“As variantes da língua não podem sofrer um processo de hierarquização no sentido de considerar que uma é melhor ou pior que a outra e, por extensão, também os falantes dessas variantes não podem ser estigmatizados ou considerados deficientes culturalmente ou linguisticamente.”

O Prof. Flávio Brandão Silva, do Departamento de Teorias Linguísticas e Literárias, da Universidade Estadual de Maringá, tem suas pesquisas pautadas pela Sociolinguística, com ênfase na Sociolinguística Educacional. Trabalha com análise de documentos oficiais sobre o ensino de língua portuguesa e análise de materiais didáticos e de crenças e atitudes linguísticas no ensino de língua portuguesa. Sua tese de doutorado, intitulada A Abordagem da Variação Linguística no Ensino de Língua Portuguesa em Instituições Públicas de Ensino do Estado do Paraná, foi contemplada com o “Prêmio Luiz Antônio Marcuschi de Teses e Dissertações”, conferido pela Associação Nacional de Pós-graduação em Letras e Linguística (Anpoll), em junho deste ano, durante o evento da Enanpoll, em Cuiabá-MT. O Consoante teve a oportunidade de dialogar com o Prof. Flávio Brandão em sua participação na disciplina Gramática, variação e ensino, ministrada pela Profa Flávia Zanutto (DTL), para a Turma V do Profletras da UEM.

por Anna Larissa Rodrigues
Felipi Yamabe
Mariana Brito
Neil Franco
Vitória Floriano

O CONSOANTE: O que é a Sociolinguística Educacional? Pode-se afirmar que se trata de uma subárea da Sociolinguística dentro do contexto brasileiro de ensino de língua portuguesa?

Flávio Brandão: Com relação a essa questão, é preciso fazer uma incursão histórica sobre a constituição da Sociolinguística. No início dos anos 1960, a Sociolinguística se estabeleceu como ciência, como uma área da Linguística. O pioneiro nos estudos sociolinguísticos foi William Labov. Ele investigou a realização dos ditongos numa ilha dos Estados Unidos chamada Martha´s Vineyard. Assim, a partir dos estudos de Labov, tivemos o início da Sociolinguística chamada variacionista ou quantitativa. Basicamente, a Sociolinguística, numa perspectiva laboviana, se ocupa da descrição, da investigação dos fenômenos variáveis da língua, ou seja, quais são os fenômenos linguísticos que estão em processo de variação e que podem, inclusive, resultar em mudança linguística. Os estudos sociolinguísticos, além de descreverem os fenômenos linguísticos em processo de variação e mudança, têm refletido sobre a relação variação e ensino. A partir desse enfoque, tem origem a Sociolinguística Educacional.  No Brasil, destacam-se os estudos da sociolinguista Stella Maris Bortoni-Ricardo, no campo da Sociolinguística Educacional. Segundo a professora Stella, uma das principais contribuições da Sociolinguística para a educação consiste na definição de que as diferenças dialetais existentes numa comunidade de falantes são funcionalmente comparáveis e essencialmente equivalentes. Ou seja, as variantes da língua não podem sofrer um processo de hierarquização no sentido de considerar uma variante melhor ou pior que a outra e, por extensão, também os falantes dessas variantes não podem ser estigmatizados ou considerados deficientes culturalmente ou linguisticamente. É uma ideia equivocada essa de que um falante faz uso de uma forma não prestigiada ou menos prestigiada. Nesse sentido, teríamos que discutir o que se entende por norma de prestígio ou norma não prestigiada. Enfim, a ideia de que um falante que faz uso de uma variedade dita não-padrão ou não-culta seria culturalmente ou linguisticamente inferior é a base para o preconceito linguístico, sobre o qual, acredito que todos, em algum momento da vida, já ouviram falar. Aliás, quando se fala da Sociolinguística, dos estudos de variação, principalmente no meio acadêmico e no meio educacional, sempre a questão do preconceito linguístico aparece. Embora o termo tenha ganhado visibilidade com a obra de Marcos Bagno, Preconceito Linguístico, outros profissionais, outros pesquisadores já estavam envolvidos nessa discussão, como a própria professora Stella, que, em 1977, já desenvolvia um trabalho na área de variação, investigando a fala de pessoas de uma cidade satélite do Distrito Federal, chamada Brazilândia, cujo objetivo consistiu em verificar como se dava a linguagem dessas pessoas, qual o nível de linguagem ali presente e a compreensão das diferentes normas que essas pessoas usavam. A estigmatização que é causada por essa concepção de que há uma fala melhor que a outra, segundo a professora Stella, pode ser combatida por meio de ações na área da Sociolinguística, ou seja, a Sociolinguística traz, então, alguns instrumentos, algumas reflexões e estratégias para se vencer o preconceito linguístico. A partir dos estudos sociolinguísticos e a partir desse afunilamento para as questões de ensino-aprendizagem e de variação, a escola, como instituição, passou a assumir cada vez mais um discurso sobre variação. Então, hoje, nas aulas de Língua Portuguesa, acredito, não há um professor que, em algum momento, não fale sobre variação linguística. A questão é: essa abordagem que fazemos sobre variação linguística na sala de aula é eficaz? Será que nós ainda não reproduzimos um estereótipo da própria variação? Então essas são questões que precisamos discutir, sobre as quais precisamos refletir. A Sociolinguística Educacional vem, portanto, com a proposta de refletir sobre essas questões, no sentido de pensarmos o ensino de Língua Portuguesa na escola, a partir de uma perspectiva da “Pedagogia da variação linguística”, termo cunhado pelo professor Carlos Alberto Faraco, no livro Linguística da Norma, organizado por Marcos Bagno. Nessa obra, num capítulo de sua autoria, Faraco faz uma distinção sobre o conceito e os diferentes tipos de normas, e, ao final, propõe a Pedagogia da variação linguística.

OC: É possível afirmar que a formação atual em curso de Letras permite ao professor um trabalho pautado no que propõe a Sociolinguística Educacional?

Flávio Brandão: Se fosse pra responder objetivamente eu diria que não e me sinto muito confortável de dizer que não, porque sou professor do ensino superior há quase vinte anos, sempre trabalhando na formação de professor, no curso de Letras. Acredito que, de alguma forma, as questões de variação estão presentes nas discussões acadêmicas e nas disciplinas dos cursos de Letras. Quero destacar aqui que não estou falando do curso de letras “x” ou “y”, não estou falando do curso de Letras da UEM ou de uma universidade específica, mas a partir da minha prática aqui e em outras universidades por onde já passei, a partir do contato com colegas que trabalham em outras universidades e conhecendo um pouco a realidade que nós vivemos aqui no estado do Paraná, por exemplo, penso que ainda precisamos fazer um caminho, temos muito o que avançar em relação à abordagem da variação linguística, seja no sentido de tratá-la cientificamente, seja do ponto de vista didático. Como já disse, nos cursos de Letras, de alguma forma, se aborda o tema da variação. Há universidades que possuem a disciplina Sociolinguística, ou trabalham o tema da variação como um conteúdo dentro de uma disciplina, nas disciplinas de Linguística ou de Língua Portuguesa, por exemplo. Isso por si só é um avanço, porque pior seria se não se falasse nada de variação. Mas ainda há um percurso que precisa ser feito e eu diria que, de forma geral, o que observamos, pensando nas nossas disciplinas, nos currículos dos cursos de Letras que temos Brasil a fora é que, normalmente, há uma distância entre a teorização e as práticas. Com a disciplina de sociolinguística, ou com o conteúdo de sociolinguística, não é diferente, pois teorizamos muito sobre variação linguística: “o que é variação linguística?”, “o que gera o preconceito linguístico?”, “quais são os tipos de variação?”, mas como perceber a variação linguística a partir do estudo da estrutura da língua? Em geral, o que acabamos fazendo, na realidade, são considerações gerais sobre variação e, em alguns casos, até um processo de estudo relativamente estereotipado, pois focamos em algum tipo de variação, a variação geográfica, por exemplo, destacando as diferenças dialetais de uma região para outra. Penso que já superamos o momento de falar, em termos de variação, nas diferenças entre “macaxeira”, “aipim”, “mandioca”, “jerimum”, “abóbora”. Quando não é variação geográfica, enfatizamos a variação social e, mais especificamente, o uso das gírias. Essas práticas, no meu ponto de vista, acabam tornando relativamente estereotipado o estudo da diversidade linguística, porque estamos reduzindo a abordagem da variação linguística a essas questões menores. Um trabalho pautado na Sociolinguística Educacional consiste em promover uma reflexão sobre a diversidade linguística e a abordagem dos fenômenos linguísticos em processo de variação. Isso quer dizer que, em termos práticos, pensando nas disciplinas que compõem os currículos dos cursos de Letras, poderíamos tratar, por exemplo, de questões de variação que perpassam conteúdos de fonética e fonologia, como a realização variável dos fonemas, como é o caso dos róticos, cuja realização está diretamente ligada à variação linguística; o mesmo poderia ocorrer com outros conteúdos. Nesse sentido, temos um material muito bom que é o Atlas linguístico do Brasil, publicado em 2014, e que traz um estudo bastante interessante sobre os diferentes níveis de descrição da língua, não só no nível fonético-fonológico, mas também nos níveis morfológico-sintático e semântico, observando as questões de variação. Um outro exemplo que eu poderia dar sobre essa questão da abordagem da variação linguística no curso de Letras diz respeito às disciplinas que trabalham com conteúdos de morfologia e de sintaxe. Não dá para pensar o trabalho dessas disciplinas sem considerar questões de variação. Por exemplo, como se estuda o verbo sem considerar toda a reorganização que o sistema ou paradigma verbal sofreu com a mudança dos pronomes? Hoje nós não conjugamos mais o verbo a partir das pessoas gramaticais representadas pelos pronomes “eu, tu, ele, nós, vós, eles”. A conjugação verbal, praticamente, se reduziu à primeira e à terceira pessoa; na prática, o paradigma verbal é isso. Acho importante trabalhar conteúdos específicos, noções básicas, uma introdução sobre sociolinguística, mas cada uma dessas áreas: a fonética e a fonologia, a morfologia, a sintaxe, poderiam tratar de questões de variação. Penso que daria mais resultado. Assim, a variação linguística não seria abordada numa disciplina ou numa parte isolada do programa, mas seria uma dimensão nas disciplinas do curso. Outra questão que se apresenta e é um problema que nós da academia temos que resolver na formação de professores de língua portuguesa é não instrumentalizar os nossos alunos, futuros professores, para o trabalho com a variação. Nesse sentido, a Sociolinguística Educacional pode e deve contribuir significativamente, propondo estratégias para que o professor trabalhe os fenômenos variáveis do português brasileiro na sala de aula, ou seja, apresentando alternativas metodológicas que possibilitem ao professor trabalhar o verbo, o pronome, as funções sintáticas, a concordância, a colocação pronominal etc., numa perspectiva de variação.

OC: Existem procedimentos metodológicos estabelecidos pela Sociolinguística Educacional a fim de que qualquer professor de língua portuguesa possa promover um trabalho bem delineado e com objetivos alcançáveis no tratamento das variações em sala de aula?

Flávio Brandão: Diferentemente da Sociolinguística Variacionista Laboviana, a Sociolinguística Educacional não apresenta um método específico. A Sociolinguística Variacionista, para se ter uma ideia, trabalha com a noção de variante, de variáveis linguísticas e não linguísticas. As variáveis linguísticas, por exemplo, seriam o contexto fonológico em que uma variante fonética se apresenta, a estrutura da oração em que ocorre um fenômeno sintático variável, como é o caso do objeto direito anafórico. Juntamente com as variáveis linguísticas, a análise sociolinguística trabalha com as variáveis não lingüísticas, como: sexo, idade, nível de escolarização. Todas essas informações são inseridas num programa que faz a leitura estatística dos dados para identificar e quantificar os casos de variação de um determinado fenômeno linguístico. Por exemplo, eu quero verificar a ocorrência do pronome “a gente” entre falantes da região norte do Paraná. A partir de entrevistas orais, vou coletar amostras da fala dessa região por meio de gravação, fazer a transcrição, selecionar as variantes, determinar as variáveis e colocar tudo isso no programa. Daí o programa nos dá o peso relativo de cada ocorrência e mostra então se há, de fato, uma situação de variação, e em que contexto essa variação acontece. A Sociolinguística Educacional, que, como eu dizia, não possui um método específico, se serve de procedimentos metodológicos de diferentes áreas de estudo, da Linguística Geral, da Sociolinguística, da Dialetologia, como também de outras áreas, como a Psicologia e a Estatística. A partir de diferentes metodologias, então, desde a sua constituição, a Sociolinguística Educacional busca chamar a atenção para a necessidade da valorização da diversidade linguística no contexto escolar. Nesse sentido, diferentes estudiosos, como Stella Maris Bortoni-Ricardo, Carlos Alberto Faraco, Ataliba de Castilho, Roberto Camacho, têm promovido interessantes debates sobre as normas linguísticas e sua abordagem no processo de ensino-aprendizagem. Todos esses autores, de alguma forma, discutem questões relacionadas às diferentes normas e também à necessidade de trazer essa discussão para o contexto escolar. Mais recentemente, a Sociolinguística Educacional tem buscado, nos estudos de crenças e atitudes linguísticas no ambiente escolar, verificar quais são as concepções de norma que existem no meio educacional; qual concepção de norma que há entre professores, entre estudantes, nos diferentes níveis de escolaridade. Com isso, os estudos de crenças e atitudes, podem, por exemplo, verificar como estudantes de Letras avaliam as diferentes normas e como eles entendem a variação, informações que são relevantes para a formação de professores de língua portuguesa. Os estudos de crenças e atitudes surgiram na área da Psicologia Social, com os trabalhos de dois irmãos, Willian e Wallace Lambert, que investigaram qual a avaliação que as pessoas faziam sobre o falar do outro, qual valor, positivo ou negativo, diante das variedades que a língua oferece. As atitudes linguísticas seriam então um posicionamento diante de uma situação de diversidade linguística. Um exemplo: qual é a crença ou como o professor avalia a questão da norma? Qual é o valor que ele dá à norma coloquial, à norma informal que é trazida pelo aluno? Entre nós professores existe um discurso sobre a necessidade de se valorizar a variação, essa seria a nossa crença. E qual é a atitude do professor na prática de sala de aula? Em geral, como eu disse, os professores apresentam um discurso de variação, porém suas crenças ainda estão presas, de certo modo, à prescrição normativa, o que o leva a ter atitudes determinadas por essas crenças, como, por exemplo, corrigir, no texto do aluno, a concordância estigmatizada, como um “Nóis vai”, mas não corrigir a concordância não estigmatizada, como os casos de não concordância quando o sujeito plural está distante do verbo. Outra área de muito interesse para a Sociolinguística Educacional é a produção de material didático, isto porque é necessário transpor didaticamente a descrição dos fenômenos variáveis, que, há muito tempo, vem sendo realizada pela Sociolinguística. Apenas dessa forma é que poderemos promover um trabalho com a língua na sala de aula, na perspectiva da variação linguística, a partir da Pedagogia da Variação.

OC: Embora estejamos a certa distância temporal do fato, gostaríamos de saber como você acompanhou a polêmica sobre a coleção didática para o ensino de língua portuguesa, voltada ao público da Educação de Jovens e Adultos, lá em 2011.

Flávio Brandão: Esse episódio do livro didático desvelou completamente a atitude normativo-prescritiva que nós temos, que a sociedade tem, que a escola ainda tem em relação à língua. A autora do livro foi muito criticada, quando, na verdade, estava trazendo para o contexto de ensino-aprendizagem usos linguísticos que são muito frequentes no dia a dia, nada que a descrição sociolinguística já não tenha demonstrado. Nos estudos de concordância nominal na perspectiva variacionista, por exemplo, há um consenso de que a concordância nominal em português é um traço redundante, porque há uma tendência de o falante, por uma questão de economia linguística, fazer a flexão apenas de um dos termos, no caso, do determinante. Então, é muito comum encontrarmos, na fala de muita gente, “os menino”, “as prova”, mas não encontramos “o meninos”, “a provas” etc. Isto demonstra a consciência linguística do falante. O problema é que essas questões não são levadas em consideração, inclusive, no processo de ensino-aprendizagem da língua. O princípio da concordância que é difundido e que, normalmente, é ensinado na escola é aquele que está prescrito na gramática normativa, de que o adjetivo deve concordar com o substantivo a que se refere em gênero e número. Por isso, aquele episódio [do livro didático] mostrou claramente como nós ainda estamos presos à prescrição normativa, construída com base na norma padrão, uma norma ideal, abstrata, que não é usada efetivamente. Na época da polêmica do livro didático, muita gente que não era entendida no assunto deu palpite. O livro, na realidade, era um material para a educação de jovens e adultos. