por Ramon Alves e Tayana Almeida    

         Lilian Amorim Carvalho é mestre em Ciências Sociais pela UEM e participa do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros (NEIAB). Sua dissertação versou sobre a Educação para as relações étnico-raciais nos vestibulares e tem como título “A Cor do vestibular no Paraná: na trilha de um novo caminho pela efetivação da educação étnico-racial”, a proposta foi discutir a implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e a inserção desses conteúdos no vestibular e no ENEM. Com a pesquisa, Lilian constatou um ínfimo percentual no trato dessa temática, que em algumas edições do vestibular e do ENEM, ao longo de 2002 a 2015, simplesmente chega a 0%. Lilian aceitou o convite d’O Consoante para discorrer sobre questões relacionadas à negritude e ao ensino.

O Consoante: De acordo com o IBGE, nos últimos 10 anos o percentual de negros e negras no ensino superior quase triplicou. Se a gente considerar isso, podemos derrubar o argumento de que negros não ocupam cargos altos nas empresas porque não tem qualificação. Então, o que você acha que deveria ser feito para que eles passem a figurar no cenário das grandes empresas ocupando cadeiras importantes?

Lílian: Tendo como base observações pessoais, estamos supondo que negros não costumam ocupar altos cargos nas empresas de modo geral. A gente tem essa percepção por chegar nos lugares e ver que continua sendo muito mais branco do que negro. Então, se a gente pensar em um processo histórico que sempre alijou essa população, esse “triplicar”, nos últimos 10 anos, tem a ver com o movimento negro que tem atuado politicamente para ocupar esses cenários. Uma das coisas mais importantes em relação ao campo acadêmico é a questão das cotas. A lei federal de cotas para concursos é de 2012, está fazendo 5 anos, só que as cotas, enquanto prática institucionalizada em algumas universidades, não foi desde sempre uma inciativa legalmente regulamentada, definida por lei, ou seja, as experiências de cotas foram despontando por existir um movimento social de base, marcado pelos movimentos negros. Por isso, o que tem permitido que esses espaços (acadêmicos) também sejam ocupados por pessoas negras foi o acesso por cotas especificamente raciais. Agora, precisamos considerar que em 10 anos o número de estudantes negros aumentou na academia. Para conseguir esse lugar no mercado de trabalho é preciso muito mais esforço, não é só a qualificação, a qualificação é a ideia que se tem no sentido da meritocracia, “basta se graduar para conseguir” e é aí que a gente consegue perceber nitidamente como o racismo opera nas nossas relações, é preciso refletir no critério de escolha para a ocupação desses altos cargos. Falando de uma iniciativa privada, o que pesa nessa escolha? Será que é o discurso da qualificação ou há outras coisas que implicam? Precisamos considerar também o tempo curto que esses 10 anos representam em termos de história. Outro ponto. É comum o pensamento que nos cursos de graduação há um grande número de evadidos negros, mas há estudos mostrando que não é bem por aí, estamos falando de alunos mais dedicados justamente por não terem tido essa oportunidade antes, muitos são os primeiros de suas famílias em várias gerações. Por outro lado, há que se considerar que o racismo opera de forma estrutural e estruturante nas nossas relações e, mesmo o movimento social conseguindo avançar e se ocupar, os negros não estão livres dele. Esse racismo vai destruindo o ser negro desde o seu nascimento, em todos os âmbitos da sua vida coletiva, inclusive o acadêmico. Por conta do racismo, existe uma defasagem histórica que precisa ser corrigida, que seja por meio de cotas.  Então, não diz respeito à incapacidade, mas à oportunidade. Qual é a oportunidade que, no mercado de trabalho, está sendo aberta para eles, para que consigam acessar os cargos de prestígio?  Por isso a meritocracia não existe, porque as oportunidades não são de fato por mérito, essa é a questão.

OC: As Diretrizes Curriculares Nacionais, por resultado de movimentos sociais, preveem a abordagem de questões étnico-raciais durante o ensino básico. Você considera que essa questão é devidamente abordada nesse contexto ou há uma divergência entre teoria e prática educacionais ao falarmos do trato com a cultura negra?

