por Micheli Ribas*

 

           Em O avesso da pele (2020), publicado pela Companhia das Letras e vencedor do Prêmio Jabuti de 2021, o autor Jeferson Tenório apresenta a trajetória de Pedro, cujo pai, Henrique, homem negro e professor de literatura, foi morto pela polícia de forma desastrosa. Para lidar com essa perda e compreender o abandono que sente, Pedro organiza e relata momentos da vida do pai. Através dessas memórias, o autor expõe de maneira sensível as questões de racismo no país – que poderia vir a ser a própria história do Brasil.

           O romance contemporâneo de Tenório não apenas conta a história de um narrador em busca de entender seus pais, especialmente o pai falecido, mas também explora a jornada do protagonista em compreender a si mesmo, por meio do exercício de subjetividade. Essa narrativa revela a complexidade das relações familiares e individuais, enquanto o protagonista busca compreensão e reconciliação com seu passado.

          Joel Candau, na obra Memória e identidade (2011), explica que a dialética que envolve identidade e memória é explicitada pelo fato de que a memória “ao mesmo tempo em que nos modela, é também por nós modelada”. Assim, a narrativa pessoal de cada um é produzida por esse entrelaçamento, até que reste somente o esquecimento.

          Diante desse contexto, observamos que a obra de Tenório é muito profunda. E, embora seja ficção, a narrativa é tão realista que quase parece baseada em fatos reais. Experiências traumáticas relacionadas ao racismo, vividas por Henrique, acontecem todos os dias no Brasil e, com frequência, vemos nos noticiários.

           Devido a sua importância, ainda no governo anterior, a obra chegou às bibliotecas escolares por meio do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), sistema do Ministério da Educação (MEC), sendo indicada para a leitura de estudantes do Ensino Médio. O livro também faz parte da lista de livros indicados para o vestibular do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), um dos mais concorridos do Brasil.

          Com toda essa relevância, causa perplexidade que O avesso da pele, em pleno século XXI, seja taxado de pornográfico – em razão de uma cena que ocorre em uma das 170 páginas do livro-, e de ter uma linguagem imprópria para adolescentes – nesse caso, principalmente, por conta das falas transcritas nas abordagens policiais. Falas que facilmente ouviríamos em uma cena semelhante na vida real. Isso sem entrar no mérito de que ouvimos os estudantes usando palavrões em sala de aula a todo o momento, em estádios de futebol e até mesmo nas músicas que muitos dessa geração curtem.

          Parece uma grande hipocrisia que conservadores, que dificilmente leram esse ou qualquer outro livro canônico indicado para o Ensino Médio, como esses cobrados em vestibulares do país, peguem apenas o recorte de alguns pequenos trechos da obra e os utilizem para invalidá-lo. Se analisassem os outros livros da biblioteca escolar destinados a esta faixa etária, nessa linha de raciocínio, teriam, possivelmente, que vetar todos. Aí o problema seria, realmente, a literatura.

           A leitura de textos literários é tão importante, que Antonio Candido afirma que a literatura deveria estar incluída nos Direitos Humanos. Isso porque ela pode nos tornar mais humanos, gerar empatia pelo outro e criar alteridade. Além disso, a leitura é viva, ou seja, há uma troca subjetiva entre o leitor e o texto; dependendo da experiência de vida, conhecimento, valores, o texto pode trazer reflexões distintas para cada leitor.

          O professor Henrique, da trama, morreu acreditando no poder da literatura. Acreditando que os livros podem trazer algo a mais para as pessoas. Como professora de literatura, eu também acredito, tanto que selecionei O avesso da pele, entre tantas outras obras, para concluir uma discussão com meus alunos sobre “o que é literatura? ”.

            Fica claro, em meio às discussões ocorridas, que o ponto central do problema é o racismo estrutural que persiste no país, apesar de a abolição da escravatura ter ocorrido no Brasil há quase um século e meio. O preconceito ainda é muito presente, quando autoridades, em sua maioria homens brancos, tentam cancelar um livro que tem tanto potencial para ensinar a estudantes em sala de aula.

 

*Professora de Literatura e doutoranda em Estudos Literários, no Programa de Pós-graduação em Letras, da Universidade Estadual de Maringá

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *