“Vale destacar que a constituição do nosso currículo e o nosso ethos de professor são formados para trabalhar no mesmo espaço-tempo, e não em espaços distintos, ainda que virtuais e síncronos, como é no ensino emergencial remoto.”

por Lara Albino, Neil Franco, Nívea Rohling (part. especial) e Rafael Alves

Márcia Mendonça é pesquisadora e professora do Departamento de Linguística Aplicada da Unicamp, na área de língua materna. Possui Mestrado e Doutorado em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco. Entre suas publicações, destaque para o livro Português no ensino médio e formação do professor (2006) e Letramentos em espaços educativos não escolares: os jovens, a leitura e a escrita (2015), ambos  em coautoria com Clecio Bunzen. Mais recentemente participou da organização, com Cynthia Agra de Brito Neves, do livro A redação no vestibular Unicamp: o que se avalia e como se avalia (2019). Atualmente é coordenadora acadêmica da Comissão Permanente para os Vestibulares – Comvest (Unicamp). Suas pesquisas mais atuais se voltam para a área de educação linguística para o ensino-aprendizagem de língua materna na perspectiva dos multi e novos letramentos. O Consoante teve a oportunidade de dialogar com Márcia Mendonça em entrevista-aula intitulada Professores “remotos”: linguagens e percepções de professores em contexto de pandemia.

 

O Consoante: A partir de sua trajetória acadêmica, que perpassa, como sabemos, pelos multi e novos letramentos, o que você pode nos dizer sobre o ensino remoto? Neste momento, foi vislumbrado como uma resposta emergencial ao cenário de pandemia, e muitos o entenderam como sinônimo de Educação a Distância (EaD). Poderia nos esclarecer as aproximações e os distanciamentos entre essas duas modalidades de ensino?

Márcia Mendonça: Queria começar falando um pouquinho do título [Professores “remotos”: linguagens e percepções de professores em contexto de pandemia]. Colocar o “remoto” entre aspas foi uma aposta um pouco arriscada, porque posso ser compreendida de muitas maneiras. Por isso, ressalto que, no título, não há uma defesa da realidade que vivemos hoje, ou seja, o ensino emergencial remoto, como um modelo bom, ideal. O que busco, no título, é fazer referências às condições de trabalho às quais os professores estão submetidos em boa parte das instituições, isto é, ao trabalho que eles estão desenvolvendo nesse semestre e que terão que continuar semestre que vem. Posto isto, a primeira coisa a se dizer é: não, eu não considero o ensino emergencial remoto como Educação a Distância (EaD). O termo “ensino emergencial remoto” foi consolidado em discussões, em parte, pelas redes de ensino, ou seja, não foi alguém que cunhou e conceituou o termo em um artigo científico. Essas discussões se tornaram uma arena muito disputada nestes últimos meses, causando controvérsia, porque temos, de um lado, um discurso de profissionais que, ao postarem videoaulas numa plataforma do YouTube, consideram isso como EaD. Mas isso não é EaD – ou, pelo menos, só isso não é EaD. De fato, a EaD pode se valer, por exemplo, de videoaulas postadas em qualquer plataforma, mas apenas isso não constitui a EaD em si. Então, eu não defendo o ensino emergencial remoto como um modelo, porque a escola continua sendo um espaço de socialização, que inclui a convivência presencial de corpos, os esbarrões, os encontros, os cheiros, os volumes das pessoas, os sons – tudo isso é educação. Por isso, no título, eu só salientei as condições emergenciais mais imediatas que nós estamos vivendo. Eu reconheço todas as condições adversas em que muitos professores brasileiros trabalham, as quais independem da decisão, da vontade e da competência individual dos sujeitos para serem superadas. Também reconheço que há contextos em que alunos precisam dividir dispositivos, em alguns casos celulares de baixa qualidade, com três ou mais pessoas da sua casa, por exemplo. E isso não vai ser enfrentado por um professor salvador, com excelente formação no âmbito do uso das novas tecnologias. Não estou aqui com um discurso alienado em relação às condições reais de trabalho de muitos professores, porque eu reconheço que há situações muito difíceis. Por outro lado, eu não vou profetizar o caos, no sentido de que no ensino emergencial remoto, não há o que se fazer. Eu não partilho dessa posição, absolutamente. Por isso, considero que há situações em que as relações pedagógicas podem acontecer, com maior ou menor diferença em comparação às aulas presenciais, mas sabendo que não são aulas presenciais. O primeiro ponto é este: nós não estamos mimetizando as aulas presenciais – o que, às vezes, é feito por um vício de ofício. É claro que, diante de uma mudança de rotina abrupta, a mimetização das aulas presenciais foi uma saída encontrada por muitos professores, e não há um julgamento negativo em relação a isso, porém, é preciso reconhecer –  e muitos deles reconhecem – que são coisas muito distintas, ou seja, as aulas presenciais são diferentes de qualquer tipo de relação pedagógica on-line, remota, a distância (ou qualquer outro nome que a gente prefira dar). Bom, com relação às diferenças essenciais entre EaD e ensino emergencial remoto, eu vou falar do ponto de vista de quem não é especialista em EaD, mas que tem lido sobre isso recentemente e que tem pensado a relação entre as novas tecnologias e o ensino de línguas. A primeira diferença tem a ver com a intencionalidade pedagógica. Na EaD, há um princípio de se trabalhar com a autonomia do aprendiz, a qual é requisitada para que ele realize o estudo independente/autodirigido e flexível, ou seja, quando a EaD surge, ela tem que dar conta das dificuldades dos públicos que estão acostumados a partilharem o mesmo tempo e espaço em atividades pedagógicas presenciais. Por isso, há certa flexibilidade em relação ao tempo despendido ao processo educativo, justamente para romper com as barreiras de espaço-tempo. Portanto, são esses princípios que norteiam a EaD. Obviamente, no ensino emergencial remoto, também existe a necessidade de romper fronteiras de espaço-tempo, mas isso nem sempre vem atrelado ao investimento na autonomia do aprendiz e no estudo independente e flexível. Aí que as diferenças começam a aparecer. Por mais que no ensino emergencial remoto sejam configuradas atividades relevantes e diversificadas para os alunos, elas não necessariamente constroem oportunidades que os façam mais autônomos para estudar e aprender – o que não dispensa a mediação. Isso porque a construção dessa habilidade envolve algum tipo de planejamento e design instrucional, além de envolver mídias, recursos e ambientes de aprendizagem que sejam propícios ao desenvolvimento da autonomia e do estudo independente e flexível. Ainda que tenhamos essas mídias, recursos e ambientes no contexto do ensino emergencial remoto, se eles não forem modelados por um design instrucional, visando a um tipo de flexibilidade, podem surgir problemas. Vale destacar que a constituição do nosso currículo e o nosso ethos de professor são formados para trabalhar no mesmo espaço-tempo, e não em espaços distintos, ainda que virtuais e síncronos, como é no ensino emergencial remoto. Com relação às interações na EaD, elas são tanto síncronas, quanto assíncronas, podendo acontecer com ou sem a presença de mediadores e materiais didáticos. Por exemplo, há casos de processos educativos na EaD que não contam com a presença de mediador, porém, essa relação de mediação é traduzida, incorporada nos próprios materiais didáticos. É isso que eu chamo de discurso didático produzido com finalidades de engajamento, interação, estudo independente e aprendizagens. Então, na EaD, há esse cuidado para que, mesmo na ausência do mediador, a mediação ocorra via discurso didático, que está presente nos vídeos, nas atividades, no jeito de explicar, no tipo de tira-dúvidas implementado, no tipo de previsão sobre possíveis dificuldades etc. Para resumir, as grandes diferenças da EaD em comparação ao ensino emergencial remoto estão relacionadas à intencionalidade pedagógica e à construção da autonomia para um estudo independente e flexível, o que afeta, entre outras coisas, o discurso didático, que precisa criar condições de engajamento, interação, estudo independente e aprendizagens, apesar de eventuais distâncias reais, de interações assíncronas, ou mesmo da ausência de mediadores que estejam acompanhando o processo a todo momento. E são essas questões que vão constituir os grandes desafios do ensino emergencial remoto.