Lílian: Sim, há uma divergência, mas sempre que eu respondo perguntas como essa, eu procuro pensar em um processo histórico. Quando o Brasil passa a ser república, a ideia da elite brasileira nesse contexto era a de transformar o Brasil em nação nos moldes de uma sociedade capitalista, portanto, não podia ter cativos, era preciso um mercado livre, uma relação entre homens livres, então a escravidão acaba, mas a mentalidade ainda era (e continua sendo) uma mentalidade racista, os negros eram vistos naquela época como inaptos para a sociedade moderna. Nesse momento, a sociedade começa a deixar de ser rural para se tornar urbana, buscando a industrialização do país, enfim, a ideia de modernização para essa elite branca colonizadora era de uma modernização que exigia a importação, por parte do governo brasileiro, de trabalhadores, porque os negros não seriam adequados para esse trabalho. Daí foram feitos investimentos em políticas de imigração de estrangeiros, preferencialmente europeus, ou seja, houve aplicação de recursos públicos do governo brasileiro para a imigração europeia. Esses imigrantes se relacionariam com a nossa população mestiça e gerariam um tipo ideal de brasileiro, um mestiço cada vez mais branco. Então o intuito foi se desfazer da escravidão por precisar de um mercado consumidor, mas a população negra não era considerada apta para uma sociedade moderna, por conta disso, não foram feitas políticas públicas para a absorção dessa população recém libertada. Eu participo de um grupo de discussão chamado “café preto” do NEIAB (Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-brasileiros) e no dia 24 de junho, estivemos discutindo sobre esse momento histórico, de branqueamento da população brasileira, em que de acordo com a lei para a escolarização, os negros não podiam estudar, também não podiam se reunir, nem praticar sua religião de matriz africana, porque era considerado crime. No final das contas o que se imaginava é que essa população negra ia morrer à mingua e gradativamente por conta da miscigenação com imigrantes europeus, que ia embranquecendo a nação. A ideia do branqueamento da nação brasileira. Só que a população negra resiste e existe! Voltando à pergunta, quando a gente pensa no peso histórico de ter hoje uma diretriz dizendo: “é obrigatório tratar de história e cultura afro-brasileira e africana”, isso não é pouco! Principalmente se considerarmos que estamos há quase 130 anos da abolição da escravatura, mas essa população tem sido marginalizada em todo esse período, resistindo e sobrevivendo. E nas estratégias de sobrevivência, vem pautando seu desenvolvimento. Por isso, a lei 10639/03, obrigando o tratamento desses conteúdos não é pouco! Agora as diretrizes curriculares são de 2004, portanto são pelo menos 13 anos que isso está institucionalizado enquanto legislação, ou seja, é obrigatória, é para cumprir. A pergunta é “está no discurso, mas não está na prática?” Sim, isso realmente acontece! Não podemos esquecer que o racismo perpassa nossas relações mais cotidianas. Nesse contexto, isso se deve a diversos fatores e um deles é a formação acadêmica de professores já atuantes no ensino básico que não tiveram disciplinas sobre esses conteúdos, e mesmo que esse professor tenha no programa da sua disciplina conteúdos voltados à cultura e à história afro-brasileira, muitas vezes não sabe lidar de forma não-racista. O documento que você citou [Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais] está embasado no Parecer Petronilha, nesse documento é dito que se trata de pedagogias que estão em construção, são pedagogias “por criar”. Nunca se falou em história da África e cultura afro-brasileira nessa perspectiva que se pretende colocar. Se isso não está sendo feito ainda, não significa que as diretrizes não estão valendo nada, pelo contrário, o que precisa é arregaçar as mangas e trabalhar para que elas sejam implementadas cada vez mais.

OC: É de se esperar que haja um empenho maior por parte dos alunos ao estudarem conteúdos pelos quais eles esperam ser avaliados em processos seletivos como o vestibular. Considerando essa nossa afirmação,  você considera haver algum tipo de negligência no trato de questões étnico-raciais em processos como esse? Se sim, de que forma uma melhor abordagem refletiria uma maior visibilidade do tema por parte dos estudantes e da comunidade em geral?

