O professor deve tornar o erro, a falha, a lacuna do texto, visível para quem produziu, porque quem produziu não produziu vendo isso, senão não teria cometido o erro. Esse é o olhar formativo, que é assegurar ao outro as condições para que ele realize o seu projeto de dizer.”

 

por Flaviane Moraes e Neil Franco

 

Esbanjando conhecimento, experiência, bom humor e até polemizando alguns assuntos, a Profa. Dra. Lívia Suassuna (UFPE) concedeu entrevista a O Consoante, por ocasião de sua passagem por Maringá, quando proferiu a conferência de abertura do IV SEPPROLE – Seminário de Pesquisas do Profletras, dias 8 e 9 de novembro, na UEM. Lívia Suassuna apresenta uma vasta produção sobre o ensino de língua portuguesa e, recentemente, organizou o livro “Ensino de língua portuguesa: reflexões sobre currículo”. É professora das disciplinas de estágio, atuando no ensino de língua portuguesa, didática do português e linguística aplicada ao ensino de português. Difícil definir o que é mais encantador, a professora ou a pesquisadora Lívia, já que durante a entrevista evidencia-se o quanto ela conhece sobre o “chão de sala”, tanto o universitário como o da educação básica, e o quanto ela continua contribuindo para as pesquisas acerca do ensino de língua portuguesa. É nítida a admiração dessa autora/pesquisadora/professora por João Wanderlei Geraldi, seu orientador durante o doutorado na UNICAMP, já que o cita em diversos momentos, para elucidar, exemplificar ou confirmar seus pontos de vista. Lívia Suassuna responde sobre o ensino de língua portuguesa, gêneros discursivos, avaliação do texto do aluno, análise linguística, currículo e aponta que o grande desafio é trabalhar, em sala de aula, a ideia da língua enquanto discurso. Também trouxe à tona alguns pontos polêmicos, como o processo de construção da BNCC, a cisão da Base do ensino fundamental e do ensino médio, a artificialização da língua e o controle do discurso da escola. Em tempos de escola sem partido, Lívia retoma a pergunta de Foucault “O que é que há de tão perigoso no discurso que é preciso controlar a sua circulação?”. E responde que “escola faz cabeça e dissemina discursos na sociedade”.

 

O CONSOANTE: Em seu livro, em uma quase longínqua década de 1990, Ensino de língua portuguesa: uma abordagem pragmática, você faz uma análise sobre uma crise que atingia o ensino de língua portuguesa na escola. O que mudou significativamente de lá para cá? Não estamos mais vivendo essa crise ou apenas mudou de configuração?

Lívia Suassuna: Acho que algumas coisas mudaram. O texto foi para sala de aula, pegando o título daquele livro de Geraldi [O texto na sala de aula], o livro que foi o marco da mudança. Na coletânea defendia-se exatamente que o texto fosse o objeto de trabalho. Para ensinar língua, o texto tinha que estar na sala de aula. Aquele título não foi casual. Eu acredito que a gente tem desenvolvido práticas de leitura e de escrita. Houve um grande movimento de mudança curricular, de formação docente a partir daquele marco. A gente já ampliou o acesso à educação básica de lá para cá. Agora acho que tem uma coisa que não resolvemos, que é a ideia da língua enquanto discurso sendo trabalhada dentro da sala de aula. Pegamos, ainda, muito o texto para a partir dele trabalhar, mas esse texto que chega à sala de aula nem sempre é resultado de situações interativas. Geraldi reconfigurou também essa ideia dele no A aula como acontecimento, livro de 2010, publicado na época de sua aposentadoria. Ali, ele insiste nessa ideia de que a aula tem que ser acontecimento porque o discurso é acontecimento, e a partir do que ele coloca vemos que é difícil ainda engajar alunos e professores numa prática didático-pedagógica que seja interativa. Ainda há muito uma artificialização da língua. Por exemplo, o que é que motiva as pessoas a escreverem dentro da escola? Ainda continua sendo uma tarefa, ainda continua sendo uma prescrição curricular que faz a gente escrever. A escrita não nasce da interação, de um modo geral, acho que esse desafio temos de enfrentar.

OC: Em um de seus artigos, você faz referência ao professor que tem um olhar “normativo” e ao que tem o olhar “formativo” durante a leitura dos textos de seus alunos. Qual a diferença entre esses “olhares”?