OC: Como você vê esse deslocamento do professor presencial para o professor remoto ou on-line? Quais as implicações em termos de atribuições, capacidades e aprendizagens dos docentes? E como lidar com a cobrança extrema?

Márcia Mendonça: Eu vou falar com base na minha experiência trabalhando neste semestre de forma remota. Primeiramente, vale lembrar das desigualdades das condições de trabalho, que, no Brasil, aparecem ainda mais acentuadamente nesses contextos de mudanças abruptas. Essas desigualdades se dão tanto no acesso por parte dos alunos, quanto na formação dos professores para lidar com as tecnologias digitais e, também, nas condições efetivas de trabalho, em que há cobranças que chegam a ser desumanas em certas redes de ensino. Por exemplo, há casos de os professores terem que, em duas semanas, resolver a questão das aulas pré-gravadas que, como sabemos, toma bastante tempo, pelo menos nas primeiras vezes. Uma aula de 40 minutos leva, pelo menos, 2h de gravação, porque nem sempre se acerta na primeira tentativa. Então, o trabalho de bastidor de qualquer processo de EaD ou de ensino on-line é muito grande, a não ser que se mimetizem completamente, ou tente, as aulas presenciais, realizando as interações sempre de forma síncrona por meio das aulas ao vivo. Mesmo assim, dificuldades vão aparecer, porque, por exemplo, pensando na educação básica, a capacidade de atenção e concentração dos alunos é diferente quando estão diante de uma tela [do celular, computador]. Desse modo, o tempo pedagógico começa a ser alterado, e quando essa pressão ou, pelo menos, desvantagem da desconcentração aparece, é preciso adaptar o discurso, além de rever a quantidade de tópicos/assuntos, a forma de avaliação, e assim por diante. Logo, tudo é muito afetado. Daí, eu acho que aparecem, no meio dessas atribuições colocadas para o professor, oportunidades importantes de formação, a qual deve ser vista como “em processo”. Não estou advogando a favor de que nossa formação deva se dar pelo sofrimento, mas, sim, de que estamos no meio de uma história, de uma experiência que, forçosamente, nos coloca numa posição de pensar nossa formação e, entre as dificuldades e desafios, algumas aprendizagens acontecem. Eu vou dar um exemplo muito simples: eu usei muito o [Google] Meeting durante o semestre e fiz uma opção por não realizar aulas gravadas – liberdade de escolha que, como sei, muitos professores não têm. E, durante essas aulas síncronas, me percebi com aqueles cacoetes de professora. Eu sentia falta da lousa, que é um hábito que não perdi mesmo sendo professora universitária. E o que eu fiz? Comecei a usar o chat. Eu ia falando e anotando algumas coisas no chat. Disse aos alunos: “Estou anotando aqui, nas primeiras vezes, mas não sei se é bom para vocês. É que eu gosto de ir registrando, porque, no final das contas, sei o que tratei nas aulas”. Até então, não sabia se era um recurso efetivo, pois, vale lembrar, não é uma lousa, é um outro tipo de registro. Mas o retorno dos alunos foi positivo. Eles disseram: “É bom porque eu vou acompanhando depois”. Isso porque muitos assistiam novamente, o que evidencia a existência de muitos estilos de aprendizagem. Há os alunos que assistem de forma assíncrona, outros de forma síncrona, mas só ouvem, não olham, porque estão fazendo outras coisas. Isso traz vários questionamentos, como: quem é o aluno participativo na aula on-line? O que a gente define como aluno participativo? Há a turma do fundão, se sim, qual é? Poderiam ser aqueles que não ligam a câmera ou que não falam nada no chat? Às vezes, não são, porque há uma série de redefinições desses modos de interlocução numa aula como essa e, para mim, como para muitos, isso é novo. Uma das coisas que mais deixa os professores ressentidos é, exatamente, as interações e o feedback, ou seja, a ausência do presencial, aquele momento que a gente olha no olho da plateia e diz: “Ninguém está entendendo o que eu falei, né?”. Aí alguém diz: “Não estou entendendo direito”. Então, você constata que seu discurso não está adequado, seu exemplo não está bom, logo, você volta e refaz, que é um trabalho totalmente artesanal. A sala de aula é única e artesanal, que a gente faz “à mão” e não “à máquina”, o que se perde um pouco nesse modelo da aula síncrona on-line. Porém, é possível termos feedback, só que de outro modo. Diante disso, eu diria que os professores estão sendo confrontados com muitas dificuldades. Em alguns casos, as escolas estão mais abertas às necessidades desses professores, aos desafios enfrentados e às necessidades dos alunos, em outros casos, as escolas estão um pouco mais fechadas. Acho que é, nessa hora, que sentimos, ainda mais, a necessidade de uma coletividade consolidada, ou seja, uma comunidade de trabalho mais consolidada, porque o professor se vê muito solitário. Sabemos que muitas das questões não são individuais e, sim, da escola, das classes como um todo, isto é, são questões que precisam ser enfrentadas pela comunidade escolar. Penso que a pandemia trouxe isso de forma muito cruel, pois, primeiramente, colocou o professor em distanciamento ou isolamento social, então, ele não encontra os colegas na sala dos professores, como fazia, nem que fosse apenas para comentar como cada um estava fazendo para repor as aulas diante dos feriados do mês. Portanto, faz muita falta uma comunidade de trabalho, de qualquer rede de ensino, para compartilhar boas práticas e dificuldades reais. Aí entra a consciência de classe, em que os professores se entendam como parte de um coletivo, de um grupo de trabalhadores que precisa desempenhar o seu trabalho em condições concretas de trabalho, o qual deve pensar coletivamente questões, tais como: qual a velocidade ideal da internet? Quantos alunos têm acesso à internet? Se utilizar vídeo, vai sobrecarregar a conexão da internet? Por tudo isso, eu reconheço que muitos professores ficaram mais sobrecarregados do que já são. A pesquisa que estou fazendo mostra que a carga horária dos professores da educação básica é enorme, e, na minha amostra, 70% dos professores têm pós-graduação, o que é um pedaço muito específico dos professores brasileiros. Então, retomando a pergunta: como lidar com a pressão extrema? A resposta é: em grupo. Sei que, principalmente em redes privadas, é muito difícil se mostrar como um professor insatisfeito, que reivindica. Por isso, reforço que é nessas horas que precisamos de um grupo de professores que enfrente esses desafios de forma coletiva, pois, sozinhos, fazemos pouca coisa.

