“Qualquer posicionamento é um posicionamento político. Não se posicionar também é um posicionamento, porque a gente sabe que neutralidade não existe. […] Acho que não só a arte ou os artistas, como também os pesquisadores, a pesquisa, a intelectualidade, a ciência. Estão nas mãos desses sujeitos as resistências. Eu acho que a resistência se dá, como diria Bakthin, pelo amor, pela amorosidade, por aquilo que parece frágil, a flor que fura o asfalto, para lembrar Drummond.”

Luciane de Paula é professora do curso de Letras e do Programa de Mestrado Profissional em Letras – PROFLETRAS – da Unesp/Assis e do Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Unesp/Araraquara, onde realizou seu mestrado e doutorado. É pós-doutora pela Université François Rabelais – França. Entre suas publicações, destaca-se a Série Bakhtin Inclassificável, com quatro volumes.  Suas pesquisas têm se pautado na Análise Dialógica do Discurso (ADD), investigando, sobretudo, a verbivocovisualidade da linguagem em enunciados estético-midiáticos. Com o título “Os estudos bakhtinianos em três dimensões: a unidade arquitetônica sincrética em cena”, Luciane de Paula foi a convidada para entrevista-aula em comemoração dos cinco anos d’ O Consoante.

por Anna Larissa Rodrigues, Bruno Barra, Edson Romualdo (part. especial), Geysa Barbosa, Jennifer Marinho, Laís Mikeyla, Neil Franco e Thaís Schoffen

O Consoante: De acordo com pesquisadores, as ideias de Bakhtin entraram no ocidente a conta-gotas, com a tradução de seus trabalhos sem nenhuma ordem cronológica ou temática, feita por tradutores que desconheciam o conjunto de suas ideias, criando, segundo os críticos, uma forma muitas vezes caótica de apropriação de seu pensamento. Como você, enquanto estudiosa de Bakhtin, vê a entrada e o crescimento do uso de suas ideias no Brasil?

Luciane de Paula: Essa pergunta já tem em si uma resposta. O Círculo teve uma repercussão, não só no Brasil, mas no mundo todo, a conta-gotas e de certa forma caótica, porque não se tinha o acesso a seus textos. Os arquivos foram abertos depois e os textos do Círculo acabaram chegando a nós conforme foi possível. Discute-se muito ainda a respeito da nomeação do Círculo “de Bakhtin”. No entanto, não entrarei nessa seara porque importa mais as reflexões geradas em conjunto que aparecem sempre em convergência e continuidade nas obras assinadas pelos diferentes integrantes do Círculo. Bakhtin apenas viveu mais e tornou-se o autor do grupo, a autoridade da autoria, do ponto de vista filosófico. Porém, a primeira recepção que temos no Brasil dos trabalhos do Círculo, entre os anos de 1970 e 1990, veio com autorias trocadas, como Marxismo e filosofia da linguagem, que chegou com autoria de Bakhtin. Hoje, sabemos que é de Volóchinov. Não tivemos, no começo, acesso ao material de forma cronológica de autoria ou tradução direta. Os textos russos foram aparecendo de maneira esparsa nos diferentes lugares do mundo, e chegaram no Brasil por traduções de traduções – principalmente francesas – e em fragmentos. É preciso entender que o Círculo foi realmente círculo de pensamento que fazia movimentar uma ideia de vida e de mundo pela linguagem. Portanto, o nome de um abaixo do texto não desautoriza os dos outros. Para fins didáticos, dividirei em três momentos a recepção dos estudos do Círculo no Brasil. No primeiro, já parcialmente caracterizado, Bakhtin chega à margem ainda de uma maneira lida por alguns intelectuais que tiveram acesso àquilo que estava sendo discutido na Europa. É importante ressaltar que quando essa proposição de linguagem e de estudo chega aqui, vivíamos a Ditadura Militar, momento em que nas escolas estudava-se comunicação e expressão, ainda longe de se refletir sobre língua e linguagem. A Linguística como conhecemos hoje não tinha lugar em meio às censuras, o que nos permitiu apenas contatos com fragmentos de textos bakhtinianos em algumas universidades. Por exemplo, quando me formei na graduação, em 1997, não tive nenhum contato com ideias de Bakhtin, nem se cogitava falar disso. Então, essa primeira recepção das reflexões do Círculo no Brasil entrou aos poucos na academia, por tratar-se de fragmentos de outras leituras e por não encontrar aqui um contexto favorável a tais pensamentos. Em 2002, há uma abertura dos arquivos do Círculo por estudiosos como Craig Brandist, por exemplo, entre outros, que revisitam os estudos e promovem uma segunda recepção desses materiais no mundo. No Brasil, essa recepção compreende os anos 2000 a 2010. Inicia-se um processo de traduções diretas e separações de autorias, e aqui no Brasil, inicia-se a constituição daquilo que Beth Brait chama de Análise Dialógica de Discurso como uma forma de marcar o nosso lugar, o jeito que a gente olha o discurso, já que aqui os estudos de Bakhtin fazem parte da seara discursiva. Isso não acontece em outros países, como, por exemplo, na Itália, onde Bakhtin é visto como um teórico da literatura e semioticista, ou na França, em que é visto como filólogo. Boris Schnaiderman, Carlos Alberto Faraco, João Wanderley Geraldi, Beth Brait, Roxane Rojo, Irene Machado são nomes importantes que contribuíram para essa recepção brasileira e constituição da Análise Dialógica de Discurso. Hoje, como parte da terceira recepção, dos anos 2010 a 2020, temos um maior acesso a traduções diretas com críticas, por exemplo, de Paulo Bezerra, Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo, que além de tradutores, são estudiosos que pensam criticamente aquilo que traduzem, produzindo introduções e notas de rodapé fantásticas, que nos ajudam a entender o percurso desses textos. O que, é válido salientar, não invalida outras traduções anteriores, uma vez que para Bakhtin o discurso se constitui justamente no embate de diferentes vozes. E nessas traduções temos vozes que vão pensando Bakhtin em diferentes culturas e contextos. No Brasil, temos uma heterogeneidade bastante rica para se pensar as traduções e se pensar em uma voz bakhtiniana brasileira. Nesse momento temos pesquisas que têm se voltado a uma revisão historiográfica que caminham pelo campo da filologia, que é muito importante por investigar como e de onde veio um documento/texto, contextualizar, afinal, todo enunciado é situado. Minha proposta de reflexão é a respeito do que os estudos bakhtinianos, hoje, ainda me apresentam, de maneira ainda não vista ou, se vista, ainda não elaborada. Penso em qual pode ser minha contribuição para esses estudos e é a partir dessa perspectiva que eu estudo a verbivocovisualidade, que para mim é uma dessas questões que estão lá no Círculo e que não foram exploradas, isto é, eu a nomeio assim, mas a concepção já está lá.