 Lívia: O olhar corretivo, normativo, é exatamente este: o aluno produz um texto e você olha para o texto procurando corrigi-lo, limpá-lo, ajustá-lo a uma forma. Num olhar formativo, o texto do aluno vai chegar na sua mão já como resultado de uma situação interativa, o mais autêntica que isso for possível. A língua é acontecimento, é evento, é histórica, mas você precisa torná-la objeto de estudo. Esse é um dilema com qual a gente vai ter que lidar sempre. No momento estamos fazendo uma pesquisa sobre os modos de didatização da língua pelos estagiários, porque eu estudo muito os estágios e a formação inicial docente e vejo que a didatização exige certa programação prévia, exige  certa ordenação de conteúdos e de saberes. Então, não tem também como a gente também fugir disso para ensinar. O que é que a gente pode fazer? Dependendo da relevância cultural das situações interativas, podemos minimizar essa artificialidade. Mas, quando o texto chega em nossas mãos, já resultando de um processo interativo, como eu disse, o mais autêntico possível, eu vou colocar sobre ele o olhar formativo, quando eu me interessar primeiro pelo que o texto diz e, depois, pela forma como o texto diz. Num trabalho de reescrita, vamos mostrar ao aluno como o texto dele diz. Digo muito aos estagiários lá da UFPE: o aluno nunca erra porque quer, a gente se dá tão mal quando erra, que ninguém erraria de propósito. Quando o aluno escreve um período truncado, por exemplo, quando escreve um período que está lacunoso, quando o teor de informatividade não está bom no texto, o professor que tem olhar formativo vai perceber isso pela experiência que ele tem como produtor de texto e também como leitor. O professor deve tornar o erro, a falha, a lacuna do texto visível para quem produziu, porque quem produziu não produziu vendo isso, senão não teria cometido o erro. Esse é o olhar formativo, que é assegurar ao outro as condições para que ele realize o seu projeto de dizer. Trabalhamos muito com a ideia do projeto de dizer, uma ideia bakhtiniana, inclusive: sobre o mundo o que eu tenho a dizer? E vou dizer dessa forma e o professor vai dizer para o aluno “é dessa forma, pode ser dessa, se veja dizendo isso; confronte com aquilo outro”. Dessa forma, ao mesmo tempo em que reflito sobre a língua, reflito sobre o que eu pretendi dizer.

OC: Você evidencia em outro dos seus trabalhos que há uma confusão conceitual entre currículo e conteúdos curriculares. Qual a(s) principal(is) diferença(s) entre eles? Por que é importante o professor ter clareza sobre essa diferença?