OC: Durante sua pesquisa, quais as principais percepções dos professores emergiram sobre as experiências com o ensino remoto no contexto de pandemia?

Márcia Mendonça: A pesquisa é esta: ensino de línguas e uso de tecnologias digitais em contexto de pandemia: experiências e percepções de professores e de alunos. É uma pesquisa colaborativa no seguinte sentido. Nós elaboramos esse questionário com a colaboração direta de duas turmas, alunos de pós-graduação, que eu tive nesse semestre que passou. Todos professores ou coordenadores ou formadores de professores etc. E também alunos universitários que estavam cursando a disciplina letramentos: teoria e prática. A pesquisa é colaborativa porque nós fizemos juntos à elaboração do questionário. E nós temos também entrevistas realizadas por esses alunos. Eu estou analisando o questionário on-line no momento. Temos também entrevistas semiestruturadas. A análise é quantitativa e qualitativa. E nós tivemos nos questionários, até o momento em que eu sistematizei os gráficos, 632 participantes. O objetivo geral da pesquisa é mapear, compreender e problematizar algumas experiências e percepções de alunos universitários e de professores de línguas, ou que atuem com ensino de língua, na educação básica e no ensino superior, acerca dos contextos de ensino-aprendizagem vivenciados durante a pandemia da Covid-19. Embora o objetivo geral pareça ambicioso, a ideia é que a gente faça um mapeamento preliminar, ou seja, que a gente capte algumas dessas percepções e algumas dessas experiências e entenda um pouco do que estava nos corações e mentes desses professores em relação aos contextos de aprendizagem. Um primeiro dado que a gente teve, e que nos surpreendeu, foi que os professores usam mais o smartphone do que notebook. Imaginávamos que eles tivessem usos parecidos, mas com certa predominância do notebook. Essa surpresa, talvez, porque eu não consiga usar muito o smartphone. Acho a tela pequena, não me entendo muito com o tamanho da tela. Mas é assim que acontece com professores e isso repete um pouco o que a gente encontra para os alunos. Nós perguntamos quais os dispositivos mais utilizados. O resultado apontou que 59% usam plataforma da própria instituição, 55% usam o google sala de aula. Mas observem que 58% indicaram o whatsapp e isso pode nos indicar muitas coisas. Pode nos indicar que era o que tinha, o famoso “é o que temos para o momento”.  Pode nos indicar que sendo de uso muito disseminado em várias classes sociais e por diferentes gerações, o whatsapp terminou sendo muito utilizado. Enfim, isso a gente teria ainda que investigar um pouco melhor, cruzando dados, mas isso já nos diz muita coisa. O whatsapp é um aplicativo de envio de mensagens, não um ambiente de aprendizagem, mas vemos que se tornou um. Isso merece uma real investigação. Como são essas aulas de whatsapp? São áudios que o professor manda? São vídeos, interação por texto, são materiais? Isso a gente ainda não conseguiu mapear de forma mais aprofundada. Merece ser investigado porque se a gente pensasse há 6 meses e dissesse assim: “O whatsapp é um aplicativo que eu uso muito para as minhas aulas?”. Você vai dizer sim, que se comunica com o aluno, com o grupo da escola, mas você não diria que seria o segundo aplicativo mais usado para aulas online. Em relação ao controle das interações, acho que isso merece uma reflexão quanto às semelhanças e diferenças de aulas presenciais e de aulas online. Uma das capacidades às vezes muito valorizadas por parte das escolas em relação aos professores é o famoso controle de sala, ou seja, aquele professor que consegue dar a aula, consegue dominar o grupo, consegue manter digamos a disciplina. Muitas vezes no final das contas é isso. E eu imaginei que nas interações online, talvez, houvesse uma preocupação maior em relação a esse controle, dado que não se teria mais o face a face, o olho no olho. No entanto, o que a gente viu é que em 55% dos casos não havia esse controle em relação às interações. Eles poderiam interagir em qualquer momento e por qualquer meio. Em segundo lugar, vieram as interações controladas pelo professor e apenas 9% interações controladas pela escola ou pela instituição, 1% misturado e só 5% não poderia interagir. Isso pra mim foi um dado interessante porque mostra que havia uma propensão dos docentes e das escolas de promover essa interação pelo menos podendo possibilitar essa interação. Isso não quer dizer que ela aconteça. As formas de interação são muito variadas e as combinações também. Vamos fazer uma análise mais refinada do que isso significa. Mas já há indicações de que tem muito ouvinte nessas aulas também, o que não nos surpreende, dado que, como se sabe, nas aulas presenciais não