por Samara Paes

Com as muitas diversidades presentes em nosso dia a dia, não poderíamos deixar de abordar a diversidade linguística, tão notória em nosso país. Para tratar do tema, O Consoante conversou com um especialista. André Luis Antonelli é professor do Departamento de Língua Portuguesa (DLP), da Universidade Estadual de Maringá. Na entrevista, ele comenta sobre a variedade linguística, sobre deturpações do senso comum que se têm a respeito do tema, sobre mitos a respeito da nossa língua, dentre outras explicações, comprovando que, ao contrário do que muitos pensam, nossa língua não é homogênea. Vivendo num país como o Brasil, cuja densidade demográfica é tão grande, não deveria ser novidade para muitos de nós a diversidade linguística aqui presente, diversidade essa revelada pelas tantas variações dos falantes. Assim sendo, a terceira edição d’O Consoante buscou respostas e esclarecimentos sobre alguns desses estereótipos criados a respeito da língua.

O Consoante: Sabemos que, muitas vezes, no contexto escolar, há o predomínio do ensino tradicional da gramática, bem como a falta de explanação sobre a variedade linguística. Como professor e linguista, de que modo você acha que a variedade linguística valorizada socialmente deve ser transmitida ao aluno sem que a modalidade dele seja desrespeitada?

Antonelli: Em primeiro lugar, é importante ter bem claro o seguinte: de um ponto de vista puramente linguístico, todas as variedades linguísticas são igualmente complexas. Os estudos mostram que não existem variedades estruturalmente mais empobrecidas do que outras. O que existem são variedades com diferentes estruturas. Dentro dessa visão, a variedade trazida pelo aluno é tão complexa e estruturada quanto à variedade valorizada socialmente. O que muda, evidentemente, é o valor social atribuído às diferentes variedades, mas isso é algo que não tem nenhuma relação com complexidade estrutural. A valoração social é um processo decorrente de fatores históricos e sociais. Uma vez que se tenha em mente que as variantes são igualmente complexas, a norma padrão deve ser transmitida aos alunos não como algo melhor a ser adquirido, mas simplesmente como uma variante diferente, nem melhor nem pior.

OC: Frequentemente, nas próprias redes sociais, presenciamos situações de escárnio vividas por pessoas que não utilizam a variedade padrão da língua, algo que ocorre, na maioria das vezes, pelo pouco acesso que elas têm à educação, de modo geral. Quando essas situações acontecem, chovem opiniões, julgamentos e defesas de todos os lados. O que você, como linguista, tem a dizer sobre esses acontecimentos? Mais precisamente, sobre as pessoas que fazem do desconhecimento alheio uma oportunidade para zombarias.

Antonelli: Existe uma ideia equivocada de que as línguas são produtos homogêneos. Muito longe disso, a variedade linguística é algo inerente a qualquer língua. E não se trata de um fenômeno contemporâneo, mas é algo que acompanha o homem ao longo de sua história. Desconsiderar que a diversidade é algo constitutivo das línguas naturais é o que leva muitas pessoas a terem posições preconceituosas em relação ao modo como outros se expressam linguisticamente. Ou seja, isso é fruto da ignorância a respeito do funcionamento das línguas, e que se combate com educação.

OC: É comum, em nossa área, as pessoas brincarem que têm medo de escrever ou falar “errado” conosco. Essa brincadeira, acredito, tem sempre um fundo de verdade. Além disso, há uma ideia problemática a respeito do curso de Letras, pois as pessoas carregam consigo o trauma (e o medo!) da gramática tradicional ensinada nas escolas, geralmente afirmando que “o português é uma língua muito difícil”. O que você tem a nos dizer sobre essa afirmação e, sobretudo, o que você tem a dizer às pessoas que têm esse “medo” da gramática?

Antonelli: A ideia de que o português é muito difícil carece de qualquer fundamentação científica. Todas as pessoas aprendem uma língua materna de maneira natural e rápida. Basta estar em contato com uma comunidade de fala. É claro que muitos não aprenderam a norma padrão do português, mas simplesmente porque não foram expostos a essa variedade no processo de aquisição da linguagem, mas sim a alguma outra variedade do português. Além disso, quando as pessoas dizem que o português é muito difícil, elas provavelmente estão confundindo língua com gramática normativa. Muitas das regras presentes nas gramáticas tradicionais não encontram eco nem mesmo em variedades cultas do português, já que, em certos casos, as normas apresentadas nos compêndios gramaticais representam um estágio passado da língua, e não o português contemporâneo. Apenas como exemplo, basta dizer que, nas gramáticas tradicionais, o pronome de segunda pessoa do plural no português brasileiro é “vós”, o que não faz nenhum sentido.

OC: Muitas vezes, ao longo da nossa trajetória escolar, não há um reconhecimento das múltiplas variedades do português e, por isso, a norma-padrão nos é imposta como sendo única e imutável. Isso, com certeza, desmotiva muitos alunos, que acreditam estar defronte a uma língua totalmente nova. Você pensa que, se o ensino das variedades linguísticas na escola fosse mais frequentemente abordado, haveria menos pessoas considerando a ideia de que sua própria língua materna é chata e difícil?