Lívia: A escola tradicional trabalha muito com uma ideia de uma realidade quase que preestabelecida. Geraldi tem um texto sobre isso, em que afirma mais ou menos o seguinte: “Não adianta a gente pensar a linguagem como um ato enunciativo, como um processo, como um discurso e tentar pegar toda a fluidez do discurso e encaixar nas amarras da escola”. A escola gosta de tudo muito homogeneizado, seriado, controlado, fatiado, a gente ainda tem muito do modelo tecnicista dentro das escolas, das salas de aula. Fomos acostumados a ter um currículo que era entendido como sendo os conteúdos que deveriam ser ensinados. E a pergunta do professor sempre era assim: “Qual é o currículo para eu poder ensinar?”. Nunca se colocavam, por exemplo, questões do tipo: “Quem estabeleceu esses conteúdos” e “De onde eles vieram?”. O professor normalmente queria saber quais eram os conteúdos para ensinar e por isso que ele faz uma pergunta que Angela Kleiman diz que é uma pergunta equivocada na construção do currículo, que é assim: “Como é que eu faço para ensinar X? Como é que eu faço para ensinar Y?”. O professor está sempre querendo saber da metodologia para ensinar algo que já está preestabelecido e que ele não questiona. Começamos a imaginar que currículo era isso, era essa lista de conteúdos que caberia ao professor ensinar, e ele vai se preocupar agora com a forma como ensinar isso, mas ele nunca questionou a gênese desses conteúdos. A teoria curricular contemporânea parte de outro ponto. O currículo tem um conceito muito mais amplo, porque ele envolve o que a escola faz. O que é o currículo? É a prática, é o vivido na escola, e a teoria curricular contemporânea também nos mostra que o currículo tem uma relação muito estreita com a cultura. O que é que vai ser currículo numa das visões das teorias contemporâneas? O currículo é uma porção do conhecimento, do saber, que você elege para ser escolarizado. Esse corte não é um corte inocente, não é um corte ingênuo, ele está determinado por interesses, por relações de força. Então essa é a primeira questão que a gente tem que entender do currículo, esses cortes não são cortes aleatórios. É importante que o professor participe dessas discussões, professores, alunos, os agentes da escola, e entendam o currículo como um dispositivo cultural. O currículo não é só conteúdo. Currículo é o que eu fizer na escola e o que eu fizer na escola estarei fazendo com as pessoas. A escola deve ter em conta um projeto de sociedade. A teoria curricular vem dizendo que privilegiamos discursos, explicações, visões de mundo ao longo da história, porque se estabeleceram previamente conteúdos que os professores entenderam como sendo o currículo. O compromisso dos professores com os conteúdos curriculares era tamanho, que eles diziam assim: “Eu tenho que dar a matéria, tenho que terminar o ano, tenho que terminar o livro didático, tenho que terminar aquela lista de assuntos previstos”. É preciso entender o currículo como um dispositivo mais amplo, que traduz o que de fato ocorre na escola, inclusive, porque, também, a gente vem percebendo que currículo prescrito não é necessariamente currículo vivido. A gente está vivendo um processo de reforma curricular agora na UFPE, nas licenciaturas. É uma reforma prevista pela Resolução n. 2 de 2015, do Conselho Nacional de Educação. Incluímos uma disciplina obrigatória para todas as licenciaturas, que é sobre teorias curriculares, porque isso faz falta e sempre teve no curso de Pedagogia, mas não tinha nas licenciaturas.

OC: E faz toda diferença para o professor compreender isso, porque – não sabemos se é correto ou não, Lívia – cada ano o professor tem uma turma diferente na sua mão. Então, é correto o mesmo currículo que valia para o ano anterior valer para o ano seguinte, mesmo que o alunado seja totalmente diferente?

Lívia: Isso mesmo, alunado, realidades sociais, questões sociais, dinâmicas e práticas de vida. Você não pode “congelar”, você não pode supor que todo 1º ano do Brasil inteiro vai ser o mesmo. É uma discussão bem complexa, mas está muito atrelada às relações de poder e ao controle do discurso, por isso, muitos teóricos da teoria curricular contemporânea são inspirados em Foucault, porque Foucault estudou muito o controle social do discurso e o currículo é uma discussão que está associada a isso.

OC: Os PCN propuseram que o ensino de língua portuguesa fosse estruturado em torno dos mais diversos gêneros discursivos, sendo alguns deles considerados mais adequados para cada nível escolar. Você concorda que há gêneros mais adequados par cada ano/série?