é a maioria dos alunos que participa falando, perguntando, chegando na mesa do professor e etc. Então, isso parece se repetir, em alguma medida, nesse formato remoto de interação. Já em relação às dificuldades apresentadas, detectamos algumas: dividir os dispositivos, não ser familiarizado com tecnologia, não ter ambiente apropriado, não gostar de aparecer em vídeo, faltar tempo para planejar aulas e atividades, não ter qualidade no dispositivo e na internet. Houve um número significativo de entrevistados que afirmou que o ambiente em casa não é apropriado, o que nos exige pensar que as condições de trabalho se impõem sobre as condições pedagógicas. Outro ponto de destaque: os professores, às vezes, reclamam dos alunos que não querem aparecer em vídeo, mas eles também não gostam.  Em relação aos materiais didáticos que passaram a utilizar, vemos uma semelhança muito grande com as aulas presenciais, os materiais didáticos clássicos. Mas vemos, também, um uso grande de vídeos que, certamente, os ambientes digitais, as tecnologias digitais tenham possibilitado esse maior uso, numa espécie de empate com os materiais mais convencionais. Percebemos que as anotações em lousa passam a ser bem menos relevantes neste contexto, bem menos frequentes até porque para uma anotação em lousa, o professor precisa pensar em um espaço para conseguir enquadrar a si e a lousa. Em relação à carga horária, sabemos dessa carga excessiva do professor, mas aqui a gente fica sabendo mesmo. Observem as percepções dos professores: 46% acham que trabalham muito mais horas e 34% trabalham mais horas. Quando a gente soma os dois nós temos 80% dos professores sentindo na pele o aumento de carga de trabalho, e isso é uma coisa muito séria, porque o professor já trabalhava muito. E acreditamos que isso se estendendo pelo médio prazo trará consequências sérias pra saúde física e mental desses docentes e, obviamente, para o processo educacional. Esse é um dado gravíssimo. Em relação à eficiência das aulas online, o quadro também é muito claro. 64% acham aulas menos eficientes que as aulas presenciais. Claro que aqui estamos pensando em um contexto em que essas aulas tiveram que ser ministradas sem um planejamento. Por isso, ressaltamos que é diferente na EaD. Nos processos educacionais que vão se pautar pelos princípios da educação a distância, em geral, o professor tem uma equipe de trabalho, o professor não faz sozinho. Neste momento [de pandemia] muitos professores estão quase sozinhos. Eles têm a própria internet ou o próprio computador, a própria câmera. Eles vão se virando para preparar esse material. Nos contextos em que a EaD é tomada seriamente, existe uma equipe de apoio ao docente, em que questões técnicas são feitas por uma equipe maior. Apenas 6% acharam mais eficientes, mas se você somar 64% com 6% que acham que são ineficientes dá 70% de avaliação negativa em relação ao próprio trabalho e isso é muito ruim para a autoimagem do professor. É muito frustrante ter essa percepção, mas é compreensível que assim seja. Sobre impactos do ensino remoto no trabalho pedagógico, 63% apontam a falta de qualidade das interações junto aos alunos. Isso terminou sendo apontado como o maior prejuízo do ensino emergencial remoto: as interações. Tanto pelas considerações técnicas quanto pela própria ausência, falta de tempo para preparar um conjunto de ações, de materiais que permitissem uma interação de maior qualidade. Os conteúdos não foram muito apontados como afetados, mas metodologias e formas de avaliação.  Em relação às mudanças nas práticas docentes, uma parte dos entrevistados, não muito representativa, até indicou certo engajamento às aulas online. Quase 20% apontaram menor frequência do ensino expositivo, destacando maior variedade de recursos didáticos. Certamente vemos que o contexto propiciou o uso das tecnologias digitais porque fica mais fácil faz chegar à aula, desde que haja acesso a vídeos, imagens, materiais que se tornam acessíveis por meio de links em uma página etc. Houve, também, ou até por isso, uma maior criação de materiais didáticos multimodais. Mais atividade de pesquisa, uso de software de edição por parte de alunos e professores. Então, tem um conjunto de aprendizagens que devem ser consideradas: a inclusão da multimodalidade, o usar mais software de edição pra criar materiais, que aparecem como mudanças nessas práticas docentes, tudo por influência das tecnologias digitais.

OC: Em relação à interação professor-aluno, é relevante que o docente conheça a nova rotina de cada um? Desse modo, aprender mais sobre o cotidiano dos estudantes ajudará em novas formas de aplicar o conteúdo e até mesmo na avaliação na atual conjuntura? E que questões deve-se levar em conta?