Lílian: Essa pergunta é justamente o meu pressuposto de pesquisa, eu parti desse pressuposto de que ao fazer o vestibular há sempre um desejo de entrar na universidade pública, pelo status que sempre teve de excelência em termos de formação superior. O tipo de processo seletivo, baseado em exame, tem interferido na formação básica dos alunos. Ou seja, especialmente na iniciativa privada, os alunos são preparados com o objetivo de passarem no vestibular. A gente observa escolas particulares divulgando a quantidade e a colocação de ex-alunos aprovados na universidade pública como uma forma de propaganda. Portanto, se no ensino básico, em especial no médio, a preocupação é com o acesso ao ensino superior, de todo o material que eu preciso estudar, a qual eu vou me dedicar mais? Eu vou me dedicar aos que estão caindo no vestibular. Não são raros os colégios, principalmente da iniciativa privada, pegarem provas de vestibular que já aconteceram e usarem como um roteiro na sala de aula, então, se não aparece história e cultura afro-brasileira e africana nas questões, quando é que esses alunos e professores vão se dedicar a essa temática? Falando especificamente dos alunos, qual eles vão querer estudar mais? E outra coisa, quando a gente trata de história geral, trata-se da história de que lugares e povos? Essa é justamente a questão trazida no Parecer Petronilha. O Brasil reivindica tanto ser uma democracia racial por sermos miscigenados, mas quando estudamos sobre o nosso povo, encontramos só um aspecto, o europeu, é o que a gente chama de currículo eurocentrado. Precisamos ampliar esse escopo e dividir melhor esse currículo para nos entendermos de fato enquanto povo miscigenado e não ficar com uma só referência, a europeia. Agora falando especificamente da minha pesquisa, com base no pressuposto de que os vestibulares ditam uma prática de estudo, analisei as provas de vestibular disponíveis de 7 universidades públicas do Paraná e provas do Enem. Ao todo, eu cheguei a ler 8.489 questões e, desse montante, menos de 2% têm temáticas afro. E isso ainda considerando questões não-culturais: as que incluíam questões geográficas, por exemplo, como clima, vegetação africana etc. O quanto as questões desse percentual contribuem ou não com a implementação das diretrizes curriculares em questão? Se formos criteriosos com relação a essas questões, analisando o enfoque que é dado à temática, esse percentual cairia muito mais. Então, constatamos que o ensino proposto pelas diretrizes não aparece. Além disso, em algumas provas eu não encontrei nenhuma questão relacionada à história ou cultura afro. O aluno vai fazer a prova e volta sem nem ver esse tema. E eu estou falando de 7 universidades e do ENEM. Agora a questão é: Se o que condiciona os estudos do aluno é o que cai no vestibular, ele está estudando história e cultura afro-brasileira e africana? Não! E ainda que ele estude, ele está estudando com o enfoque que as diretrizes propõem? Não também, porque é retratado sempre do mesmo jeito na prova. Não é isso que as diretrizes propõem, o que se quer é muito mais, é que se conheça algo que ainda não é tratado no currículo.

OC: Nosso modelo educacional prevê o trato com questões relativas à colonização africana e brasileira, mas estas são quase sempre abordadas pela perspectiva do colonizador. De que forma seria possível promover uma mudança nesse modelo de ensino de modo a priorizar a história dos povos africanos?

Lílian: A resposta mais direta que eu dou, embora ela não se resuma a isso, é: leia o documento Parecer Petronilha que eu estou citando. Eu falo isso não porque lá tenha todas as respostas, mas porque quando você vê a história do Brasil tal como você sempre aprendeu, você começa a questionar certas perspectivas por conta das orientações que as diretrizes trazem. Esse documento “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” justifica a necessidade do trato com essas questões no ensino básico, nele a autora trata brevemente do processo de alijamento da população negra, apresenta o objetivo de mostrar que existem outras perspectivas e até traz exemplos de temáticas para guiar o professor. Quando a autora fala que essas são pedagogias “por criar” isso significa olhar para esse currículo sob outra perspectiva. Só o fato de a gente perceber que o nosso currículo tem um olhar eurocentrado já é um ganho. Agora, se você enquanto professor está de fato disposto a mudar isso, você já vai procurar estudar os conteúdos e preparar o seu plano de aula sabendo que o enfoque deve ser outro e, para isso acontecer, é necessária a formação continuada de um professor que se propõe a fazer diferença e não só preparar o aluno para o mercado de trabalho. A formação continuada com enfoque proposto pelas diretrizes pode contribuir para que esse professor trate os conteúdos de maneira adequada, mas é importante dizer que essa adequação também depende da postura dos(as) professores(as), uma vez que – dado que nossa sociedade é racista – podem manter um posicionamento tradicional eurocêntrico.

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