprendeu e ensinou com lista de verbos e tudo o mais. Relatou-nos sobre uma ex-aluna que a encontrou certo dia e disse que ainda se lembrava de rezar a ave-maria em francês do jeito que aprendera com a professora. “Nem eu lembrava disso”, confessou sorrindo e dizendo que ensinava a gramática mesmo, o que, a seu ver, surtia efeito, pois os alunos aprendiam “e muitos ainda se lembram e falam que aprenderam francês comigo”.

            O professor é conhecido por sua dedicação e sua capacidade de se doar em prol não só de seus alunos, mas também de sua formação, instituindo um conceito de “doar-se” bastante complexo para ser entendido e colocado em prática. Toda a formação buscada pela professora Maria Céli em meio a dificuldades e a forma de contar cada pormenor de sua história, muitos corroborados pelas fotos e arquivos significativos que nos mostrou com um grande sorriso, pareceu-nos um dos melhores exemplos desse conceito de doação.

             Em termos de assunto, nosso bate-papo chegou ao fim com considerações da professora sobre as teorias linguísticas que evoluíram muito, sua fascinação ainda recente pela Análise do Discurso, sua dissertação de mestrado baseada em Chomsky e sua visão de que a ciência vai evoluindo, “logo as coisas não se negam, se completam”. Já em termos de relação socializada pela ocasião dos comemorativos 50 anos do curso de Letras da UEM, a conversa constituiu-se como uma experiência incrível de troca de memórias e opiniões a respeito desse caminho da ciência da linguagem, já construído e trilhado com excelência pela professora Maria Céli e ainda aberto para receber aqueles que desejam aprofundar-se no entendimento de uma das ciências humanas.

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