Márcia Mendonça: Eu acho que é uma boa pergunta porque, na realidade, um pouco desse conhecimento da rotina para aquilo que é importante para aprendizagem, a interação em sala de aula, já deveríamos ter sempre, conhecer um pouco do aluno. Não digo entrar na intimidade da família, mas conhecer um pouco dessa rotina. E eu imagino que a pergunta tem muito a ver com o acesso a dispositivos, ambiente para as aulas onlines e também com o fato de que não se estará presencialmente acompanhando. Então, eu acho importante fazer um pouco desse diagnóstico da rotina familiar. Por exemplo, tem coisas muito sérias, têm alunos que precisam esperar o pai chegar do trabalho com celular para acessar, porque não têm notebook e nem vão ter, a não ser que o estado venha e doe esse notebook, porque a família não vai ter condições de comprar. Então, que rotina será essa? Provavelmente esse aluno vai precisar acessar as aulas ou atividades em um horário que não é possível para o professor atender, porque ninguém deve estar disponível em três turnos para atender alunos, porque é um trabalhador e precisa ter horário de trabalho e descanso. Essas situações são bastante complexas para se mediar e uma das coisas importantes que eu acho que o contexto traz também, pensando a partir dos modelos da educação a distância, são modelos híbridos de educação. Assim, não é possível fazer ensino emergencial online com apenas um tipo de interação, apenas um tipo de plataforma, apenas um momento em que se tem de dar as devolutivas de atividades. Isso não vai dar certo para todos os alunos. Não vai dar certo para todos os professores. Temos que já pensar de saída quais são as possibilidades, como, por exemplo, aulas pré-gravadas. Essas podem ser assistidas em qualquer momento e isso facilita, até mesmo em contexto universitário. Imaginem que há alunos universitários com filhos e que os deixavam na creche.  Contudo, não estão deixando mais e esses alunos pais e mães estão cuidando de crianças pequenas. E não são crianças com quem podem falar “agora não”. Quem tem filho sabe disso e está cuidando disso, da casa e da aula, tudo ao mesmo tempo. Sabem muito bem como é isso. Por isso, esse aluno não vai conseguir, na hora da aula síncrona, ter a sua atenção para todas as aulas. Muitos universitários falaram: “Na hora eu preciso fazer coisas da casa porque aqui tem uma rotina da casa”. E estamos falando de estudantes adultos. Às vezes não dá pra abrir o áudio. Às vezes tem alguém arrumando a casa, dois irmãos pequenos gritando, o vizinho barulhento, uma reforma. Como vai abrir este áudio ou vídeo? Às vezes o ambiente da casa não é convidativo. A pessoa se sente constrangida de mostrar o ambiente. Nem todo mundo vai ter uma parede branca. Vamos fazer um censo. Quantas famílias têm mesa em casa? A gente acha que todo mundo tem. Tem família que não tem mesa, qualquer mesa. Vai estar no sofá, na cama. Não vai ligar a câmera. Lógico, eu também não ia querer ligar.  Dessa forma, vemos que o conhecimento dessa rotina é sim importante para implementar um currículo que possa ter diversificação de forma de organização no trabalho pedagógico, de interação, pensando nesses tempos. Agora vejam que paradoxo. Muitas vezes a gente fala que a escola pública ainda não é democrática por essa ou aquela razão. Mas estamos todos num mesmo espaço, todos num mesmo tempo e até com os programas como o PNLD, todos com o mesmo material. Claro que só isso não são condições de igualdade, mas são condições para começar a história. Isso inclusive foi afetado pela pandemia. É nesse sentido que as desigualdades sociais emergem com força nesse momento. São questões que antes não precisaria levar em conta, mas que precisa, talvez, um censo escolar pequeno, com os grupos da escola, para saber como está funcionando o sistema, se tem um dispositivo sempre à mão, se uma internet “maravilhosa” e um ambiente favorável. Em relação à autonomia, quanto mais jovem, mais criança, mais precisa da atuação direta do mediador. Isso para nem falar da questão de afetividade e aprendizagem, mas já falando disso. Como é que a gente faz o desenvolvimento dessa autonomia? Porque isso tem muito a ver com linguagem. Tem que ter um pouco de fluência de leitura, capacidade de ler o enunciado da atividade que está online, saber o que vai fazer apenas lendo. Daí, o professor pode dizer assim: “Ah, eu postei a atividade, mas ele entendeu?” Não se sabe. O aluno não estava ali na aula para dizer: “Professor! Não entendi isso aqui não”. A autonomia nesse sentido implica, diretamente, uma autonomia em relação às capacidades de leitura e essa autonomia também vai envolver um tipo de autodisciplina. Só que uma criança pequena não consegue sozinha impor uma autodisciplina. Precisa ter toda uma educação familiar para algum tipo de autodisciplina. Por exemplo, se você pensar numa família, e aí não é culpa da família, que quase não ficou na escola, como é que vai fazer? Algumas famílias são muito sensíveis à situação, muito colaborativas, entendem que o filho ou a filha vai precisar estudar. E é importante ter uma repetição, que seja uma hora mesmo para criança saber, para o adolescente. Sabemos que transpor isso para casa é um desafio. Eu confesso que eu nem sei como fazer, mas eu acho que talvez essas coisas do censo, de fazer uma pesquisa de como é em cada casa, para se ter uma ideia do geral e dizer: “Eu acho que isso vai atender a grande maioria dos nossos alunos”. Sempre lembrando que a gente não quer isso para sempre. Ninguém quer. Isso não pode ser para sempre.

OC: A BNCC, no componente de LP, propõe o trabalho a partir da perspectiva dos multiletramentos e do uso das TICs. Como você avalia essa proposição nas condições das escolas públicas brasileiras e à luz do que vemos agora durante o isolamento social em que grande parte de estudantes (e até de professores) não tem as condições tecnológicas mínimas? De certo modo, o contexto pandêmico põe em xeque essa proposição do documento?