OC: Sabe-se que a linguística, durante muito tempo, não teve como objetivo de análise o olhar exclusivo para as relações eu/outro. Já os estudos do Círculo de Bakhtin buscam dar certa ênfase a essa relação. Em seu artigo intitulado “‘Achadouros’: uma leitura bakhtiniana do contradiscurso das memórias da infância de Manoel de Barros”, há momentos em que você cita essa relação eu/outro. Como se dá essa relação eu/outro e como você a vê dentro das teorias bakhtinianas? 

Luciane de Paula: Novamente, a resposta está na pergunta. Sim, a linguística, por muito tempo, inclusive por uma tradição de um pensamento estruturalista do que é fazer ciência, da tentativa de objetividade que a gente sabe ser impossível, se apartou do homem, do mundo e das relações entre os sujeitos e as valorações. É exatamente aí que se encontra a riqueza do pensamento bakhtiniano, aquilo que eu chamo de proposta dialético-dialógica. Brigam comigo dizendo que é só dialógica porque há alguns trechos, em alguns textos, em que tanto Bakhtin quanto os outros integrantes (do círculo) vão criticar a dialética. Eu também encontro, no entanto, outros momentos em que a dialética aparece contemplada nos estudos. Mas acima de tudo eu entendo que a proposta foi composta dentro do que a gente chama de materialismo histórico-dialético. E, nessa perspectiva, não dá pra pensar essa dialogia separada da dialética. A grandeza é exatamente centrar-se no jogo eu-outro, e nesse jogo não chegar a uma síntese como fechamento, até porque a própria dialética não é assim. A síntese não é conclusão. A síntese é a construção de uma nova proposição, portanto, de uma nova tese em que o outro, quando recebe a voz do eu, pensa, elabora, responde a esse eu, que já alterado pelo outro, também volta a responder. Esse jogo, que não acontece em um mesmo nível, mas em forma de espiral, que aparece como proposta bakhtiniana. O sujeito volta a fazer parte porque a voz social é importante. Se quero falar de um organismo vivo, não dá pra eu separar, tirar o homem, porque é por meio do homem, com o homem, no homem, que a língua vive. Essa é uma característica nossa, que inclusive nos distingue de outros animais. É a articulação da linguagem. É interessante porque Benveniste já falava disso também. Nesse esquema em que coloco “eu-outro/tu”, e um “ele” separado, é porque eu estou pensando na contribuição de Émile Benveniste, que vai falar de sujeitos do discurso. É claro que quando ele fala isso, não pensa na concepção de discurso como nós entendemos hoje. Ele está pensando na língua ainda, nas pessoas gramaticais, nos pronomes eu, tu, ele. E Benveniste vai dizer que o “ele” é a não pessoa do discurso porque o “eu” fala com alguém, o “outro”, o “tu”, com quem eu falo, sobre algo ou alguém. Então o “ele” é o assunto, não é sujeito, porque não faz parte da interação. Temos aí o gérmen da ideia de diálogo, da ideia de interação humana e de interação de linguagem. Um jogo que é inacabado, que não tem ponto final, mas tem acabamento. E esse acabamento aparece, dependendo da esfera, do gênero, do propósito, ou seja, do projeto de dizer autoral, da arquitetônica que se constrói e que manifesta esse discurso. E é desse ponto de vista, que o sujeito, para Bakhtin, é no mínimo dois: “eu-outro”. Agora, esse “eu-outro” não é necessariamente “eu-outro” externos, porque também temos que pensar as relações internas e externas tão importantes e tão trabalhadas pelo Círculo. O meu “outro” interno. Não sou tão esquizofrênica assim e imagino que todos nós cantamos debaixo do chuveiro, conversamos conosco olhando no espelho, falamos sozinhos. Nós não estamos falando sozinhos, mesmo um monólogo solitário é dialógico. É esse “eu-outro” interno. A gente projeta o que vai dizer para o outro quando está sozinho, mas quando chega para falar com o outro, a interação concreta é diferente porque esse outro agora é um outro externo e essa manifestação de linguagem se faz de uma maneira diferente. Portanto, esse sujeito é no mínimo dois. Eu costumo dizer que é um sujeito de linguagem que reflete e refrata o sujeito humano. Não é o sujeito de carne e osso, porque eu não consigo saber a totalidade do sujeito a partir do texto. Eu consigo saber facetas desse sujeito. Eu olho por determinada entrada. Eu não tenho o ângulo de visão de 360° graus pelo texto, qualquer que seja esse texto: imagem, som, escrito, oral, não importa. Esse sujeito é um sujeito que, de alguma forma, semiotiza, reflete e refrata o sujeito humano, o homem ou parte dele, visões de mundo, valores desse homem, olhares específicos de sujeitos, de grupos, de classes. Por isso que marco a ideia do sujeito de linguagem, porque o mundo e a própria realidade só fazem sentido quando o homem enuncia. Só fazem sentido pela linguagem, por meio da linguagem. Todo o contexto à minha volta só tem sentido quando eu enuncio, reflito sobre ele, me posiciono e aí está a não escapatória, o não-álibi de se colocar como responsável. Esse sujeito é responsável por aquilo que enuncia. No entanto, ele não é responsável pela maneira como o outro escuta, porque o outro vai ouvir a partir da vivência dele, da visão de mundo dele, da experiência dele. Então aquela frase famosa “A gente tem que se colocar no lugar do outro” é também uma falácia. A gente pode tentar imaginar qual é o lugar do outro, mas a gente não teve a história concretamente vivida, experimentada, do outro. Como ele também não tem a nossa. É por isso que em Estética da criação verbal, em ensaio sobre as Ciências Humanas, Bakhtin vai dizer que é impossível a gente pensar uma identidade igualitária ou um amálgama entre o eu e o outro. Mesmo que seja uma distância mínima, ainda assim é uma distância. Por isso ele vai dizer que, ao mesmo tempo em que esses sujeitos constroem, no discurso, um enunciado como um elo, na relação com a história, com outros sujeitos – e essa é uma característica do enunciado – essa construção é também singular, porque se dá a partir de um olhar e de uma vivência.

