“Na perspectiva sociorretórica, ensinamos o gênero e a língua ao mesmo tempo. […] Portanto, a sociorretórica se preocupa em instrumentalizar o indivíduo para que ele se torne um sujeito retórico eficiente na sua área e na sua esfera [campo] de atividade humana.”

O Prof. Dr. Wiliam César Ramos, do Departamento de Letras Modernas (DLM) da Universidade Estadual de Maringá (UEM), tem como foco de suas pesquisas o ensino de gêneros textuais acadêmicos, em sua maior parte de língua inglesa. Dedicou-se ao gênero abstract nos seus trabalhos de mestrado e doutorado, desenvolvendo-os com base nos pressupostos teórico-metodológicos da Sociorretórica. Nos últimos anos, tem orientado pesquisas de iniciação científica, sobretudo voltadas aos gêneros textuais, contudo, contemplando diversas temáticas. Atualmente, está vinculado ao Programa de Pós-graduação em Letras (PLE) da UEM, na linha de estudos do texto e do discurso, ministrando a disciplina Perspectivas sociorretóricas para Conceituação e Análise de Gêneros Textuais. A convite do Prof. Dr. Neil Franco, participou do encontro da disciplina Gêneros do Discurso e ensino, também do PLE, e gentilmente cedeu uma entrevista a O Consoante, no que se caracterizou como uma aula-entrevista (ou entrevista-aula).

 

por Neil Franco, Rafael Alves e Tiago Guimarães

 

O Consoante: É possível falar em uma sociorretórica desvinculada da análise de gênero textual/discursivo? Se sim, como definir essa sociorretórica?

Wiliam Ramos: Não é possível falar em uma sociorretórica desvinculada do gênero textual/discursivo porque a conceituação e a análise de gêneros textuais, pela perspectiva sociorretórica, concatenam-se com o conceito de comunidade discursiva de John Swales ou comunidade retórica de Carolyn Miller. Por esse prisma, os gêneros textuais constituem uma classe de eventos comunicativos, situados social, histórica, cultural e retoricamente em contextos comunicativos socioinstitucionais, cuja sedimentação epistêmica e de práticas sociais gera e reflete-se em convenções linguísticas no nível textual (organização retórica do texto), gramatical (tempos verbais característicos, dêiticos etc) e lexical (itens lexicais técnicos etc). A comunidade discursiva, conceito central da abordagem de Swales, é especializada, portanto exerce força centrífuga, no sentido de excluir membros não especialistas. Difere-se, desse modo, da comunidade de fala, que exerce força centrípeta. Os membros contribuintes de uma comunidade discursiva utilizam os gêneros textuais para a realização de suas práticas sociais profissionais, institucionais ou específicas, e para o fomento e manutenção de suas crenças e valores. Portanto, o gênero textual e a comunidade discursiva existem um em função do outro e sua dissociação é simplesmente impossível. Já o gênero na abordagem de Miller está associado a uma comunidade retórica, que é uma coletividade cuja utilização dos gêneros textuais nas suas práticas retóricas permite uma sedimentação cultural, epistêmica e principalmente retórica de suas interações, quando a linguagem é necessária. Então, quando nos comunicamos dentro da perspectiva sociorretórica não produzimos os gêneros para um indivíduo em específico, mas para uma coletividade discursiva, que serve para balizar os critérios de produção do gênero textual. Desse modo, reitero que não há como conceber uma sociorretórica dissociada do gênero textual/discursivo. O prefixo “sócio-” remete à ideia de que nos comunicamos com o outro, com uma comunidade, e o radical “retórica” reporta-se à ideia de que, conhecendo as convenções discursivas de uma comunidade, tornamo-nos aptos a utilizá-las para atingir determinados propósitos comunicativos.

OC: Como surge a análise de gênero textual na vertente sociorretórica?