Márcia Mendonça: Gostaria de estabelecer uma relação com um artigo de opinião de Ana Elisa Ribeiro, publicado no blog da “Parábola”, intitulado “Tudo o que fingimos não saber sobre ensino e tecnologias”. A autora fala justamente do fato de que o contexto pandêmico colocou no centro da discussão aquilo que quem trabalha com tecnologia, seja ensino e tecnologia, seja ensino a distância ou não, vem militando há muito tempo: a necessidade de incorporar os recursos tecnológicos, os letramentos digitais e as culturas digitais no currículo escolar. Não como um fetiche, não porque é moderno, mas porque é do mundo. É da vida social! Por exemplo, como é que se lida com fake news? Fake news são disseminadas, essencialmente, pela velocidade e alcance das redes sociais. Estão atreladas às tecnologias digitais. Antes se tinha boato, fofoca, calúnia e difamação. Fake news, no sentido do alcance, do fenômeno sociocultural, existe essencialmente porque há seres humanos e interesses em jogo. Só para dar um exemplo de como isso não é mais uma questão de gostarmos ou não. Os nossos alunos têm direito de serem usuários, navegadores, produtores de conteúdo, se assim quiserem. Mas eles têm direito de conhecer como essas coisas funcionam — embora eu seja uma pessoa que adora os letramentos da letra, adoro papel, acho que aulas com quadro, professor e aluno, às vezes, com caderno, às vezes até sem caderno dão muito certo. Por isso, não tenho o outro lado do fetiche de que “Se não for assim, não dá”. Há muitas questões envolvidas no que se refere à tradição escolar. Nós perdemos algumas boas tradições. Por exemplo, a tradição de declamação de poemas, de memorização. Por que não? Mexer com capacidades retóricas, corporais, de domínio do texto, de incorporação do texto, de espalhar isso para o público. Claro, podemos pensar: “Ah, mas evento da escola é obrigatório, é chato.”. Então, se perdeu como prática social na escola. Mas ganhou força fora da escola: nos coletivos, jovens de slams, de rappers. Enfim, nas periferias essa prática foi ressurgindo. Não foi um movimento de classe média. Só para falar da questão da tradição, do que a gente perde e ganha nesses movimentos históricos. Assim, ao mesmo tempo em que reconheço a necessidade do trabalho com novas tecnologias, com tecnologias digitais e ensino, não tenho o fetiche de dizer: “Nossa, mas essa pessoa ainda faz cartaz?” O trabalho foi bom com o cartaz? Quais eram os objetivos? O que os alunos aprenderam? Como foram as interações? Dito isso, vamos para a questão das tecnologias. O documento da Base Nacional Comum Curricular traz uma ênfase grande na tecnologia. Mas precisamos ler todas as habilidades, assim perceberemos que temos ali listas grandes — inclusive, algumas habilidades são enormes. É importante os professores fazerem essa leitura porque, como a Base é um documento obrigatório, não é possível revogar. Os documentos curriculares, com todas as contradições, tensões e críticas que possamos fazer nos salvam de certas coisas. Os documentos oficiais regulam as instituições. Por isso, a Base e outros documentos podem ser salvaguardas para que façamos um trabalho relevante. Tenho ressalvas à Base, mas reconheço avanços que trouxe. Até proponho uma leitura estratégica desse documento. Uma das questões foi dar uma grande ênfase nas novas tecnologias. Poderíamos ter tido, talvez, um tom do documento menos enfático nesse aspecto. No entanto, é preciso pensar que o documento tem que durar no tempo. Ele é um documento não para três anos, nem cinco anos. Pode ser revisto periodicamente, mas não para mudanças tão grandes. Nesse sentido, precisava ser prospectivo no que se refere às tecnologias, ou seja, apontar para frente. E quando fazemos uma leitura estratégica da Base, precisamos pensar que ao apresentar aqueles gêneros — alguns deles que nem eu sei o que são — não os traz sozinhos, e sim uma lista. A lista é para possibilitar aos professores, primeiro: “Atenção, existe isso.”. Tem uma metáfora que uma amiga curriculista usa que acho muito poderosa. Ela dizia assim: “Sabe o que é o currículo? O currículo é um cutucão. O currículo faz assim: “Escola, professor, prestem atenção nisso!” Porque o currículo-documento não é a aula. Ele não é o currículo que está na escola. Essa transposição não é direta. Ainda bem, caso contrário poderíamos ser tirados do cenário. Quem seríamos nós? Aplicadores de currículo? Enfim, o currículo é uma baliza! Sendo assim, seria interessante fazer uma leitura estratégica da Base, observando que o documento é prospectivo e aponta aquilo que talvez algumas escolas consigam fazer em tantos, ou que algumas já fazem, mas consigam fazer melhor, ao longo do tempo, em relação às tecnologias digitais, aos letramentos digitais, aos gêneros que circulam nessas esferas das culturas digitais variadas. Assim, ficaríamos um pouco menos angustiados. Falo de um lugar confortável, porque eu estou na universidade — mas sou absolutamente solidária com as angústias que isso traz e com as tensões que pode provocar nas redes [privadas e públicas]. Então, sugiro essa leitura estratégica: ler as habilidades e as listas longas como possibilidades. Quando há um “etc”, um “entre outros”, primeiro, não são todos, há uma lista de possibilidades. Para algumas delas podemos dizer: “Essa daqui eu já faço, já faço até bem.” Quem aqui não trabalha com notícia? Quando trabalha com a esfera jornalística, quem não trabalha com título de notícia, lide? Isso já é, como se diz, “feijão com arroz”. Mas podemos trabalhar notícias, tanto em meios impressos, quanto em sites, portais ou twitter. Não é a mesma coisa. Porque o trabalho mais clássico com o gênero notícia veio da tradição do impresso em que se observa tamanho e a organização da foto. Agora o que se tem é foto, foto, foto, um trecho de texto verbal e um link. É diferente, a estrutura é outra, há um portal muito mais visual. Aquela primeira página que, às vezes, “escorregávamos” para o corpo do texto, agora “escorrega” menos. Porque é preciso clicar, fazer uma leitura bem intencional do que se quer ler. Contudo, ao mesmo tempo que não é o mesmo, traz das tradições grafocêntricas e alguns aspectos que não se perderam ou que estão ali modificados.

OC: O ensino remoto evidenciou uma discussão, nem tão recente, sobre a necessidade de ações formativas que preparem os professores para atuarem em situações de ensino e aprendizagem mediadas pelas TIDCs. Em vista disso, em quais aspectos a formação inicial e continuada de professores de línguas deveria ser repensada?