 

OC: Um dos conceitos que marca a sua carreira como pesquisadora é o da tridimensionalidade para compreender a concepção de linguagem proposta na elaboração da filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin, o que é, de certa forma, revolucionário dentro da academia, uma vez que a maioria dos pesquisadores da área se limitaram apenas ao conceito bidimensional de verbo-visual. Essa tridimensionalidade consiste nos aspectos semântico, sonoro e imagético que você tem analisado, a partir de seus trabalhos, em diversos textos, dos mais variados gêneros e esferas sociais. Como podemos compreender cada um desses aspectos na perspectiva bakhtiniana, tanto enquanto conceitos isolados quanto como parte de uma tridimensionalidade da linguagem?

Luciane de Paula: Tem gente que vai odiar e dizer que isso não existe, que estou forçando a barra, que isso não existe no Círculo, que esse tema aparece a posteriori. Como tem aqueles que vão dizer “eu enxergo isso”, e é importante que todas essas vozes apareçam. Eu agradeço muito vocês acharem que é revolucionário. Eu também acho que é, mas porque Bakhtin é revolucionário quando traz essa questão. Na verdade, trabalhar com música, com a parte da vocalidade, talvez seja a parte mais difícil para nós, porque diante das linguagens, talvez a mais abstrata seja a música, como vários estudiosos já dizem. E porque nós não temos, aqui no Brasil, uma cultura de estudo musical. Não temos muita noção disso, não temos na nossa formação de educação básica. Não há conhecimento de teoria musical, de leitura de partitura, ou da construção do hábito de se ouvir determinadas musicalizações. Talvez, por isso, ela tenha ficado “de fora”. Mas isso não significa que estava de fora dos estudos do Círculo, pelo contrário. Temos musicistas como Sollertinski e, mesmo, Bakhtin, que estudou e deu aulas de música. Há muitas apropriações de conceitos de outras áreas, muitas vezes vindos da música, para se pensar a linguagem. Podemos dizer que uma das mais conhecidas é a polifonia, mas não a única. Há a voz social e a entonação, marcada na oralidade, mas que está também no texto escrito e em outras materialidades. Não é à toa que Bakhtin, em Dostoiévski, vai dizer que a leitura em voz alta é importante. E ele fala não só sobre a importância do material, como também que esse material é consciência. A constituição da consciência se dá sempre por um material semiótico. Ou seja, mesmo quando eu pego a noção de signo saussuriana, eu já tenho ali uma ideia daquilo que eu tenho chamado de potencialidade da linguagem. Ela pode até não estar necessariamente marcada de maneira explícita num determinado enunciado, mas ela aparece na minha consciência. Por exemplo, quando eu falo uma palavra, mentalmente construo a imagem desse lexema no mundo, a partir de um determinado recorte. E eu pronuncio isso com uma construção de combinações sonoras, com uma determinada ênfase prosódica, em que inclusive é possível marcar o tal do emotivo- volitivo sobre o qual o Círculo fala tanto e trabalhamos pouco. Quando pensamos nessa questão da construção da língua e da linguagem, isso já está lá. O que o Círculo faz, a meu ver, é propor isso como concepção de linguagem e também propor como trabalhá-la. Isso fica explícito em diversos trechos das obras do círculo, como nesta passagem de Bakhtin: “Todo sistema de signos (isto é, qualquer língua), por mais que sua convenção se apoie em uma coletividade estreita, em princípio sempre pode ser codificada, isto é, traduzido para outros sistemas de signos (outras linguagens); consequentemente, existe uma lógica geral dos sistemas de signos, uma potencial linguagem das linguagens única (que, evidentemente, nunca pode vir a ser uma linguagem única concreta, uma das linguagens)”. É por isso que eu digo que existe a potencialidade tridimensional da linguagem (as dimensões sendo a verbal, a vocal/musical e a visual) e em alguns enunciados elas se explicitam na unidade enunciativa. O maior exemplo é o audiovisual. Eu acredito ainda que, se o círculo estivesse estudando hoje essa proposta, talvez não fosse o romance o gênero eleito, porque eu penso no desenvolvimento das tecnologias e das redes sociais, no sincretismo das linguagens e na multimodalidade que temos hoje e que não existiam naquele momento histórico. Não significa que naquele momento já não existisse uma visão sobre isso, são coisas diferentes. Bakhtin até afirma: “é indiscutível a potencial linguagem das linguagens”. Portanto, em cada texto, há um sistema de linguagem. Alguém ainda pode dizer que estou reduzindo vocalidade à prosódia. Não estou reduzindo e nem descartando, porque não dá para descartar a leitura em voz alta, o “bom dia” falado com gestos, tom e expressão facial. Bakhtin também faz isso, comentando sobre o sistema da língua. A pausa entre as orações simples, marcadas por travessão, transmite a expectativa diante da surpresa. O que tem de ser expresso na leitura dramática por meio da entonação, da mímica e do gesto. Na apresentação desse período, a mímica e o gesto estão pedindo para serem usados – não dá para desprezá-los. É importante mostrarmos que o Círculo vai pegar algumas questões no próprio sistema para extrapolar. Vai do linguístico para o translinguístico. Quando pensamos, por exemplo, na escrita em caixa alta, negrito e com exclamação que vemos nas redes sociais: é o grito, a marca de vocalidade na grafia. E essa vocalidade está associada também à oralidade, porque em aplicativos como o WhatsApp, em que conversamos com o outro, não estamos escrevendo, estamos falando. A relevância é se pensar na capacidade de abarcar enunciados de materialidades diferentes, na análise dos diversos campos da cultura, e na abordagem global do enunciado. Não é só o que Bakhtin e o Círculo fizeram, mas o que nós fazemos com isso. Quando eu penso na verbivocovisualidade e analiso um enunciado como uma canção, eu não posso pensar só na sua letra, só na sua musicalidade ou só nas imagens de seu videoclipe. Eu tenho de entender a unidade enunciativa como um todo. Não dá para não pensar, por exemplo, na coloração em “50 tons de cinza”. Não é à toa que Bakhtin também falava de Goethe, que estudava cor. Ele era estudioso de física e dialogava com Einstein para falar da coloração. Temos também Kandinsky, que associava formas geométricas, linhas, cores e pontos para pensar a música nas suas pinturas. Muitos de seus quadros são chamados de composição. E em seu texto chamado “Ponto, traço e forma”, ele mostra o que significava o que, qual era a forma que ele usava para dar movimento de balé, de sinfonia ou de tons musicais. Ele passou a pensar a escala cromática junto com a escala musical, sendo um dos grandes nomes da escola de Bauhaus. Voltando a comparação entre os “50 tons de cinza” e rosa. Ao falar da literatura dirigida às mulheres ou de filmes de comédia romântica, vemos fortemente a presença dos tons de rosa. Já o cinza, misterioso e frio, é usado em temas opostos. A valoração da personagem principal, Anastasia, é toda em rosa: sua fragilidade, sua delicadeza, sua insegurança. Em contraposição com Grey, que representa a valoração ideológica dos tons de cinza. Nesse momento da minha pesquisa, estou entrando nas metodologias, em como vou trabalhar essa concepção de verbivocovisualidade. Algumas pessoas me criticaram num primeiro momento por não trabalhar a materialidade, alegando que sem isso, não seria Bakhtin. Mas eu precisei, primeiro, historicizar, conceituar e ver como isso estava no círculo, para agora ir para o material e pensar nas formas de trabalho. É pegar o plano, a cor, a nota musical. É entender isso na unidade.

