por Bruno Barra e Tacia Rocha

           Já faz tempo que é senso comum afirmar que o século XXI, principalmente, é marcado por diversas transformações nos campos de atuação humana. Mas não tem nada de óbvio ou “natural” nesse cenário a ponto de não questionar o que está acontecendo. Afinal, essas mudanças são de ordem histórica, econômica, social, cultural e política principais cujas principais locomotivas são as TIC (tecnologias da informação e da comunicação) e a IA (inteligência artificial). Os efeitos dessas tecnologias são: velocidade, instantaneidade, flexibilização, desterritorialização e liquidez. Essas características estão presentes tanto nas práticas triviais quanto nas questões mais complexas como o sistema educacional.

        Pensando na relevância deste tema, decidimos investigar junto a especialistas as expectativas, as tendências e os perigos a serem enfrentados pela educação e pelo trabalho numa sociedade global e tecnologizada. Entendemos que é preciso repensar e reinventar várias lógicas para conseguir acompanhar as mudanças tecnológicas irrevogáveis e fazer melhores escolhas.

É HORA DE APRENDER COM AS MÁQUINAS

           IA parece um tema complexo, não? É o que pensamos quando definimos esta pauta, afinal esse campo tem como objetivo criar dispositivos que imitem a inteligência humana. No entanto, para nossa surpresa o termo não é novo. O primeiro uso da expressão teria sido feito pelo professor John McCarthy, da Universidade Stanford, em 1956. Para esclarecer nossas dúvidas procuramos Eric Aislan Antonelo, doutor em Engenharia da Ciência da Computação, pela Universidade de Gante, na Bélgica. O pesquisador ressalta que o princípio da IA já estava presente no teste de Turing. Desenvolvido em 1950 por Alan Turing, matemático e cientista da computação britânico, o teste tinha como objetivo “determinar se a inteligência de um certo programa de computador poderia ou não ser diferenciada da inteligência de um ser humano através de uma série de perguntas e respostas entre um juiz (humano) e um outro interlocutor”. Trata-se de IA quando não se pode distinguir se um comportamento é gerado por uma máquina ou por um ser humano.

          Antonelo explica que para criar modelos matemáticos que imitem o comportamento humano, a IA se apropria de conhecimentos da neurociência e combina tecnologias como: i) a deep learning ou aprendizado profundo, que possibilita a representação de conceitos e abstrações realizado em redes neurais; ii) a machine learning, que habilita a criação de modelos computacionais a partir de dados como o reconhecimento da identidade de usuários em fotos usado pelo Facebook; iii) o processamento de linguagem natural como fazem assistentes pessoais de gadgets como o Siri no iPhone e computadores Apple que “reconhece a fala e consulta um enorme banco de dados para gerar uma resposta sonora pela síntese de fala”.

          E falando em deep learning, uma forma de emprego das redes neurais, ela tem sido responsável pela popularização da IA nos últimos 10 anos. Contudo, o especialista explica que as redes neurais artificiais não são novidade. “Existem desde a introdução do primeiro modelo de neurônio artificial: o modelo de McCulloch e Pitts de 1943. Daí em diante, vários outros modelos de redes neurais foram propostos (e.g. mapas de Kohonen, redes de Hopfield, redes neurais de convolução, etc.)”, completa. E apesar do Deep Learning usar o mesmo algoritmo desde de 1982, ele só se tornou efetivo mais recentemente devido ao “alto poder computacional existente hoje dado por GPUs (placas gráficas de computadores) e clusters computacionais; algoritmos de otimização mais eficientes; e uma exuberante quantidade de dados digitais através dos quais as redes neurais são treinadas”, explica Antonelo. O pesquisador reitera que o efeito do deep learning está presente em diversas áreas da ciência, cada vez mais complexas e sofisticadas, projetadas por grupos como Google DeepMind e OpenAI e por uma diversa gama de startups.

           Esse crescimento e aplicação da IA na ciência é fruto de investimentos de setores privados junto às universidades. Um exemplo é a IBM, que anunciou, em fevereiro de 2019, a fundação de um centro de pesquisa em parceria com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Trata-se da primeira unidade de IA na América Latina, investindo cerca de US$ 20 milhões ao longo dos próximos dez anos. Sobre esse fomento, Antonelo destaca os grandes centros de IA na América do Norte, Europa e China e por isso, para ele, o Brasil precisa correr. “Uma automação ou modelo preditivo devidamente implantados na indústria ou governo tem potencial de gerar uma economia da ordem de milhões anualmente”. Além do caso FAPESP e IBM, Antonelo destaca a vontade expressa por Marcos Pontes, ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, em criar um centro nacional para pesquisa em IA e Cibersegurança. O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) já implantou seu próprio centro de IA a fim de “automatizar tarefas repetitivas de funcionários (rotinas judiciais) com uso de robôs e criar sistemas de apoio a decisão do magistrado, dando agilidade ao setor judiciário e processos”.

