Caminhei poucos metros até o desembarque e o suor já se acumulava na testa e escorria pelas costas fazendo cócegas pelo caminho. “Maldita camisa de mangas compridas! Maldita tentativa de parecer polido e profissional! Maldito calor!” pensava enquanto a cara ficava cada vez mais e mais retorcida em mal humor. Parei junto dos outros passageiros esperando suas bagagens, todos metidos em shorts, camisetas regatas, sandálias e tecidos de algodão. E eu ali, jeans até as canelas e aquela maldita camisa de sabe-se lá que tecido sintético. Conforme as malas passavam e seus donos as recolhiam, ia eu ficando cada vez mais e mais impaciente. Com o calor, com a demora, com o medo de atrasar, o pé já batendo desesperado. “Só cinco passageiros esperando,  cadê minha bagagem?” … “Duas pessoas…” “Demore bastante, isso, como se já não estivesse atrasado o suficiente” … “Espera aí. Acabaram as malas! Cadê a minha?”.

Desespero.

Corri até a abertura na parede e olhei para a escuridão das minhas esperanças. Esteiras paradas, nada se movendo. Saí então para o saguão à procura de algum funcionário da companhia aérea, acabando no guichê de informações. Alguns minutos na fila até ser atendido, momento no qual eu já transpirava o dobro, agora não só pelo calor insuportável.

– Olá, boa tarde, em que posso ajudá-lo? disse a atendente solícita.

– Boa tarde.  Acabei de sair do voo vindo de Porto Alegre e não encontrei minha bagagem no desembarque.

– Ah, sim. O senhor possui o código da sua passagem? Obrigada. Aguarde só um minuto que vou verificar para o senhor.

E saiu. Fiquei parado, os braços cruzados em cima do balcão e a testa apoiada sobre eles. Eu poderia estar rezando se não fosse ateu. Ou poderia estar chorando se não fosse a possibilidade de ficar desidratado. Cinco minutos se passaram até a moça voltar, a notícia óbvia e péssima estampada no rosto redondo ultramaquiado.

– Desculpe a demora, senhor. Infelizmente tivemos um problema com a sua bagagem devido à escala em Curitiba mas já conseguimos localiza-la, não se preocupe. Ela estará aqui no voo das 21h45… senhor – finalizou, com um sorriso amarelo estampado no rosto ultramaquiado.

O desespero passou à pânico e o pânico diluiu-se em fúria. Passaram-se vinte minutos de vozes conciliatórias, por parte da senhorita, e gritos contidos, da minha parte, até que, derrotado, aceitei o fato de que  meus gritos não trariam até mim a bendita mala. Mala na qual, enrolado em meio a peças de roupa, estava o meu notebook. Notebook esse a única memória na qual havia arquivado meu trabalho a ser apresentado –   de acordo com o impiedoso relógio dependurado na parede atrás do balcão e marcando em três fusos diferentes a minha desgraça – em menos de quarenta e cinco minutos.  É claro que eu sabia a apresentação de cabo à rabo. Pelo menos, antes de ter alterado em um surto de ansiedade e paranoia, na noite anterior, mais da metade do seu conteúdo. Antes de relutantemente ter guardado o notebook naquela maldita mala acreditando ingenuamente na pontualidade das companhias aéreas e suas conexões e a seriedade de seus serviços de transporte da bagagem.

Resignado e após confirmar os pormenores da retirada da bagagem à noite, caminhei para fora do aeroporto, indo de encontro ao ar absurdamente quente, ao meu inferno literal.  Enquanto entrava em um táxi e informava ao motorista o meu destino, repassava mentalmente todas os detalhes que havia alterado ou adicionado à apresentação. As imagens, obviamente, não podiam ser substituídas senão por uma descrição minuciosamente criativa minha e uma mente muito fértil dos ouvintes. O resto, ou seja, a maior parte caberia à sorte e à minha mente instável dar conta do recado. Ótimo. Agora, ao invés de rememorar detalhes, o resto da minha sanidade vagava atrás de desculpas – não que a culpa fosse minha… diretamente. “Se pelo menos fizesse menos calor” praguejava. “Malditas árvores!”.

O táxi parou em frente ao portão do campus, paguei ao motorista e decidi me dirigir diretamente à secretaria do evento.  Deveria informá-los das mudanças ainda que fosse manter a apresentação conforme programado. Levei vários minutos para me localizar em meio a caminhos ladeados de mato e sem qualquer espécie de sinalização, e à paisagem repleta de árvores – “até aqui?!” – e prédios marrons, que seriam todos os mesmos não fossem as letras e números palidamente pintados para diferencia-los. Depois de conseguir, com algum esforço, encontrar o prédio certo graças a uma faixa precariamente pendurada, suando tanto que as áreas secas na minha camisa eram mais fáceis de serem contabilizadas do que aquelas úmidas e coladas ao corpo, me deparei com uma série de degraus íngremes acabando em um amontoado de pessoas que julguei estarem ali também pelo evento.

Havia um grande número de pessoas vestidas com coletes identificadores e um número ainda maior de faces confusas sendo orientadas pelo pessoal identificado. Em meio a eles, uma moça rodando atarefada para todos os lados, delimitando tarefas e dando ordens. Me aproximei. Antes mesmo que pudesse me apresentar ou mesmo lançar um “oi”, ela virou-se para mim, reconhecendo-me de imediatamente. Aparentou surpresa e até mesmo confusão quando falou:

-_ Olá professor, como vai? Veio assistir à alguma das apresentações?

Sorrindo meio confuso, respondi:

_  Não, não. Na verdade vim para a minha própria. Quatorze horas, não?

_ Ah, não! O senhor apresenta no segundo dia do evento, amanhã. E, se não estou enganada, é no período da manhã, não é? começou a mexer em algumas folhas de papel que carregava e me apontou. Está vendo aqui? O senhor não recebeu a programação finalizada? Enviei ontem à noite para o senhor.

“Ontem à noite…” Ontem à noite, enquanto eu revirava slides, formatava textos e substituía imagens, tudo isso, é claro, com a internet desligada para não ter interferência do mundo exterior à minha mente insana.  Fiquei ali parado sorrindo até alguém gritar pelo socorro da moça e ela despedir-se com um “até logo”. Dei-lhe as costas ainda sorrindo e desci feliz as escadas que há menos de dez minutos me pareceram a morte. Enquanto distribuía meu desafogo pelo campus vazio, compartilhando-o com a revoada de bem-te-vis e pombas indo de árvore e em árvore, e os cachorros ali estirados pelo gramado, não pude deixar de pensar o quão bonito estava o dia. E que belíssimas as árvores me pareceram naquele instante.

 

Everton Paulino