OC: No artigo intitulado “A vida na arte: a verbivocovisualidade do gênero filme musical”, Paula e Serni afirmam que “Na arte, o discurso interpreta a vida, de maneira a dialogar com o social” (p. 185). Neste momento em que muitas vidas e mortes são banalizadas, e o tecido social precisa de muitos remendos, quais os desafios das artes e dos artistas frente a essa realidade?

Luciane de Paula: Eu sempre acho que é a arte que resiste. Sempre. Sartre tem um texto de que gosto muito, chamado “Que é a literatura?”, em que ele se coloca como autor engajado. Ele vai dizer: o autor é o sujeito engajado. O grande autor é engajado ao social. Não necessariamente ao político-social, político-partidário. Mas não é só o partidário que é político. Qualquer posicionamento é um posicionamento político. Não se posicionar também é um posicionamento, porque a gente sabe que Neutralidade não existe. Quando alguém diz “Ah, o que você tá fazendo não é ciência” ou “Isso que você tá fazendo é panfletário”, eu sempre digo: “E o que não é?”. Então, respondendo à pergunta, acho que não só a arte ou os artistas, como também os pesquisadores, a pesquisa, a intelectualidade, a ciência. Estão nas mãos desses sujeitos as resistências. Eu acho que a resistência se dá, como diria Bakthin, pelo amor, pela amorosidade, por aquilo que parece frágil, a flor que fura o asfalto, para lembrar Drummond. Mas alguém poderia dizer assim: “Nesse contexto em que a gente está vivendo, se dizer engajado, ou de esquerda, é perigoso”. Sim! Mas viver é perigoso. Só não é perigoso se a gente resolver se trancar dentro de casa, deitar no caixão e esperar morrer. Sem se mexer e sem reclamar. Porque qualquer outro ato é um ato de posicionamento, inclusive esse é. A gente tem que ter essa coragem de começar a admitir e a dizer as coisas que a gente faz. Estou falando isso porque assisti ao Roda Viva com o (Marcelo) Adnet e ele disse que é de esquerda. E o (Marcelo) Tas falou para ele: “Ah, eu gostava tanto de você, mas agora sabendo que você é de esquerda não gosto mais tanto”. Isso deu uma celeuma. Depois, “coincidentemente” (que, sabemos, não foi coincidência), ele [Adnet] disse que estava cansado e ia parar, e de fato parou, de fazer o programa que estava fazendo todos os dias em casa. Alguns vão dizer: “Ah, ele estava cansado mesmo”. Outros vão dizer: “Não. Foi a Globo que deu uma chamada”. Seja como for, censura da emissora ou autocensura, foi uma censura. Agora peço licença para sair um pouco de Bakhtin e entrar em Foucault. Para mim, a grande questão não é a macrocensura, mas é a micro. A questão é quando nós nos punimos, é quando nós nos vigiamos, é quando nós nos autocensuramos. “Ah, eu não posso falar de tal tema porque senão vão me chamar de não sei o que”, “Ah, eu tenho que me policiar agora porque as aulas estão sendo gravadas e daí vou entrar para a lista de antifas”. Quando começou essa história de denunciar e delatar professores, por exemplo, eu entrei numa sala de graduação em que eu sabia que tinham alguns sujeitos ali com posicionamento favorável à delação e disse: “Olha, meu nome é Luciane de Paula, meu CPF é tal. Se quiser pode dar o meu nome porque eu tenho autoridade dentro de sala de aula”. Não do ponto de vista autoritário, mas do ponto de vista da liberdade de cátedra. Porque ensinar é deixar aberta a ágora. E isso significa me posicionar e também ouvir o posicionamento do outro. E esse posicionamento pode ser contrário ao meu sem problema algum, desde que a gente converse sobre ele. Diálogo. Não diálogo como consenso. Diálogo como embate. Diálogo bakhtiniano. Para mim essa é uma postura ética e responsável não só como educadora, mas como pessoa, como sujeito. Eu acho que alguns artistas tentam sair um pouco disso, com medo de represálias, o que também é bastante compreensível e comum, e eu respeito. Outros artistas e intelectuais enfrentam isso. E eu cito um que diz nunca ter pensado em viver de novo aquilo que já viveu, outrora, na época da ditadura militar, com pessoas pedindo intervenção, por exemplo. É Arnaldo Antunes, com seu último trabalho se intitulando “O real resiste”. Na letra da canção, ele coloca coisas que existem e que não existem para dizer o que é real e o que não é.  É interessante porque o Arnaldo é um poeta que a gente pode considerar como neoconcreto, de alguma forma, ou pelo menos alguns dos seus trabalhos. Ele tem uma influência muito forte principalmente do Augusto e do Haroldo de Campos. Arnaldo vai falar da palavra-coisa, por isso eu o trouxe, e não outro, para pensar essa palavra que não é intermédio, mas que é o sujeito, que é o mundo. A palavra pedra não é só uma palavra, é a própria pedra para a poesia concreta. É da poesia concreta que eu retiro o termo verbivocovisualidade, utilizado por Haroldo, Décio e Augusto no livro Tratado de poesia concreta, em que eles vão, de fato, apresentar o projeto conceitual da poesia concreta brasileira nos anos 50 e fazer exposição de poesia concreta, transformar o verbal em artes plásticas e em música. E Arnaldo tem o trabalho “Nome”, que foi o primeiro depois que ele saiu dos Titãs, em que ele faz exatamente isso. Eu digo isso porque penso que não era para gente assistir ao vídeo, escutar o CD e ler o livro separado. Era para fazer isso junto, porque o projeto era, exatamente, mostrar essa unidade como tridimensional, essas três dimensões exacerbadas. Arnaldo é um desses artistas que vai mostrar o quanto a arte resiste. É ela que nos coloca nesse lugar.