Lívia: Essa é uma discussão bem complexa, porque para definir que gêneros se deve trabalhar em cada ano temos de supor uma escola, um perfil de aluno, um perfil de grupo, que é isso que o livro didático faz. Quando o livro didático traz aquelas lições prontas, traz uma programação, uma hierarquização de conteúdos, pressupondo um certo tipo de aluno que sempre imaginamos que seria o mesmo de norte a sul do país. Eu acho que não, acho que não deve ter, até porque não são só os gêneros os conteúdos de ensino e os objetos de ensino da língua. A ideia dos gêneros se consolidou muito a partir dos PCN. Veja que é um pouco diferente do que Geraldi propôs nos anos 1980, porque ele dizia que o texto era objeto de ensino. Na verdade o texto se materializa num gênero, tem existência num gênero discursivo, mas Geraldi dizia assim: “O que é que eu vou tomar como objeto? O texto e suas operações de construção”. Ele dizia que a análise era posterior ao uso. Nós usamos lendo e escrevendo e a análise vai ser posterior. Há muitas tentativas de proposta curricular nos livros didáticos, porque os livros didáticos são documentos curriculares, são propostas curriculares, efetivamente funcionam assim. E há propostas interessantes. Eu acho que tem uma gradação razoável que pode se explicar dentro do limite daquela proposta. O que eu não acho interessante é você dizer assim: “o ideal, que eu não sei quem foi que disse, é que a gente ensine a notícia a partir do 6º ano”. Como? Por quê? Qual é a evidência no próprio texto, no próprio gênero, de que ele tem que ser ensinado, por exemplo, a partir do 6º ano? A gente não tem nenhuma base para sustentar isso. Onde é que a gente vai construir a base? Primeiro temos de entender que as propostas curriculares oficiais não são o currículo da escola. Essa é uma primeira distinção que tem que ser feita. É muito comum dentro dessa postura que o professor sempre queira o currículo já pronto para saber o que é que vai ensinar. Ele não quer discutir currículo. Ele vai pegar esse currículo grande e vai tomar como sendo o currículo da escola. Isso é um equívoco. Temos de pegar o documento referencial, o referencial curricular da rede de ensino, pode ser rede estadual, municipal, temos de tomar aquele documento como referência. A partir dele vamos construir o currículo, a proposta curricular da escola, e a partir do projeto curricular da escola o professor faz o seu planejamento. Não podemos dizer na proposta oficial que há gêneros específicos, indispensáveis a partir de tal série, tal ano, tudo que eu disser pode ser derrubado em seguida. O que a proposta curricular deverá fazer? Funcionar como um referencial, por isso que antes dos parâmetros o que é que nós vínhamos tentando defender enquanto movimento organizado em defesa da educação? Trabalhamos com a ideia de diretrizes curriculares, isso é que é adequado. Não devemos trabalhar com currículos oficiais, até porque não é garantia de que o currículo prescrito é o que vai ser praticado na escola. Temos sempre que ter clareza, enquanto gestores da educação pública, de que aquilo é um documento de referência e que sempre vai ter que ter os limites de um documento de referência e as possibilidades também. Dentro disso, cada escola, enquanto unidade escolar, dentro da sua autonomia, de seus mecanismos de gestão interna, vai fazer o currículo da escola, e o professor em cima disso faz o seu planejamento. Portanto, há gêneros mais adequados para cada série? Ou o que é imprescindível em cada série? Não dá para dizer isso a priori. Por exemplo, eu já tive estagiários que trabalharam no Colégio de Aplicação da UFPE. Lá há uma prática sistemática de leitura e escrita, porque isso é um grande investimento que a escola faz, formar um bom leitor, formar um bom produtor de textos, isso está dentro de um projeto mais amplo da escola, porque justamente os projetos curriculares da escola, das áreas de saber e das áreas de conhecimento, vão se adequar ao projeto macro da escola que é o PPP [projeto político-pedagógico]. Uma das metas do PPP geral do Colégio Aplicação é formar esse leitor, formar um aluno que seja um leitor crítico da realidade, que possa intervir na realidade. Como os alunos já são muito familiarizados com leitura e escrita e com crítica e com fala, então os estagiários tem que “rebolar” um pouco para trazer coisas que eles ainda não aprenderam. Lá se trabalha com manifesto, lá se trabalha com roteiro de filme, de curtas, Temos de nos virar nos 30 (risos). Tudo é possível, a escola aceita, os meninos dão uma boa resposta para isso. Voltando aos licenciandos que trabalharam com roteiro de filme, tivemos essa experiência documentada num capítulo de livro. Mas eu nunca tinha orientado projetos de estágio que tivessem como gênero central para estudo o roteiro de filme. Pois bem, os estagiários possibilitaram aos seus alunos o exercício da linguagem fílmica, que envolveu muita leitura também de texto verbal, leitura de poema, leitura de imagem. Eu nunca pensei que isso ia acontecer, mas aconteceu no Colégio de Aplicação.

OC: Você defende um ensino da produção de textos no qual haja um deslocamento da reprodução para a produção de discursos. Poderia explicitar a diferença entre esses conceitos? Essa diferença passaria necessariamente por uma abordagem dos gêneros discursivos/textuais?