Wiliam Ramos: Em Genre analysis, de 1990, quando Swales apresenta o modelo CARS [Create a Research Space], a partir da análise de um corpus de introduções de artigos de pesquisa, propondo um modelo de organização retórica, constituído pelos movimentos realizados pelos pesquisadores quando escrevem a introdução de artigo de pesquisa. Alguns exemplos desses movimentos são: revisão de literatura e criação de um nicho de pesquisa – mas, claro, há vários outros. Em termos de contextualização, podemos dizer que essa abordagem de Swales surge com a nova retórica. A nova retórica é a retórica de Perelman em oposição à retórica aristotélica. Com o surgimento da nova retórica, as aulas de redação no meio acadêmico passaram a ter um olhar voltado para determinados propósitos, por exemplo: “o que eu quero argumentar”, “como eu vou argumentar” e “como eu vou persuadir”. É em apropriação desse conceito de propósito comunicativo, que a sociorretórica entende como imprescindível conhecer as “molduras” do gênero textual para que se possa comunicar-se socialmente em uma comunidade visando alcançar determinados fins. Partindo desse pressuposto e entendendo que cada área do conhecimento codifica e organiza o conhecimento de formas específicas dentro de um mesmo gênero, Swales cria essa metodologia para análise de gênero, que também oferece subsídios para a escrita. Em linhas gerais, essa metodologia pode ser entendida a partir de quatro etapas. A primeira consiste na montagem do corpus, por exemplo, 10 ou 15 introduções de artigos de pesquisa. A segunda pressupõe uma pesquisa de cunho etnográfico, para saber dos especialistas da área quais são os critérios que utilizam para a escrita de um texto daquele gênero. A terceira se volta à busca de diferentes materiais, como artigos de pesquisa e manuais de redações, que versam sobre a escrita do gênero. Por fim, a quarta etapa consiste em desenvolver o que Swales chama de “tarefa”, que está relacionada ao ensino de gêneros textuais acadêmicos. Nada mais é do que escrever um texto com vistas a atingir um propósito. Como forma de ilustrar, poderíamos pensar na seguinte situação: escrever a introdução de uma pesquisa visando persuadir o chefe do programa de pós-graduação a oferecer uma bolsa de estudos.

OC: O que diferencia a vertente sociorretórica das demais vertentes de análise de gênero textual/discursivo?

Wiliam Ramos: Acredito que, indubitavelmente, o que diferencia a perspectiva sociorretórica de outras é o seu caráter etnográfico e a consequente vinculação dos gêneros textuais a uma comunidade discursiva especializada, cujas convenções discursivas, em constante evolução, são estudadas com vistas ao ensino e aprendizagem de gêneros textuais acadêmicos especializados, principalmente os escritos, acadêmicos, e em língua estrangeira. É válido acrescentar que nas abordagens sociorretóricas, assim como possivelmente em outras, há uma preocupação em ensinar a língua ao mesmo tempo em que se ensinam os gêneros textuais. É preciso que, ao escrever em determinada língua, entenda-se como seus expedientes linguísticos produzem sentido dentro de um determinado gênero textual. Por exemplo, ao ensinar o emprego do present perfect em uma introdução de pesquisa, é importante que os alunos entendam que é produzido o sentido de algo que se desenrola até o momento. Então, os expedientes linguísticos são ensinados com um propósito. Portanto, a sociorretórica se preocupa em instrumentalizar o indivíduo para que ele se torne um sujeito retórico eficiente na sua área e na sua esfera [campo] de atividade humana.

OC: Há algumas aproximações em relação à análise de gênero na perspectiva de Bakthin. De forma geral, quais são?

Wiliam Ramos: Há, sim, uma aproximação muito grande entre a perspectiva bakthiniana e a sociorretórica, principalmente a swalesiana. Bakthin define os gêneros do discurso como enunciados relativamente estáveis, que refletem as condições específicas e as finalidades da esfera [campo] de atividade humana em que eles são produzidos e veiculados. Dessa forma, são marcados por seu conteúdo temático, recursos gramaticais e lexicais, e pela estrutura composicional. Swales, da mesma forma, define os gêneros textuais como uma classe de eventos comunicativos, cuja lógica subjacente estabelece restrições quanto ao conteúdo, ao posicionamento e à forma. Eles [os gêneros] são também, na perspectiva sociorretórica, relativamente estáveis, pois compartilham convenções discursivas no nível gramatical, lexical e textual, identificadas por meio da análise de exemplares, ou instanciações, do mesmo gênero textual. Swales vincula os gêneros textuais a uma comunidade discursiva específica que, por ser especializada, exerce uma força centrífuga, excluindo indivíduos não especialistas. Traçando um paralelo, a esfera [campo] de atividade humana bakthiniana aproxima-se do conceito swalesiano de comunidade discursiva, no sentido de os gêneros do discurso, com suas especificidades linguísticas, refletirem as necessidades e propósitos retóricos do contexto sociocomunicativo em que ocorrem. Assim, os gêneros de uma determinada esfera [campo] de atividade humana ou comunidade discursiva diferem-se de outros oriundos de outras esferas e comunidades. Da mesma maneira, o conteúdo temático, estilo e estrutura composicional bakthinianos, caracterizadores dos gêneros textuais de uma determinada esfera [campo] de atividade humana, correspondem às convenções discursivas swalesianas, obtidas por meio de análise de corpus para serem ensinadas em cursos de inglês para fins específicos e acadêmicos.