 

OC: Em seus estudos de análises midiáticas, em especial filmes e canções, você aborda a construção do sujeito em Bakhtin que é refletido e refratado por essa cultura colocada à luz nos cinemas e plataformas sociais. Como os elementos tridimensionais de filmes, por exemplo, das princesas da Disney e das heroínas da DC Comics e Marvel, mencionadas em seus artigos, são de fato influentes na construção do sujeito social refletido e refratado por esses elementos culturais e podem funcionar como “exemplos” a serem seguidos?

Luciane de Paula: A Mulher Maravilha foi, para se ter uma ideia, eleita representante na ONU, como um ícone de empoderamento para as meninas. Então, eu fico imaginando meninas que sofrem abuso, por exemplo, ligarem para a mulher maravilha para denunciar. Claro que eu estou sendo bizarra, mas é porque a situação é bizarra (risos). Não dá para ligar para um personagem. Mas é só para tentar mostrar o quanto isso tem uma força. Os super-heróis, especificamente, foram criados e usados, principalmente na época da segunda guerra e pós segunda guerra, exatamente como ícones de determinado superpoder de uma nação, que no caso é a estadunidense. Isso aparece na roupa da Mulher Maravilha, como aparece na roupa do Super-Homem ou do Capitão América, por exemplo. Agora, me incomoda muito na Mulher Maravilha a valoração, porque parece que se sai de uma ideia de princesa, que é frágil, que é aquela que fica esperando o príncipe encantado, que não age, para uma mulher que é amazona, guerreira, que tem superpoderes. No entanto, as primeiras HQ’s e a criação dela feita pelo Marston mostram uma relação de sadomasoquismo. Os braceletes da Mulher Maravilha se chamam braceletes da submissão. Nas lutas, ela sai perdendo quando está de costas, amarrada, de quatro. Essas questões não são colocadas, e para mim, eu não vejo nada de empoderamento. As contradições vão aparecendo. Fica a impressão de que eu estou saindo de um ícone para colocar um outro com outra valoração.  No entanto, a valoração é a mesma, de alguma forma, não a mesma porque não é nunca igual, mas diríamos que no mesmo escopo. A gente vai vendo como isso vai sendo transfigurado, apropriado e ressignificado ao longo da história. E em brinquedos, isso é muito forte. Outro objeto de estudo tem sido a Barbie Fascista, e para isso precisamos estudar a história da boneca Barbie. Não é à toa que a gente fala “Ah, fulana é uma Barbie”, como se disséssemos “Uma Patricinha”. A gente também usa esse termo [Patricinha]. Eu acho que eu nem preciso dizer o quanto a gente tem de reflexo e refração nesse caso. Por exemplo, a Barbie, atualmente, tem, para um determinado grupo social, de alguma maneira, uma conotação positiva, enquanto, para outro grupo, uma imagem negativa. Como é que a indústria faz para tentar abarcar esse nicho de mercado? Coloca a Barbie com deficiência física, a que tem vitiligo, várias. Então a Barbie não é só loira, branca, alta e com um tipo de corpo. Ela é negra, ela é assim e assado. A aparente heterogeneidade está aí.  E ela se baseia na mulher real. No entanto, ela não é a mulher real. A mulher real se transforma ou tenta, por meio de plásticas, remédios, regimes os mais diversos para se tornar Barbie. A indústria farmacêutica, a indústria de cosméticos e a indústria de cirurgia plástica não vão nunca querer perder esse nicho e essa ideia, esse modelo de beleza inalcançável. A Barbie nunca envelhece, é a mulher plastificada. Plastificada mesmo, cheia de botox para não ter rugas, sem expressão, ela é artificial. Não é à toa essa denominação. Então, quando vocês me perguntam como é que a gente pode ver esse reflexo e refração? Assim. Quando a gente começa perceber mecanismos, hábitos, práticas sociais que nos levam, por exemplo, como acontecem com algumas meninas, com algumas mulheres, a fazer não sei quantas cirurgias para ficar exatamente como a Barbie e ser considerada a Barbie viva, cosplay. Isso está tão na moda: cosplay dos mais diversos.