Lívia: Defendo mesmo, com base em Geraldi, que estabelece aquela diferença entre redação e texto, redação sempre foi escrever numa hora definida pelo processo de ensino, definida pelo professor, a partir de um tema dado e esse tema sempre tinha ligações com o calendário cívico, aquelas famosas redações do Dia da árvore, Dia do folclore, Natal etc. Isso é que é o ensino como reprodução, a partir de modelos textuais. E os gêneros estão virando modelo dentro dessa pedagogia dos gêneros como forma, isso é a reprodução. Temos de trabalhar a produção textual realmente como produção. O que vai ser a produção autêntica? Dentro da situação interativa é o sujeito achar que faz sentido tomar a palavra e dizer, realizar um projeto de dizer, isso é que seria produção, essa é a diferença e por isso que lá naquela primeira pergunta eu falei que isso continua sendo um desafio. Quando é que temos de fato o aluno na escola escrevendo porque quis tomar a palavra? Na verdade, ele escreve porque tem que fazer uma tarefa que foi passada para ele. No caso do manifesto que eu comentei rapidamente antes, foram os alunos que quiseram tomar a palavra e disseram “a gente quer fazer um manifesto”. A professora, com sensibilidade, independentemente de estar no planejamento dela, disse “vamos fazer, vamos analisar os manifestos que estavam sendo estudados na literatura, os manifestos que estavam sendo lidos, interpretados e discutidos”. Ela desmanchou tudo que estava no planejamento e os alunos é que tomaram a palavra. Essa é a produção autêntica e não a reprodução. Continua muito desafiador porque a escola com suas estruturas fixas tem muita dificuldade para se abrir para o ineditismo do discurso, é muito desafiador. Eu digo para os meus alunos que rapadura é doce, mas não é mole, que é expressão que a gente usa para uma coisa que é boa, mas que a gente tem que lutar para conquistar. Não é fácil fazer um ensino de língua que se baseia de fato no discurso. O discurso é isso, é a ideia bakhtiniana, cada palavra, cada discurso produzido é um elo numa cadeia ininterrupta de produção de sentido. Era muito bom que na escola todo mundo quisesse escrever porque todo mundo tem algo a dizer. Por isso que a definição de um tema a que me referi na conferência de ontem é tão importante, porque, havendo tema, os meninos se engajam. Ângela Kleiman tem um texto muito lindo sobre o ensino de língua e formação do professor. Ela diz que professor sempre foi acostumado a fazer uma pergunta que é mais ou menos assim: “Como é que eu faço para ensinar tal conteúdo?”.  Mas a pergunta fundante do currículo não deve ser essa. A pergunta fundante do currículo é: “Quais são as práticas sociais em que meus alunos estão inseridos e como é que eu posso trazê-las para elas serem a base do trabalho do ensino?”. Kleiman, nesse texto, dá um exemplo interessante de uma professora que tinha planejado umas atividades para discutir sobre a biblioteca da escola. Ela achou que ia envolver os alunos e, quando ela chegou com todo esse projeto, com os gêneros textuais associados, os alunos estavam danados para discutir a mudança de regra em relação aos uniformes. Eles queriam discutir sobre isso. Disseram: “A gente não quer falar sobre a biblioteca, a gente quer falar sobre uniforme”. Temos de ter sensibilidade e fazer essa virada, porque sobre uniforme todos, naquela circunstância, teriam algo a dizer. Pode convidar, que todo mundo vai querer falar, mas nem todo mundo quer fazer uma redação sobre a “pureza do sorriso”. Uma irmã minha já teve que fazer. O professor chegou na aula do nada e disse: “Hoje é redação. O título é a pureza do sorriso. Fazer 30 linhas”.

OC: No referencial curricular paranaense o gênero notícia é abordado em todos os anos do ensino fundamental, ou seja, do 1º ao 9º ano, porém com complexidade diferente. Qual a sua visão sobre essa abordagem em que o gênero se repete ano após ano de forma “ampliada”?

Lívia: Isso faz sentido, agora, vai exigir que o professor dentro da escola planeje a cada vez, a partir dos níveis que eu já citei: o PPP, o projeto curricular de língua portuguesa da escola, que inclui, dentro dessa visão ampla de currículo a metodologia, as práticas de avaliação, a visão teórica de língua, o livro didático, que vai ser escolhido não como a gente tem feito tradicionalmente, quando o livro didático é que define o currículo; o movimento deveria ser contrário, ou seja, a partir do projeto curricular que eu tenho, eu vou ver qual é o livro, qual é o material que melhor se ajusta a esse projeto, que atenda a esse projeto. Então, eu posso ter a notícia oferecida em todos os níveis da Educação Básica e torná-la um objeto mais complexo cada vez, não há problema nenhum nisso, para isso o professor precisa ter tempo para fazer o planejamento e tem que ter um diálogo permanente com os outros colegas, porque como é que ele vai saber o que é que já foi trabalhado de uma notícia que ele precisa aprofundar agora, ou o que é que não foi? Então isso exige diálogo e reflexão sobre a prática. Não há nenhum problema quando o texto curricular funciona como um referencial, o que não pode é ele ser mais uma ferramenta de expropriação do professor, inclusive da sua autoria, da sua capacidade de conceber um projeto de ensino, um projeto educativo.