OC: Na perspectiva de análise sociorretórica, existe diferença entre gênero textual e gênero discursivo ou é só uma opção terminológica?

Wiliam Ramos: Acho que os termos Genre of Discourse, Discourse Genres e Text Genres são equivalentes ao que nós chamamos em português de gêneros textuais. Como as abordagens sociorretóricas foram implementadas por autores anglófonos, é preciso salientar que a referência a discourse não está relacionada à análise de discurso de base francófona. Discourse, na perspectiva sociorretórica, refere-se a instanciações, realizações da linguagem e à língua em uso – mas não considerando o caráter ideológico, tal qual acontece, por exemplo, na análise de discurso de linha foucaultiana e pecheutiana. Concluo que é uma questão de tradução, de vocabulário. No Brasil, comumente chamamos de gênero textual. Mas ainda é preciso considerar que, ao ler os textos originais, muitas vezes nos deparamos com autores que usam apenas discourse para referenciar ao que, aqui, chamaríamos de gênero textual. Miller fala, por exemplo, em “a collection of discourses”, que poderíamos traduzir como um grupo de gêneros textuais.

OC: Quais são os principais representantes da vertente sociorretórica?

Wiliam Ramos: Temos John Swales, da University of Michigan (EUA), Vijay Bathia, da Macquarie University (AUS) e Carolyn Miller, da North Carolina University (EUA). No Brasil, desenvolvendo trabalhos em língua portuguesa, cito a Bernadete Biasi-Rodrigues, da Universidade Federal do Ceará e a Désirée Motta Roth, da Universidade Federal de Santa Maria, que fez estágio com Swales antes de sua tese. Acrescento que Désirée desenvolveu muitos trabalhos na perspectiva sociorretórica, analisando a organização retórica de gêneros textuais acadêmicos. Em uma de suas pesquisas, montou um corpus com resenhas das áreas de química, economia e linguística, e descobriu que a forma como essas três áreas avaliam as obras é diferente no âmbito textual e no retórico.

OC: Como podemos entender o conceito de gênero textual/discursivo na vertente sociorretórica?

Wiliam Ramos: Considerando que há diferentes representantes da sociorretórica, explanarei a conceituação de Swales e de Miller. Em Genre Analysis, de 1990, Swales entende que o gênero compreende uma classe de eventos comunicativos, cujos exemplares compartilham de um conjunto de propósitos comunicativos. Esses propósitos são reconhecidos pelos membros experientes da comunidade discursiva e constituem os princípios, a lógica do gênero. Essa lógica molda a estrutura do discurso e influencia e restringe a escolha do conteúdo e do estilo. O propósito comunicativo constitui um critério privilegiado e é responsável por manter o escopo do gênero como concebido aqui, completamente focado na ação retórica. Além do propósito, os exemplares de um gênero exibem padrões variados de semelhança quanto à estrutura, ao estilo, conteúdo e público-alvo. Se todas as expectativas do gênero forem correspondidas, o exemplar será visto como prototípico pelos membros da comunidade discursiva original. Os nomes dos gêneros são herdados e criados por comunidades discursivas e importados por outros. Eles constituem uma comunicação etnográfica preciosa, mas geralmente precisam de outras análises para sua efetiva validação. Já na concepção de Miller, o conceito de gênero pode ser entendido com base em cinco premissas, as quais constam no artigo dessa autora, presente no livro Gênero Textual, Agência e Tecnologia, mais especificamente na página 39: 1. o gênero se refere a uma categoria convencional de discurso baseada na tipificação em grande escala da ação retórica; como ação, adquire significado da situação e do contexto social em que essa situação surgiu; 2. o gênero, como ação significante, é interpretável por meio de regras; regras de gênero ocorrem num nível relativamente alto de uma hierarquia de regras para interações simbólicas; 3. o gênero é distinto de forma: forma é o termo mais geral usado em todos os níveis da hierarquia; o gênero é uma forma num nível particular, que é a fusão de formas de níveis mais baixos e a substância característica; 4. o gênero serve como a substância de formas em níveis mais altos; como padrões recorrentes do uso linguístico, os gêneros ajudam a constituir a substância de nova vida cultural; 5. um gênero é um meio retórico para a mediação das intenções privadas e da exigência social; ele é motivador ao ligar o privado com o público, o singular e o recorrente. Assim, o gênero textual constitui uma ação retórica tipificada baseada em uma situação retórica recorrente.