OC: Assim como no filme Nerve, as obras artísticas podem refletir e refratar práticas sociais existentes. Você acredita que possa existir uma linha tênue e perigosa entre o sujeito espectador entender a narrativa fílmica não apenas como uma crítica, mas também como uma normalização das ações problemáticas de cunho social?

Luciane de Paula: Eu acho que o signo é sempre bivocal. Então não dá pra ter uma única significação e uma única leitura. Quando assisto Nerve ou You ou outro enunciado crítico, entendo e vejo aquilo como “Olha, eu vou te mostrar, vou trazer à tona, para você ver o quanto é problemático”. Mas tem gente que vai dizer que não. Por exemplo, o filme “Mignonnes”, em português “Lindinhas”, da roteirista e diretora franco-senegalesa Maïmouna Doucouré, gerou toda uma polêmica este ano (2020) por conta das tomadas de crianças francesas, e a diretora fez uma pesquisa porque ela queria criticar o quanto as meninas se transformavam, se adultizavam muito rapidamente para serem vistas e valorizadas. Ao mesmo tempo, as tomadas de câmera e a maneira como o filme foi feito foram criticadas por muita gente que não entendeu da mesma forma. O mesmo pode acontecer com Nerve ou com qualquer outro enunciado. Sobre You, que é aquele seriado “Você”, de duas temporadas, o próprio ator teve que ir às redes sociais dizer: “Gente, vocês estão falando que ele é romântico, que ele é o máximo, mas ele é um psicopata”. O próprio ator teve que dizer isso porque muita gente estava assim: “Aí, eu queria um homem desse, ele é tão carinhoso, ele é tão cuidadoso”, porque tem a romantização do abuso, que a gente não pode esquecer e que é difícil para algumas pessoas verem porque elas estão tão entranhadas numa valoração abusiva que elas não enxergam mais determinadas ações como abuso. Já as naturalizaram em um mundo patriarcal machista. Eu vejo que nem sempre as críticas são vistas de determinada maneira. Tem gente, e sabemos disso, que lê o texto do Hitler e que vai dizer que o Nazismo é de esquerda. É aquilo que eu falei anteriormente: “Eu sou responsável por aquilo que eu digo, mas eu não consigo ser responsável por aquilo que o outro entende daquilo que eu digo”. Às vezes se diz algo como elogio e o outro fica bravo, e eu falo: “Gente, mas eu estava elogiando”. Porque depende da vivência.  Porque o ato é singular. Então isso acontece com qualquer enunciado.

OC: Os artigos “O signo resistência nas eleições presidenciais de 2018 no Brasil”, “Minions nas telas e bolsominions na vida – uma análise bakhtiniana” e “A eugenia de Bolsonaro – leitura bakhitiniana de um projeto de holocausto à brasileira” têm, sob o olhar da analista, determinados sujeitos e seus discursos muitas vezes carregados com certa violência simbólica (em seus gestos, suas expressões corporais, suas palavras – quase sempre polêmicas). Não é difícil encontrar quem procura sustentar uma espécie de álibi para justificar esses atos. Pautando-se no que Bakhtin postula em Para uma filosofia do ato [responsável], o que você poderia nos dizer sobre o não-álibi de nossos atos discursivos?

 

Luciane de Paula: Nenhum enunciado é sem querer. Quando eu falo “enunciado” não estou falando apenas sobre o que a gente diz e escreve. Estou falando do silêncio, da pausa, da expressão corporal e facial, dos gestos, da própria respiração, mais ofegante ou não. Essas questões todas são enunciados. Todas elas significam e eu sou responsável por elas. Não há álibi da existência, como diria Bakhtin. Dessa forma, quando pensamos, por exemplo, que o fogo na Amazônia, no Pantanal, em Minas e no país inteiro “não é problema meu”, somos responsáveis por dizermos isso e não adianta dizer que foi sem querer, que não pensou, que não tinha entendido. Permitam-me, mas não dá para dizer que: “Eu votei no Bolsonaro porque eu sou antipetista e eu não sabia que ele iria fazer essas coisas”, porque se tem uma coisa que ele não fez foi nos enganar. Ele sempre disse que queria matar, no mínimo, 30 mil, que ia perseguir, que as mulheres têm que ganhar menos etc. Não dá para ter um álibi e dizer que foi um voto de protesto. Estou dando esses exemplos para pensar qualquer ato, e esses atos, quaisquer que sejam eles, para aqueles sujeitos que os cometem, que enunciam esses atos, eles são éticos. Determinado ato não é ético para mim, mas se eu perguntar para o Bolsonaro, ele irá jurar que está fazendo o melhor para o Brasil, porque o melhor para ele não é o que eu entendo como sendo melhor para mim. Ele irá achar que está defendendo o Brasil, enquanto que, para mim, ele está destruindo, porque as lógicas são outras, a vivência é outra, é singular, ou seja, para mim o que é antiético, para ele é ético. Seja como for, o Bolsonaro é responsável, para o bem ou para o mal, não importa, assim como eu e todos os sujeitos. Também não dá para dizermos que esse sujeito, da posição que ocupa, que é a de um chefe de Estado, presidente da nação, não esteja fazendo nada, porque ele está fazendo, está destruindo. Nada melhor do que uma pandemia, para justificar para esse sujeito, agora sim como “álibi”, que não foi ele quem matou, foi o vírus. “Para que eu vou combater o vírus, se eu quero fazer uma limpeza social, eugênica?” Porque esse vírus vai atacar mais quem está em situação de vulnerabilidade, populações ribeirinhas, povos indígenas, negros e sujeitos periféricos, que não têm estruturas e são obrigados a saírem para trabalhar. Há, também, os entregadores de aplicativo. E daí a gente fala: “Eu estou fazendo a minha parte, não estou saindo, mas estou pedindo comida para o entregador”. Como isso funciona? Nada melhor do que não combater. Mandar tomar cloroquina, que também ajuda a matar mais e deixar o vírus fazer a parte dele, porque já morreu muita gente. Ninguém vai culpabilizá-lo, ele não se sente responsável. “É o vírus”. E, para um grupo de pessoas, ele ainda é considerado o melhor presidente, o governo que melhor soube lidar com a pandemia, porque ele estava preocupado com a economia. Aqui entra aquela questão da valoração: o que interessa? Aquilo que eles chamaram de “CPF’s” ou “CNPJ’s”? É a total inversão. E aqui lembramos Marx: fetiche da mercadoria, porque quando a vida humana não produz riqueza para quem tem as condições de produção, ela não vale nada, e se ela não vale nada, ela pode morrer. Por que quando eram as pessoas com dinheiro que estavam fora do país e que quando voltaram trouxeram o vírus, ele [o presidente] estava todo preocupado, mas quando o vírus se implantou no país e atingiu principalmente as camadas populares, ninguém sabe e ninguém viu, não é mesmo? Por isso virou uma situação de calamidade, porque, afinal, as empresas estão na UTI, não tem auxílio emergencial para a população, mas tem para as empresas de grande porte. Há uma valoração e há um ato de fazer muito claro, como prática desse sujeito, e a prática de não fazer é o fazer dele. É porque quer matar mesmo, é necropolítica, é o fazer da morte. Nós vamos juntando vários atos e vamos mostrando como é a ética desse sujeito. Há pessoas que vão dizer que não dá para falar que é fascismo ou neonazismo, porque esses foram governos historicamente datados, mas sim, dá para dizer sim. Quando estudamos história e vamos ver o que é fascismo e o que é o nazismo, é isso. Então, é desse ponto de vista que podemos pensar que esse sujeito é responsável e que nós também somos responsáveis. Não estou tirando a nossa responsabilidade. Por isso a importância da resistência, da arte, da intelectualidade e do engajamento sobre os quais estávamos falando.