OC: Se concebemos os gêneros discursivos como objeto de ensino-aprendizagem das aulas de língua portuguesa, qual o papel da gramática nessas aulas dessa disciplina? É possível manter a gramática tradicional junto ao ensino de língua portuguesa baseado nos gêneros?

Lívia: Sim. Respondendo à primeira parte, que são os objetos de ensino: qual o papel da gramática nisso? Os objetos de ensino são os gêneros, mas, nessa visão que eu disse, enquanto discurso, era melhor chamar de gêneros discursivos porque gêneros textuais ficou com essa marca da forma. Como dizia Geraldi, o objeto seria o texto e suas operações de construção e desconstrução, de produção e recepção. Qual o papel da gramática ou da análise linguística nisso? Quando Geraldi propôs o modelo lá nos anos 1980, ele dizia que era para se começar pela produção, porque ele dizia “é preciso escutar o aluno e a partir disso detonar o processo de ensino, trazer a história deles que não está no livro, não está na voz de ninguém”. Fazer análise linguística em cima dessa produção, porque, na hora em que o aluno tiver dificuldades, cometer erros e tal, a gente vai conduzir um processo de reconstrução desse dizer, que não é de higienização. A gente vai buscar na herança cultural os conhecimentos que ajudam a dizer melhor. Isso é análise linguística. Com o passar dos anos, essas práticas de linguagem, ler, produzir textos e analisar a língua passaram a ser chamadas de eixos de ensino. Os PCN e o PNLD foram contribuindo para essas mudanças terminológicas e hoje se chama muito eixo de ensino. A oralidade foi incluída e o letramento literário também. Na proposta curricular atual do estado de Pernambuco, temos cinco eixos: leitura, oralidade, escrita, análise linguística e letramento literário. A análise linguística é a maneira de eu olhar, parar para olhar como esses discursos funcionam. Quando eu produzo, na análise linguística eu olho para o que eu disse e como disse junto aos interlocutores que eu projetei. Então eu faço análise do meu discurso enquanto produtor, e na leitura eu faço análise do que o outro diz. Márcia Mendonça [professora da Unicamp], que escreve bastante sobre análise linguística, tem um texto em que ela deixa isso muito claro, que a análise linguística vai ter que ficar no entremeio, nas propostas curriculares que consideram a oralidade um eixo próprio, porque Geraldi falava de produção de texto de uma maneira mais geral incluindo texto oral, lá nos anos 1980. Nas propostas em que a oralidade é um eixo também se trabalha com uma análise de como a oralidade funciona, tanto que a gente fala de ensino-aprendizagem de oralidade, não da fala. Fala e escrita são modalidades e o objeto de ensino é a oralidade, que é o correspondente ao letramento, o objeto são as práticas sociais orais. Então haveria uma análise a fazer disso também para ampliarmos o conhecimento do aluno sobre as práticas orais, esse é o papel. Você pergunta na segunda parte da questão “e a gramática normativa e tradicional tem um papel aí?”. Tem, mais a descritiva do que a normativa, mas também a normativa. É porque muito do que a gente precisa explicar da língua em sala de aula os gramáticos já explicaram, de uma forma mais pertinente ou menos, vai depender do gramático, do fenômeno que eles se dedicaram a descrever. Mas, por exemplo, se pegamos um gramático como Celso Cunha, e eu fiz minha graduação nos anos 70, tem um capítulo sobre estilística da fala. Se pegarmos hoje a Gramática do Português Falado, temos isso aí de novo descrito com muito mais teoria. Então não tem por que eu inventar a roda. Vou buscar as coisas da gramática tradicional? Vou. Como ontem no exemplo que eu dei, Marta [estagiária citada durante a conferência] pega os adjetivos, os advérbios, com toda essa terminologia, mas pegou também a memória como gênero discursivo, a memória como prática social, isso também faz parte da aula de língua, porque temos níveis de trabalho com o texto. Agora, para que você vai ensinar, como você vai ensinar, como você vai fazer disso um objeto de ensino, como você vai didatizar, isso tudo a gente vai ter que pensar, então eu gosto muito da gramática, eu gosto de muita coisa que tem ali, tem umas loucuras também, umas definições completamente precárias. A gramática não diz muito a nós do texto, na verdade, ela não diz quase nada, ela diz do período, ela chegou até o período, mas não disse nada do texto. Assim, temos de ir para a linguística textual, mas não tem por que jogar a gramática no lixo, porque eu vou repetir o que tem lá. Eu vou inventar? Não. Para isso temos à disposição a nossa herança cultural, daí a importância de ter acesso à herança cultural, de conhecer o que os gramáticos já disseram.