           Vale um alerta: apesar dessas iniciativas recentes se mostrarem um despertar de alguns setores governamentais e empresariais para a potencialidade da IA, de acordo com Antonelo no meio acadêmico, ainda é preciso melhorar os seguintes pontos: internacionalização da pesquisa e projetos de cooperação; cultura de intercâmbio e parceria entre universidade e empresas (através de bolsas de mestrado e doutorado industriais, por exemplo); atração de pesquisadores de renome internacional. Com isso, haverá mais chance de ter pesquisadores dentro dos seletos grupos de pesquisa em IA. Por nosso país possuir dimensões continentais e uma população de mais de 200 milhões, ainda há muito espaço para crescer nessa linha de pesquisa bem como no contexto de suas aplicações na sociedade.

            Indagado sobre os perigos e os impactos da IA, Antonelo pondera que, apesar de filosoficamente a IA propor-se a libertar homens e mulheres de tarefas mecânicas para que possam desempenhar tarefas mais criativas, a IA deve causar uma perturbação significativa no mercado de trabalho e nas relações humanas, visto que seu objetivo é automatizar e otimizar processos, e por consequência, substituir grande parte do trabalho de um humano. Ele sugere que os governos criem políticas sociais como o “treinamento de pessoas para novas funções; imposto sobre produtos altamente automatizados” de modo a servir como medidas de arrefecimento aos efeitos negativos.

           Em relação às medidas preventivas, a formação educacional é a solução. Independentemente da área de atuação, os sujeitos que aprenderem os conceitos de IA estarão mais aptos para viver numa sociedade automatizada e atuar em suas respectivas profissões. “Todos saberão ou precisarão saber programar pequenas rotinas de software em alguma linguagem de computador. Isso já é realidade em muitas escolas de ensino médio no mundo e se tornará padrão em breve, como previsto por Bill Gates, fundador da Microsoft”, eviencia Antonelo. O pesquisador também aposta que esses saberes serão critérios relevantes para garantia de empregabilidade de jovens sendo tomados pelo mercado como requisitos fundamentais tal como ocorre com a língua inglesa e os conhecimentos de informática.

E COMO FICA A EDUCAÇÃO NESSE CONTEXTO DE TRANSFORMAÇÃO TECNOLÓGICA?

            No campo educacional, os efeitos da onipresença das TIC passaram a ganhar vigor a partir dos anos 1990 com a implantação de Sociedades da Informação em diversos países, orquestrada por órgãos globais como ONU, OCDE, FMI e gestada por políticas nacionais. No Brasil, essas transformações ocorreram no governo FHC por meio de projetos como o Livro Verde e o Livro Branco. A digitalização da sociedade passou a requerer novas práticas: na educação, novos currículos e novas práticas pedagógicas dos atores sociais – professores/as e alunos/as.

            Sobre este aspecto, ouvimos a pedagoga e Professora Ma. Norma Viapiana, da Faculdade Sul Brasil. A professora explica que o discurso dominante é de que a educação está em crise. Nesse cenário, o/a professor/a é tanto responsabilizado/a pelos efeitos negativos quanto encarado/a como principal agente de mudança. Como consequência, ele/a passa a sofrer pressão para obtenção de bons resultados quantitativos de seus/uas alunos/as, sendo incentivados/as à adoção de metodologias ativas. As “metodologias ativas são promessas de trazerem vantagens como a autonomia e o protagonismo do/a aluno/a, flexibilidade, personalização do ensino e engajamento”, esclarece a professora.

         O principal conceito pelo qual se tomam as metodologias ativas como agenciamentos transformadores é o de personalização do ensino. A pedagoga ressalta que as críticas conceituam a escola contemporânea ainda como um modelo de fábrica, desenhado para atender à era industrial, na qual o ensino e aprendizagem são vistos como produto. Por outro lado, “a personalização do ensino entende que pessoas aprendem de formas diferentes e em ritmos diferentes, com base nos seus conhecimentos prévios, interesses e emoções”. A IA pode ajudar no processo de elaboração de percursos personalizados. O/a aluno/a deixa de ser visto como massa e passa a ser estimulado/a a desenvolver sua autonomia, para que caminhe no seu próprio ritmo e para que aprenda por meio de diferentes suportes. “As consequências são o empoderamento de alunos/as a expressarem sua própria voz, a conexão e o pensamento crítico sobre seu próprio mundo, colaboração com outros, questionamento e exploração de respostas, desenvolver a criatividade”, sugere Viapiana.