OC: Nesse momento, estamos realizando uma prática dialógica denominada por nós de “entrevista-aula”, que apresenta características próprias de ordem temática, composicional e de estilo. À luz da teoria bakhtiniana e dos conceitos de intergenericidade, interdiscursividade e intertextualidade, teríamos aqui o surgimento de um gênero híbrido ou talvez o nascimento de um gênero novo? Sabendo que “o discurso é um dispositivo, sobretudo de criação de mensagens em contextos culturais específicos”, e que nosso contexto possibilitou a existência dessa prática “texto-voz-imagem”, o que você pode pontuar a respeito desse gênero como estrutura arquitetônica configurada verbivocovisualmente?

 

Luciane de Paula: Trata-se de um gênero híbrido e é um gênero novo, as duas coisas. É um gênero que está nascendo com a prática de vocês já há cinco anos, e vocês não só vão inaugurar como também consolidar essa prática. Por exemplo, eu nunca participei de uma prática como essa, mas pode ser que eu comece a fazer entrevista-aula também, por que não? Ou outras pessoas. Então é um gesto inaugural e O Consoante está de parabéns por isso! Esse gênero novo se constrói pela hibridez, ou seja, do meu ponto de vista, ele é híbrido e novo, exatamente porque ele é multissemiótico. Acredito que, nesse contexto, em que temos as redes sociais, vamos usá-las não só como boot para o mal, mas também como ferramentas de questões importantes, e é o que vocês estão fazendo. Quando pensamos nesse contexto, temos tudo aberto, possibilitando essa nova prática. Quanto à questão da verbivocovisualidade, só vou reforçar que não precisa, necessariamente, estar explícita. No caso da entrevista-aula, ela é explícita, porque temos aqui o tom da nossa voz, o gesto, a expressão, a roupa que estamos usando, a posição da câmera etc. Tudo isso faz parte da cenografia que compõe a entrevista-aula, ou seja, é a aula em acontecimento em forma de entrevista, de uma maneira explicitamente verbivocovisual. Mas mesmo que ela não fosse explícita, ela também seria verbivocovisual. Gostaria de parabenizar novamente O Consoante e dizer que é muito interessante esse formato, porque é um jeito dialogado e acredito, inclusive, que é um projeto que tem a ver com a popularização da ciência. Com isso, conseguimos, também, romper a bolha acadêmica, pois saímos do muro, uma vez que falar em uma entrevista é diferente de dar aula, ao mesmo tempo estamos explicando coisas que fazemos como aula e estamos usando a oralidade com alguma metalinguagem, também procurando deixar acessível para quem não estuda as mesmas questões que nós. Assim, outras pessoas podem assistir ao que estamos conversando e se interessar, inclusive, pela nossa área. Sobre todos esses ganhos, não podemos deixar de falar.

OC: Em suas análises do ensino de linguagem, fica explícito que há de se pensar em novos letramentos que possam ir além do tradicional, não priorizando apenas as práticas de leitura e escrita convencionais, mas também aspectos tecnológicos e digitais. Na sociedade atual, quais seriam as consequências da não inclusão dos multiletramentos (multiplicidade cultural e semiótica de constituição dos enunciados) no ensino?