OC: Ontem, durante sua conferência no SEPPROLE, você disse que há diferença entre o estudo de análise linguística e o estudo de gramática. Que diferença é essa?

Lívia: A análise linguística vai incluir a gramática, mas ela é mais ampla, porque os estudos do texto… se pensou até no começo em criar uma gramática do texto, depois se viu que não dava. Pêcheux tentou isso, a maquinaria da produção do discurso. Ele tentou dizer como é que o discurso nasceria, colocando dentro da maquinaria a psicanálise, a ideologia, mas ele “deu com os burros na água”. Então temos de pegar um pouco da dimensão social da língua, evidenciada na virada pragmática. Temos de ir para fora da estrutura, mas não podemos abandonar a estrutura, até porque a estrutura é da língua. O português não se define como português, em oposição ao francês, por exemplo, pela prática social. Define-se na estrutura, no núcleo duro, e eu estou preocupada com isso também, porque os estudos do discurso estão nos levando a abandonarmos a estrutura na graduação de Letras. Eu digo aos alunos: “Cadê o seu conhecimento de regência, você vai ensinar crase como, sem saber crasear? Você reconhece que é um fenômeno sintático, e não de acentuação, é um sinal indicativo de fenômeno sintático, tem que entender o que está acontecendo aqui, tem que entender quais são os termos da oração que podem ser craseados”. Eu diria que a gramática está contida na análise linguística, mas análise linguística dá conta de outros níveis do funcionamento do discurso dos quais a gramática tradicional não deu.

OC: Já foi possível você fazer uma análise do mais novo documento para os rumos do ensino da língua portuguesa, a BNCC?