             Para que ocorra a personalização do ensino, é necessário que as TIC passem a constituir o processo ensino e aprendizagem. O ensino híbrido ou educação presencial blended é uma das principais metodologias, pois mescla o aprendizado on-line com o off-line. Vipiana explica que na modalidade on-line “com o auxílio de tecnologias, o/a aluno/a tem controle sobre onde, como, o que e com quem vai estudar”. Na modalidade  off-line, “as interações interpessoais são valorizadas por meio de trabalhos que envolvam toda a turma ou grupos menores para a realização de projetos”. Apesar de serem momentos diferentes, eles devem ser complementares e promover uma educação mais eficiente, interessante e personalizada.

            Vipiana acrescenta que além do ensino híbrido, há outras metodologias ativas como a “aprendizagem baseada em projeto” que consiste em fazer com que os/as alunos/as se envolvam com tarefas e desafios a fim de desenvolver um projeto ou um produto. Pode-se usar também a metodologia de “educação maker ou hands-on”, que resgata o aprendizado que passa pelas mãos no qual alunos/as são colocados/as para desenvolverem um produto concreto e relacionado com o mundo real. Ainda, o “design thinking” é uma metodologia deslocada da forma de pensar dos/as designers a fim de possibilitar que alunos/as proponham soluções criativas e inovadoras para problemas.

A EDUCAÇÃO SERÁ MAIS DEMOCRÁTICA?

            Para discutir o impacto das TIC na sociedade e a crescente onda do Ensino Superior na Modalidade a distância, conversamos com a Profa. Renata Oliveira, Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Maringá, que nos conta que este novo jeito de cursar o Ensino Superior não irá extinguir cursos presenciais “Um erro que cometemos ao pensar a EaD é vê-la não como uma modalidade de ensino e sim como algo que irá substituir o ensino presencial. Ao se tornar cada vez mais um produto de mercado no Brasil, a EaD passou a ter essa percepção, que é errônea. Não haverá o desaparecimento dos cursos presenciais, mas sim outras formas de se fazer o Ensino Superior. Aqui, a Universidade Aberta do Brasil ainda funciona alocada nas universidades públicas, porém no mundo, como o caso de Portugal, a Universidade Aberta a distância é uma realidade e uma entre tantas modalidades diferentes de ensino.’’

            Renata, quando questionada acerca do local ocupado pelas ciências humanas na era das TIC, e logo, o grande prestígio dado às ciências exatas, afirma: “A supervalorização deste ramo científico pode ocorrer, pois ainda existe uma ideia de que a inteligência artificial, as tecnologias estão desassociadas de um saber da ciências humanas, é como se pensássemos apenas em robôs e não em quem os opera ou manipulam. O ser pensante é responsável pela aplicabilidade da tecnologia desde a sua criação até o seu uso. O lugar da ciências humanas é promover a conscientização, no sentido de que, é o conhecimento humano que promove o desenvolvimento da tecnologia. A esse respeito a pesquisadora Vani M. KENSKI em seu livro, Educação e tecnologia: o novo ritmo da informação, afirma que é preciso entender que as “tecnologias, sozinhas, não educam ninguém”. Ou seja, ainda que a mão de obra humana seja diminuída em certos momentos, em detrimento dos robôs por exemplo, o pensamento e a consciência humana ainda são necessários, mesmo que em menor medida.

            Por outro lado, sabe-se que a sociedade brasileira é desigual em distribuição de renda, acesso a informações e até mesmo no que diz respeito a alguns direitos básicos. Nesse sentido, Renata Oliveira, que é também Cientista Social, afirma: “A globalização e a ideia de um mundo em uma aldeia global nos revela grandes problemáticas. Sem dúvida ainda vivemos num mundo em que falta luz, água, saneamento básico, empregos e tudo isso conserva uma desigualdade social em crescimento. A IA e as TICS não estão disponíveis para todas as pessoas e por isso ainda é muito difícil não associá-las a desigualdade social. Porém, quando pensadas em prol da extinção dessa desigualdade são ferramentas poderosas para um mundo mais igualitário e justo”.

             Não há dúvida que a IA e as TIC estão revolucionando a sociedade e, consequentemente, a educação. Contudo, o desenvolvimento das ferramentas, a aplicação e a apreensão por parte de professores/as e alunos/as está caminhando em passos lentos. Ainda é preciso que o desenho da educação tome feições mais claras para se ter um posicionamento adequado sobre as benesses das TIC. O que se tem certo é que se trata de um caminho sem volta e que exige um esforço interdisciplinar para que as fronteiras de exclusão não se acirrem e que a educação cumpra a promessa pela qual as TIC se posicionam: educação para toda vida e para todo mundo.

 

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