Antonelli: A priori eu não vejo problemas em se achar que a norma padrão é uma língua totalmente nova. De fato, para muitos falantes, a norma padrão é bastante diferente da variedade que eles trazem para a escola, quase como uma língua estrangeira. O problema é o falante achar que aquilo que ele já sabe não tem valor algum. E infelizmente a escola muitas vezes solidifica essa ideia equivocada das pessoas. Eu penso que discutir nas escolas a questão da variação linguística é importante não porque isso ajudaria as pessoas a acharem sua língua menos chata e difícil. Talvez até ajude. Mas principalmente porque isso mostraria ao aluno que a língua trazida por ele à escola não é melhor nem pior do que a língua que se ensina na escola. São simplesmente diferentes.

OC: Com a chegada das Olimpíadas, chega até nós, mais uma vez, a diversidade linguística. Sabemos que, frequentemente, em nosso país, outras línguas que não o português são vistas, pelos nossos falantes nativos, com maior prestígio, importância e até mesmo facilidade de aprendizagem do que a nossa língua materna. Além de toda a questão social que permeia tal pensamento, especialmente se levarmos em consideração que o alvo de todo esse prestígio são os países imperialistas, por que você acha que os brasileiros, muitas vezes, carregam essa espécie de “complexo de inferioridade” da nossa língua em relação às outras?

Antonelli: Esse complexo de vira-latas do brasileiro não é algo que se limita à esfera linguística. O prestígio daquilo que é de fora permeia toda a nossa sociedade. Filmes estrangeiros são mais valorizados do que os nacionais. As olimpíadas realizadas em outros países são mais “organizadas” do que as realizadas aqui. Enfim, o complexo de inferioridade linguística é apenas um subproduto de algo mais macro. A sociedade brasileira ainda não conseguiu se libertar de seu passado colonial e escravocrata, sempre achando que o que se produz aqui é inferior ao que se produz lá fora.

OC: Sabemos que, assim como há os que defendem com veemência a norma padrão do português, há aqueles que consideram que a educação linguística tem a função de “apenas comunicar”, de modo que se a mensagem chega ao destinatário, é suficiente. O que você tem a dizer sobre essas acusações que afirmam que os alunos não devem ser corrigidos ou que, para a linguística, “vale tudo”?

Antonelli: É preciso desmistificar a ideia de que a linguística prega um vale tudo. O que a linguística mostra é que o português brasileiro apresenta uma enorme diversidade linguística. Isso é fato. Mas os pesquisadores da área também defendem que falantes de normas não prestigiadas devem sim ser expostos à norma padrão. Querendo ou não somos avaliados pelo modo como falamos e escrevemos. Seria um grande desserviço simplesmente abandonarmos o ensino da norma padrão. Acho que se deve mostrar ao aluno que, por razões históricas e sociais, a variedade linguística por ele falada talvez sofra preconceito em determinados contextos, infelizmente. Por isso, a aquisição da norma culta tem como objetivo oferecer ao estudante um recurso linguístico a mais que lhe proporcione a oportunidade de atuar socialmente sem ser desconsiderado simplesmente pelo modo como ele fala ou escreve.

OC: Marcos Bagno disse, certa vez, que “a sociolinguística nos ensina que onde tem variação (linguística) sempre tem avaliação (social)”. Sabemos, então, que a língua revela identidades e que, a partir dela, juízos de valor são atribuídos. Você acha que, ao haver uma conscientização a respeito desse preconceito linguístico, outras formas de preconceito também seriam repensadas?

Antonelli: Com certeza, embora eu ache que o preconceito linguístico seja algo mais difícil de ser eliminado do que outras formas de preconceito. Eu não saberia dizer exatamente o motivo disso. O fato é que, infelizmente, ter preconceito linguístico ainda não é visto como algo negativo pela sociedade. Por exemplo, no caso do preconceito racial, embora ainda seja amplamente manifesto, me parece que não se trata de uma postura valorizada socialmente, ao menos explicitamente. Agora, se você ficar apontando os “desvios” de concordância verbal de alguém, por exemplo, é provável que você seja considerado um defensor da língua. Isso é tão preconceituoso quanto o racismo, mas é uma postura considerada positiva.

OC: Finalmente, qual seria, para você, a definição de “saber português”, de acordo com uma perspectiva linguística?

Antonelli: Acho difícil dar uma resposta a essa pergunta, mas vou tentar respondê-la levantando outras duas perguntas igualmente importantes. A primeira delas é: o que significa saber uma língua? Saber uma língua não é conhecer o conteúdo de capa a capa de uma gramática normativa. Muitas pessoas desconsideram esse conteúdo e nem por isso deixam de se comunicar eficientemente. Saber uma língua está mais relacionado a um conhecimento linguístico que todo falante adquire de maneira bastante natural, mediante o convívio em sua comunidade de fala, e que diz respeito à capacidade de produzir e interpretar enunciados linguísticos. A segunda pergunta é: o que é o português? Não podemos considerar o português como uma entidade única. Na realidade, o termo “português” nada mais é do que um rótulo dado a diferentes variedades linguísticas razoavelmente próximas entre si. Nesse sentido, o português que determinada pessoa sabe talvez não seja o português que eu sei.

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