por Felipe Lisbôa e Isabela Cristo

 

         Com os acontecimentos do mês de fevereiro no estado do Espírito Santo, voltaram à tona as discussões acerca da desmilitarização da Polícia Militar. Este é um debate antigo e que gera muita controvérsia, pois existem argumentos sólidos tanto de quem é a favor, quanto de quem é contra tal mudança.

        Para entendimento do que seria esse processo nos dias de hoje, é necessária uma volta ao passado. A divisão entre Polícia Militar e Civil existe no Brasil desde antes da Proclamação da República. Em 1886, com o Decreto Imperial nº 3598, foi criada a Guarda Urbana no município da Corte (Rio de Janeiro), que provocou a divisão entre o que podem ser considerados as origens da Polícia Civil e Da Polícia Militar, na época, Guarda Urbana e Corpo Policial da Corte, respectivamente. Ao longo da história essas corporações adotaram outros nomes até que, em 1988, a Constituição Federal formalizou suas diferenças em âmbito nacional e explicitou, no artigo 144, a atribuição de cada grupo. Às policias civis coube as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, enquanto às militares ficaram os papéis do policiamento ostensivo e da preservação da ordem pública.

         Assim, a proposta de desmilitarização prevê a mudança da Constituição por meio de uma emenda constitucional, que consiste na formação de um único grupo policial que tenha uma constituição civil, o que ocasionaria a união das polícias Militar e Civil. Na reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU em maio de 2012, a Dinamarca recomendou ao Brasil que extinguisse a Polícia Militar, porém a proposta foi negada nacionalmente por afetar a Constituição de 1988, além de, naquele momento, ainda haver a dúvida do que realmente significava a proposta de desmilitarização.

       Em entrevista concedida ao portal EBC, o professor de direito penal, Túlio Vianna, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), expressou que “antes da ditadura militar, existiam polícias Militar e Civil, mas a Civil também desempenhava papel ostensivo. Foi com a ditadura que as atribuições da Polícia Civil foram se esvaziando e a Militar tomou para si toda a parte ostensiva”. Ele, ainda, comentou sua opinião sobre o fato: “Essa divisão atual é péssima para o país do ponto de vista operacional, pois gasta-se em dobro, e é ruim para o policial, que precisa optar por uma das carreiras”.

       É importante ressaltar que esse debate sobre a desmilitarização é mais antigo e ideias de mudanças práticas existem há mais tempo. Em 2009, o deputado federal Celso Russomano (PP-SP) apresentou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 430, que visa à unificação da Polícia Civil e Militar dos Estados e do Distrito Federal, além da desmilitarização do Corpo de Bombeiros, bem como atribui outras funções para as Guardas Municipais. A PEC 102, de 2011, criada pelo senador Blairo Maggi (PR-MT) é menos radical, pois autoriza os estados a desmilitarizarem a Polícia Militar, ficando ao cargo deles a unificação com as Polícias Civis. Essa PEC foi, posteriormente, anexada à PEC 430. Em 2013, o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) apresentou a PEC 51, prevendo uma carreira civil única para as polícias e concedendo autonomia aos estados para estruturarem seus órgãos de segurança pública. Todos esses projetos estão aguardando aprovação na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC).

         Para os defensores de tal ideia, o problema da militarização da Polícia parte de uma questão de lógica. Em uma entrevista à Revista Fórum, online, o ex-Secretário Nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares comentou que “Em primeiro lugar, é preciso saber o que significa, para uma polícia, ser militar. No artigo 144 da Constituição, significa obrigá-la a copiar a organização do Exército, do qual ela é considerada força reserva” e ainda completou que enquanto o papel do Exército é defender o território e a soberania nacional, o objetivo da Polícia Militar é “garantir os direitos dos cidadãos, prevenindo e reprimindo violações, recorrendo ao uso comedido e proporcional da força”. Sendo assim, na opinião de Soares, as únicas situações em que poderia haver semelhança entre o exército e a PM são os confrontos armados, ainda com diferenças marcantes, afirmando que “a imensa maioria dos desafios enfrentados pela polícia ostensiva são melhor resolvidos com a adoção de estratégias incompatíveis com a estrutura organizacional militar”, por isso “a desmilitarização das polícias é indispensável”. É preciso, na opinião de Soares, que o policiamento ostensivo identifique problemas e prioridades, trabalhe em conjunto com a comunidade, em um contexto que o policial tenha sua autonomia garantida para tomar decisões estratégicas.

      Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgada em julho de 2014, entrevistando mais de 21 mil policiais em todo o Brasil revelou que, do total de entrevistados, 73,7% são a favor da desvinculação da Polícia Militar com o Exército, 76,1% deles defenderam a desmilitarização e 93,6% disseram que é preciso modernizar os regimentos e códigos disciplinares. Do outro lado, defensores da Polícia Militar dizem que, com a desmilitarização, seriam reduzidos quase 40% das Forças Armadas, pois o Exército, a Marinha e a Aeronáutica contam com 370 mil homens servindo, com mais, aproximadamente, 1 milhão de homens em Forças Reservas (na qual se é enquadrada a Polícia Militar). Desse número, quase a metade é constituída por policiais militares e, isso, significaria uma perda muito grande para as Forças Armadas nacionais.

        Para José Vicente da Silva Filho, também ex-Secretário Nacional de Segurança Pública, em entrevista dada ao site BBC Brasil, “o problema não está no militarismo ou no fato de as polícias militares terem essa qualificação militarizada, mas sim no fato de que o nosso modelo policial é um modelo ruim em vários sentidos. Ineficiente, muito caro, ele é propenso algumas vezes a uma situação de violência e é ineficaz em termos de investigação”. Ele ainda argumenta que a disciplina e o controle dentro das corporações são vantagens oferecidas pela estrutura militar nas polícias brasileiras e que “o problema não é desmilitarizar, talvez o nosso problema seja muito mais nas polícias civis, pelo baixíssimo índice de esclarecimento dos crimes, do que nas polícias militares”. Quando questionado pela BBC Brasil sobre os pontos fracos da polícia, Silva Filho comentou que “outro problema também é uma espécie de centralização que existe em algumas polícias. Uma organização militar moderna descentraliza, delega bastante aos comandos intermediários. Isso aqui falha na maioria dos Estados”.

         A centralização de poder também é uma questão a ser debatida. Com a desmilitarização, toda a polícia poderia acabar tendo que se submeter a um único Ministério Federal, centralizando ainda mais todo seu poder. Além disso, outro ponto relevante é sobre a mudança no treinamento policial como consequência da desmilitarização, pois seria preciso mudar o treinamento das polícias e reforçar uma flexibilização da formação do policial – com a diminuição dos conteúdos militares e estímulo para a realização de cursos de especialização. Sendo assim, a mudança legislativa não seria a única necessária para a unificação do policiamento.

         Com tantos argumentos, tanto contra quanto a favor, esse debate parece ainda estar longe de uma conclusão definitiva. Entretanto, a discussão sadia e a paciência para entender os fatos e ponderar sobre argumentos podem nos aproximar mais de uma solução que satisfaça ambas as partes, seja ela uma desmilitarização radical ou uma modernização nos modelos utilizados hoje.

 

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