Lívia: Já. E tem uma grande discussão prévia na BNCC que antecede a discussão dos conteúdos, das competências, que é a ideia da base. A base curricular comum veio apontada já na LDB, porque fazia parte desse movimento a que eu fiz referência ainda agora de discussão coletiva da educação brasileira, conduzida pelas entidades que se dedicam à formação docente, as questões do direito à educação. O movimento foi assim, é uma história bem comprida e eu vou ver se eu resumo. Quando a constituição ficou pronta, ela já mostrou a necessidade de se fazerem as leis orgânicas que detalhariam alguns direitos garantidos lá em 1988. Por isso foram feitas a Lei Orgânica da Magistratura, a Lei Orgânica da Previdência e a lei orgânica, entre aspas, da Educação era exatamente a LDB, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, tanto que, na hierarquia dos documentos legais, a Constituição está acima, a que vem em seguida é a LDB, depois as constituições estaduais, municipais, as diretrizes de Educação de cada esfera do governo. Então, a LDB apontava lá para avaliação formativa, apontava para construção curricular democrática, apontava para ampliação do direito à educação, e ela veio se desdobrando em outros documentos legais e a ideia, a partir da LDB, era a gente trabalhar com as diretrizes curriculares, do mesmo jeito que iam sendo formuladas as políticas de avaliação e tal. As diretrizes curriculares estavam sendo construídas dentro de um processo democrático que envolvia todas as entidades e a sociedade civil também, com audiências públicas dentro do congresso, foi aí que criaram as diretrizes curriculares nacionais para educação infantil, as diretrizes curriculares da educação básica, do ensino médio. No final dos anos 1990, o governo de Fernando Henrique Cardoso atropelou esse processo com os PCN. Desconsideraram os movimentos das diretrizes e, sem nenhum diálogo com as diretrizes que já tínhamos conseguido estabelecer até então, vieram com o documento curricular que tem lá uma série de problemas que discutimos muito na época, quando foi lançado. Parecia ser o novo, parecia que eles estavam descobrindo a pólvora, e em matéria de língua, inclusive, houve um certo apagamento do trabalho proposto por João Wanderley Geraldi lá nos anos 1980. Podemos perguntar: “A mudança no ensino de língua portuguesa no Brasil começou com os parâmetros curriculares nacionais?”. A resposta é não. Foi lá nos anos 1980, com a ideia de proposta curricular, dentro do contexto da redemocratização do país. No governo FHC, os parâmetros curriculares nacionais estavam associados a duas grandes discussões, que eram: a mudança curricular exigida pelo capital para o mercado de trabalho, por isso diziam que tinham de atualizar o currículo, formar para o mercado; e a outra grande discussão era sobre avaliação, para ter controle sobre o trabalho do professor, tanto que os sistemas de avaliação ganham muita força nos anos 1990, na perspectiva do neoliberalismo. Os parâmetros não tiveram os efeitos desejados naquele momento, mas de alguma forma aquilo orientou as políticas de avaliação de livros didáticos e isso foi dando a base para o discurso sobre o ensino de língua portuguesa. Quando entramos nos anos 2000, recuperamos o movimento das diretrizes e tentamos começar a construir a base que estava lá na LDB, dentro desse movimento também de discussão. E a ideia da base está muito associada originalmente, como está na LDB, à ampliação do direito à educação. O que acontece? A escola sem partido, inclusive, faz parte desse movimento. É preciso controlar o discurso da educação, pois o discurso da educação é um discurso formativo. É a história do currículo como um dispositivo de subjetivação. Todo mundo sabe disso, todo mundo sabe que escola “faz cabeça”, por isso que a gente está agora com essa conversa de escola doméstica, ensino familiar, escola sem partido, porque a escola faz cabeça e dissemina discursos na sociedade. Esses discursos podem até não ser hegemônicos, mas a escola faz circular um discurso. Então se sabe tanto disso, que é preciso, como diz Foucault, controlar discurso. Em A ordem do discurso, ele pergunta: “O que é que há de tão perigoso no discurso que é preciso controlar a sua circulação?”. O discurso é revolucionário, todo mundo sabe disso. Imediatamente houve uma apropriação do movimento, uma espécie de tomada de palavra em torno da BNCC. Se você escreve BNCC lá no Google, primeira coisa que vai aparecer é a defesa do movimento com as marcas do Banco Itaú, do CENPEC. Os privatistas da educação entraram nesse movimento com garras, com unhas e dentes e instituíram logo a conversa das competências, que não queremos, não defendemos. Queríamos que a base estivesse articulada com a ampliação do direito à educação, o regime de colaboração entre os entes federados, as questões culturais, da cultura afro-brasileira, da educação ambiental, as novas demandas da sociedade, as discussões sobre relações de gênero dentro da escola, precisava trazer tudo isso para o grande caldeirão fervente que é o currículo. Houve um movimento de apropriação. Inclusive, fraturaram a ideia do Sistema Nacional de Educação, quando propuseram uma base para ensino fundamental e outra para o médio. Quebraram a ideia da Educação Básica. Por quê? Porque isso lá na frente é o que está acontecendo aqui agora, já está anunciada, é a desobrigação do poder público com a educação básica, porque se eu digo que vou universalizar a educação fundamental, isso dá uma obrigação para o Estado. Mas, se eu falar em básico, entendo que o médio é o mínimo que o poder público tem que oferecer, esse discurso já está voltando agora, então, a partir daí, todo discurso no varejo da BNCC perde totalmente o sentido. Uma das professoras da UFPE foi relatora. Ela era do Conselho Nacional de Educação, que foi totalmente modificado logo após o golpe de 2016. Eles tiraram pessoas que estavam atuando ali. A BNCC estava no centro da discussão. Essa professora nossa escapou do corte ali naquele momento. Eu acho que tem que ter, sobretudo a partir de agora, uma leitura crítica, uma busca das formas de resistirmos e recriarmos esse movimento dentro do limite que a história nos coloca. Se eu fosse gestora pública da educação, de rede municipal, estadual, eu não faria isso rezando pela cartilha. Acho que tem que ser um projeto de formação para fazer um contradiscurso.

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