OC: Como as pesquisas atuais, em termos de tendência, vêm mobilizando os procedimentos teórico-metodológicos dessa vertente de análise de gênero? Isto é, o que tem sido mais recorrente?

Wiliam Ramos: Acredito que o tipo de análise sociorretórica mais recorrente seja a análise da organização retórica do texto a fim de identificar e entender como as informações são organizadas no texto. Em alguns casos, mais do que isso, há uma proposta de identificar em entender os padrões discursivos e retóricos no que tange à relação que eles mantêm com práticas profissionais. Também vejo a abordagem sociorretórica sendo aplicada para a análise de determinados gêneros como a chamada de capa, a apresentação de caderno didático, a resenha acadêmica, a notícia de popularização da ciência, o resumo, o abstract, entre outros.

OC: De que forma essa vertente vem contribuindo para a formação de professores de língua?

Wiliam Ramos: Eu acho que contribui justamente por dar essa visão da organização textual que se alia ao ensino dos expedientes linguísticos e ao ensino do gênero. Retomando um pouco do que foi comentado em uma questão anterior, na perspectiva sociorretórica, ensinamos o gênero e a língua ao mesmo tempo, ainda que em algumas ocasiões se dê um enfoque maior na gramática e, em outras, no gênero. Nesse sentido, acredito que a metodologia de análise de gênero da sociorretórica contribui para conscientizar a formação crítica dos alunos e futuros professores, isto é, para que se tornem atores críticos no que diz respeito à produção e à recepção de gêneros, entendendo que o gênero reflete as condições de produção.

OC: Quais conselhos você daria a um analista/pesquisador que pretende trabalhar com essa vertente de análise? Isto é, quais facilidades e dificuldades ele tende a encontrar no percurso?

Wiliam Ramos: Boa pergunta! O termo “dificuldades” é bastante adequado. Bernardete [Biasi-Rodrigues] aponta que a dificuldade maior está em decidir que função retórica determinado trecho do gênero textual realiza. Há casos em que separamos o texto por sentença/cláusula e queremos enquadrá-la inteira como correspondente a uma função retórica, até percebermos que precisamos desmembrá-la em trechos, porque cada um corresponde a uma determinada função retórica. Há outros casos em que ficamos na dúvida entre duas ou mais funções retóricas que aquele trecho realiza, ou, ainda, não encontramos na estrutura retórica de referência a função que achamos que o trecho realiza e, então, necessita-se criar uma nova função. Bernadete descreve essas dificuldades e eu concordo, pois as vivencio nos trabalhos que realizo/realizei. O que é aconselhável, nesses casos, é se cercar de critérios até a exaustão, ou melhor, até a conclusão sobre a função retórica que está sendo realizada.

OC: Quais os rumos, na sua opinião, que essa vertente de análise tomará em um futuro próximo?

Wiliam Ramos: Eu acho que o tema do Cielli deste ano – a internacionalização – é bem adequado para falar disso. A internacionalização envolve a mobilidade acadêmica, isto é, o ir e vir de professores e alunos de pós-graduação a diferentes países. Logo, há um arsenal de gêneros textuais que são necessários a esse processo, por exemplo: documentos para abrir conta bancária, para alugar casa, para se apresentar na universidade, entre outros. Além do que, esses gêneros podem variar a depender da cultura do país e da língua que se fala. É preciso ser proficiente não só na língua, mas também nos gêneros daquele lugar. Diante disso, vejo um trabalho de análise e de ensino-aprendizagem voltado aos gêneros textuais envoltos pelo contexto da internacionalização.

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