Márcia Mendonça: Já tivemos, e ainda há alguns programas governamentais muito bem-sucedidos de formação de professores. Destaco a resistência e a re-existência do PIBID que esteve, muitas vezes, para ser fechado e não foi extinto — embora tenha sofrido um corte substancial de verba. Destaco esse programa pela qualidade, pela capilaridade, pois é um programa que chega em muitos lugares do Brasil e em lugares nos quais uma bolsa para um aluno graduando de quatrocentos reais é realmente uma renda para a família, inclusive. Isso é transformador porque ele consegue se manter estudando. Sem falar no restante que o programa possibilita. O PIBID não é uma bolsa de permanência, mas para muitos lugares, é também uma política de permanência estudantil. É um modelo de formação de professores que poderia ser dobrado e transformado em um plano de estado. Em dez anos o PIBID poderia ser um programa obrigatório de toda instituição de ensino superior. Isso envolve muito dinheiro. Ou melhor, isso envolve investimento para valer. Mas quem está no programa sabe a transformação que é a inserção de um estudante no campo profissional com uma orientação de alguém da universidade, e o que é muito mais importante, de alguém da escola. Porque fomos jogadas e jogados dentro da sala de aula e disseram: “Boa sorte, bom trabalho. Vai com Deus.”. Isso é muito complexo, muito traumatizante. E a noção de sucesso e bem-sucedido não tem a ver com “Deu tudo certo!” Tem a ver com “Como é que foi o processo para você? Você, como graduando, aprendeu? Você conseguiu perceber e conseguiu estar mais ambientado nesse contexto profissional? Você conseguiu ampliar suas capacidades profissionais de replanejar, de olhar qual era a necessidade do aluno? etc. Em suma, destaco o PIBID como programa de formação inicial e a Residência Pedagógica, também. Quem não gostaria que todos os estágios fossem residência pedagógica? A residência é o melhor estágio docente que se pode ter porque se ganha pelo trabalho, como ganha o residente, como ganha o estagiário de informática na empresa em que ele vai estagiar. Como o professor deveria ganhar, por estar exercendo atividade profissional, no momento em que ele, sim, faz manejo de classe etc. Como formação inicial, há esses dois programas. Mas há um problema: o censo de 2015, não sei se tem dados mais novos, aponta que 70% dos professores de escolas públicas brasileiras são formados em instituições privadas de pequeno porte, que não têm, na sua constituição, tradição de integração de pesquisa e graduação. Não estou falando que as instituições não fazem um trabalho bom, mas é que elas têm outras condições de trabalho, os professores são horistas, é um outro universo. Portanto, todos esses programas são muito bons, mas precisam ser mais presentes nessas instituições e, para isso, é necessário manejar investimentos. Porque sabemos o quanto é, às vezes, falacioso um curso universitário custar trezentos reais. Como um curso universitário que oferece uma capacitação profissional custa trezentos reais? Alguma coisa está errada. Não estou dizendo que tem que acabar, no entanto, há problemas sérios e que têm a ver com desigualdade social. Como é complexo! Por isso é preciso políticas afirmativas para trazer os alunos mais vulneráveis socioeconomicamente para dentro da instituição pública para que possam, enfim, ter a oportunidade de uma carreira mais promissora. Faz muita formação em rede em um modelo de formação de curso ou palestra de tantas horas e depois o formador vai embora. Chegou um momento em que comecei a não acreditar muito mais nesse modelo formativo. E isso não tem a ver com incompetência dos professores, não tem a ver com, somente, uma resistência de muitos professores. Tem relação com o fato de que, como é que aprendemos a ser professor? Quando você está com o problema real no seu colo e você consegue encontrar um par, que seja no corredor da escola, na sala dos professores. Quando se tem uma escola que tem planejamento conjunto, que de fato funciona, no grupo de professores, você divide: “Estou com isso aqui. Não estou conseguindo resolver”. Aí vem um colega e diz assim: “Mas, e se você tentasse assim?” Então, as formações não são tutoriais. O professor ouve, tem contato com perspectivas que não foram da sua formação inicial, isso é bom. A perspectiva da atualização. Porque quem está na universidade tem isso como prerrogativa do trabalho. Temos condições de trabalho para isso. É para isso que não tem todas as horas preenchidas com aula, para poder ter esse tempo de investir nisso. Os professores horistas não são pagos, necessariamente, ou são muito mal pagos, para isso. Eles não têm condições de trabalho tão favoráveis. Então, tem que promover os eventos de atualização. Ele até se atualiza, só que os processos de transposição didática não são diretos, completos e imediatos. Vamos pegar um conceito só: Multiletramentos. Eu aprendi o que é, vi exemplos, vi até algumas práticas, foi um curso bem feito. Terminou, vou para a sala de aula. Como é que eu faço? Começo por tentativa e erro. Quando eu tenho uma dificuldade ali, aquilo não consegue andar para frente, ou eu sou o famoso “lobo solitário” ali na escola, falando de multiletramentos e ninguém mais está. A rede não está muito preocupada com isso. Aquilo se perde porque não é fácil mudar a prática docente, é muito doloroso, é difícil, é conflituoso — para professores universitários, também. Só para lembrar do ensino remoto na universidade foi uma guerra do tipo: “Não quero, de jeito nenhum.” E outros dizendo assim: “Não, tem que andar a todo vapor, do jeito que estava.” Foi muito difícil. Imagine um professor universitário mais habituado a ser um professor que dá aulas-palestra. Ele começa a aula e fala e, às vezes, fala lindamente, dá palestras maravilhosas. Não tenho nenhum problema com aula expositiva. Acho que esse não é o melhor modelo para a escola básica. Mas uma boa aula expositiva em que um aluno de escola básica consiga ouvir é muito boa. Não tenho problemas com esses formatos tradicionais, e, na universidade, isso é mais comum. Imagina um professor que só dá aula- palestra e agora vai dizer assim: “Agora você vai entrar num ambiente e você vai dar a sua palestra de duas horas.”. Ninguém aguenta na tela porque não é a mesma coisa. Em relação à questão da formação, também, dos próprios formadores de professores, estamos sempre sendo desafiados a fazer de outro jeito. Essa pesquisa sobre ensino remoto surgiu porque eu tinha um trabalho pensado para os alunos de “Letramentos: Teoria e Prática” que seria uma mini descrição etnográfica. A princípio eles iriam a campo, escolheriam um contexto, poderia ser um contexto de trabalho. Houve estudante que fez em salão de beleza, centro cultural, museu, shopping, banca de feira e faria uma mini descrição etnográfica. Claro que isso não ia acontecer durante a pandemia. Tive que adaptar e disse: “Olha, a gente está vivendo um momento único para fazer uma etnografia digital. Não vamos conseguir fazer uma etnografia digital porque precisaríamos filmar pessoas durante vários dias, gravar, etc. Mas podemos fazer uma mini investigação de percepção de alunos que estão vivendo a mesma coisa que vocês, inclusive, vocês”. Enfim, essas questões da formação nos desafiam. Precisamos de comunidades de práticas nas escolas. Professor sozinho vai continuar com muita dificuldade e, aí, comunidades de prática, por exemplo, de pessoas que possam ser da escola, ou multiplicadores, ou os formadores iniciais. Que sejam três pessoas na escola, mas que isso seja um nucleozinho formador. Acredito pouco na formação que vem de fora. Nós podemos dinamizar, problematizar o que eles fazem, mas não tem como fazer isso o tempo todo, porque não podemos ficar na escola, a não ser que tenhamos um projeto de pesquisa. No entanto, temos o dever de ser interlocutores privilegiados em projetos de pesquisa, projetos de extensão e projetos de formação. Acredito que só os professores vão conseguir formar. Em suma, formação tutorial, comunidades práticas em escolas e saber que vamos sempre ser confrontados por desafios para os quais não fomos formados.

OC: A partir das experiências desse período de ensino remoto, considerando o tempo transcorrido, como você observa o contexto pós-pandemia em termos das implicações para os novos modos de aprender e ensinar na área de LP e, também, no que diz respeito à modalidade: apenas emergencial e provisória ou pode se consolidar?

Márcia Mendonça: Há duas questões que temos que ter em mente: com relação aos professores, trabalhadores da educação, sempre há o perigo do eventual uso do contexto da pandemia, da entrada mais forte das tecnologias digitais na educação para o sucateamento e da precarização das condições de trabalho. Há o perigo do sucateamento e da precarização, especialmente, com aulas gravadas. Hoje um professor grava mais aulas do que ele costumava ter, porque algumas escolas até já tinham de ter um ambiente virtual, mas agora vale como aula presencial. Esse é um perigo que acontece. Está aí na porta: sucateamento e precarização. Temos que estar atentos para isso. Temos agora a expressão o “novo normal”, mas nada era normal. O que é exatamente novo? Nesse novo contexto, se pensarmos, ainda, num contexto de não ir à escola todos os dias, estamos num contexto de pandemia, ou seja, de distanciamento social, etc. Mas, digamos que ultrapassemos esse momento mais perigoso da curva de mortes ainda estar ascendente, ou ainda não ter descido, ou seja, está num momento de alerta vermelho, laranja, qualquer cor que seja, podemos ultrapassar isso e aí poderemos ter aulas todos os dias nas escolas. Os especialistas dizem que o vírus não vai embora assim. Na realidade vamos aprender a conviver com ele, haverá tratamento, vacina em algum momento ultrapassando isso, o vírus não será um perigo de morte iminente. Então penso que teremos mais uso de tecnologias digitais na sala de aula e isso não, necessariamente, precisa ser ruim. Claro, depende das condições de certas redes, de certas escolas. Até pode-se dizer que está acendendo uma luz para os educadores, por exemplo: “Puxa, talvez os meus alunos pudessem estar aproveitando isso, mas não estão porque não tem acesso à rede.”. Mas, nos casos em que exista algum tipo de acesso, alguma situação mínima de acessibilidade para a internet, teremos mais uso de tecnologia digital e, penso, que será uma parte do currículo. E precisamos nos perguntar, também, como professores, qual é o tempo pedagógico de aproveitamento mais efetivo para aprendizagens no momento presencial? Por exemplo, as práticas de cópia na lousa são presentes ainda na escola. E não me refiro aos casos em que transcreve da lousa como aprendizagem de uma habilidade, que é necessária quando crianças pequenas precisam aprender a olhar um texto lá na lousa e saber transcrever de um modo mais fidedigno – uma habilidade da escrita manual escolar consolidada ao longo de anos. É diferente daquela cópia sem sentido. Aquela cópia que tem o livro e que, talvez, precisa só de uma máquina de fotocópia. Estou falando de atividades que são um desperdício de tempo. Como, também, atividades que não são cópias, mas são resolução de listas de exercícios sem mediação. Por que isso tem de ser presencial? Este aluno poderia estar fazendo em casa e, na aula, estar acompanhando a resolução com o comentário do professor no caso de resolução do exercício, da atividade, qualquer que seja ela. Então, estão em xeque algumas práticas que estavam confortavelmente instaladas no cotidiano escolar. Não digo que isso é a maioria, que toma a maior parte do tempo, mas essas práticas tomam um tempo precioso e não pode mais tomar. Assim, pensando de modo otimista, talvez esteja em curso uma valorização muito grande de aspectos da escolarização, da socialização, porque algumas crianças quando perguntadas “Do que você mais sente falta?” vão responder “De estar com os meus amigos.” E jovens também. Talvez seja necessário trabalhar com o aspecto essencial que é a sociabilidade humana nas nossas culturas. Ou seja, a convivência escolar é imprescindível para a saúde mental de jovens, de crianças, de professores. Valorizar esse espaço que é mediado essencialmente, no caso das aulas, pelos professores. Imaginem o caso de alunos de primeiro semestre ou ano letivo. Entram na universidade cheios de expectativas e de vontade e ouvem: “Então, a gente vai suspender tudo e a gente se vê daqui a sei lá quantos meses, porque a gente tem alguns alunos que não acessam.”. Esses alunos precisam ser considerados, mas é uma decisão ultra radical de fechar tudo, sem nenhuma atividade, mesmo que não fosse aula para nota. Entendo as opções que sejam assim. E também há alunos dos últimos anos, os que estão se formando. Eles precisam do diploma para trabalhar! Enfim, acho que é um equívoco pensar em soluções muito assim: “Fecha tudo, porque tem alguns que não vão acessar.”. Penso que não dá para fechar tudo. Tem que continuar a vida universitária, a vida escolar.  Veja, falamos aqui dos documentos, não foram os documentos, não foram as políticas, não foram mobilizações de professores, foi uma pandemia. Nos sacudiu e disse assim: “Agora vê aí o que você faz.”. Portanto, acho que teremos mais uso sim de tecnologia e isso pode redundar em precarização de trabalho. Mas, também, pode redundar em uma demanda, talvez, forte, assim espero, por formação de professores e políticas mais substanciais e consistentes de formação docente para os usos dessas novas tecnologias, que nem são mais tão novas assim.

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