Luciane de Paula: Para mim, um crime. Eu poderia parar por aí, mas vou explicar o que estou dizendo. Eu acho que trabalhar apenas os gêneros tradicionais é como trabalhar apenas o registro normativo e deixar de fora vozes sociais, letramentos e, portanto, sujeitos, grupos, comunidades e sociedades inteiras, que muitas vezes ficam de fora de todas as práticas sociais legitimadas possíveis. Eu acho que o papel da escola é fazer justamente o contrário: incluir essas pessoas, mostrar a heterogeneidade, valorizar o que se faz como letramento, entender essas práticas como importantes e complexas, colocar em contato as variedades, seja de linguagem, seja cultural, seja ainda religiosa, todas elas. Não trabalhar com multissemioses e com os multiletramentos reduz. Vou ser radical: é quase parar no analfabetismo funcional. É não construir a formação autônoma, plena, livre e cidadã pela qual Anísio Teixeira, Paulo Freire e outros lutaram tanto, principalmente quando estamos na escola pública, seja na educação básica, seja na universidade, tanto faz. Isso exige muito mais, é difícil de fazer porque não tem cartilha. É pensar a aula como acontecimento, é prestar atenção no outro. É bakhtiniano! Porque é você olhar para o outro e enxergar quem ele é, saber o nome dele e conhecer sua história. Isso é difícil porque, infelizmente, nesse país, a educação não é valorizada, e aí o professor é obrigado a dar 40 horas em escolas diferentes. Dependendo da cidade é tudo muito distante, e ele nem consegue almoçar, o que dirá saber o nome de cada um de seus alunos. Sei que é uma realidade bastante difícil, mas é isso que faz a diferença. É aí que a gente pensa a educação como formadora e transformadora – é não ter a cartilha, não pensar na decoreba e não ser um professor conteudista. Para mim, deixar de fora os multiletramentos é deixar de fora os sujeitos, as vozes, os valores, os grupos. Não queremos uma escola que seja autoritária, totalitária, aparelho ideológico do estado. Queremos uma escola de liberdade, de autonomia, de criticidade. Queremos formação de leitores que possam ver uma fake news e não acreditar nela, ao invés de compartilhar. Precisamos pensar como a nossa prática docente e discente tem sido. Falo dos dois porque às vezes o próprio aluno não quer sair da cartilha. Reclamamos tanto da falta de autonomia e, quando a recebemos, não sabemos o que fazer com ela, porque já estamos adestrados a não ter. Precisamos nos desvencilhar dessas amarras, e eu acho que os multiletramentos e os gêneros discursivos são uma porta para se pensar isso.

OC:  Pensando na formação inicial e continuada de professores, como você vê a possibilidade do trabalho com diferentes gêneros, como, por exemplo, as fanfics, nas habilitações em Letras? Você concorda com a afirmação de que seria mais fácil trabalhar com tais gêneros na formação inicial, pois os profissionais em formação ainda não teriam um método de ensino sedimentado em práticas mais antigas como os profissionais que já trabalham nas redes de ensino?

Luciane de Paula: Pensando no trabalho que realizo, vejo que minha formação é toda amarrada. Tenho muitos orientandos, por exemplo, que começaram uma pesquisa comigo no primeiro ano da graduação e hoje estão no doutorado. De fato, eu acredito numa construção do conhecimento coletiva, circular e processual. Não é possível só pensar e ler Bakhtin. Vários temas que estudo só são possíveis porque os meus alunos estudam e isso me obriga a estudar também. Vários orientadores se limitam a orientar pesquisas que se encaixem apenas nos temas predeterminados por eles. Eu não trabalho desta forma. Eu pergunto aos meus orientandos com o que de fato querem trabalhar. Muitas vezes, trazem temas que eu não conheço e, assim, eu vou estudar e aprender com eles. A perspectiva bakhtiniana não é uma teoria apenas aplicável e instrumental, é uma teoria ética, filosófica. A minha formação correu toda nesse sentido. Eu busco essa circulação que, para mim, é a circulação do saber, que não se tranca, não se fecha na sala de aula e também não se fecha num academicismo vaidoso e egocentrado. É mais difícil trabalhar dessa forma, mas é o que faz a diferença. O professor não é o dono do saber porque é um ser humano. Somos estudantes a vida inteira e se saímos desse lugar de estudantes, deixamos de ser bons professores por nos colocarmos em um pedestal, que é restrito. Tenho muito apreço pelo grupo de estudos que eu coordeno e sempre digo aos meus orientandos que  eles me constituem, o outro constitui o sujeito, eles são partes de mim, eles me integram enquanto sujeito, assim como eu sei que faço, ou espero fazer, alguma diferença em suas vidas também. Nós temos uma relação não só acadêmica, saímos para comer juntos, vamos para os eventos científicos juntos, dormimos juntos no mesmo hotel, viajamos de ônibus, fazemos essas coisas exatamente para lembrar que a professora é um ser humano como qualquer outro, que tem vida, problemas, que às vezes está de mau humor, que é perfeccionista, exigente, chata, mas também é amorosa. Essas facetas todas nos constituem enquanto seres humanos. Não é possível conhecer todo mundo por completo, mas tento ser a mesma tanto na sala de aula quanto fora dela, quando escrevo, canto, vou ao cinema ou rio de uma piada. Acredito que essa formação mais próxima quebra as bolhas e faz com que possamos construir, com passos pequenos, a diferença. Especificamente sobre a questão da formação, não sou capaz de dizer se é mais fácil ou mais difícil, se é nos primeiros anos ou não. Ao mesmo tempo em que nos primeiros anos não se tem uma formação sedimentada, também não se tem a maturidade, a experiência que os mais velhos têm. Então há prós e contras nas diversas facetas. A minha experiência com o Profletras é maravilhosa. Os alunos são professores da educação básica e dão verdadeiras aulas pra gente, fazem um trabalho incrível. Fico brava quando alguém culpabiliza esses professores dizendo que não fazem nada ou que têm muitos privilégios, porque eu sei que trabalham muito. Esses sujeitos são heróis, não no sentido da vocação, que coloca os professores num lugar de caridosos, como pessoas que têm um dom e uma “missão”. Nós precisamos ser valorizados, inclusive financeiramente, sem mascarar este ponto de vista que, para mim, é uma falácia para não valorizar. Mas digo heróis, porque sem infraestrutura, sem remuneração, sendo culpabilizados, os professores fazem muito e têm uma experiência que eu não tenho. A minha vivência não é a mesma deles. Eu estive no ensino básico por pouco tempo e, assim, sou eu que aprendo com esses professores. Podem até não ter a metalinguagem teórica e o percurso acadêmico que eu tenho, mas têm uma prática que eu não tenho. Então, ao mesmo tempo que alguns, sim, estão cristalizados, há uma expertise que não pode ser descartada. Essa maturidade é fundamental. Por isso não sei dizer o que é melhor. O que importa é construirmos, de uma maneira formativa e integral, em qualquer etapa, desde a educação básica até o doutorado, com pessoas diversas, porque é a diversidade de tudo que nos constitui enquanto sujeitos que fazem a diferença e é isso o que nos enriquece.

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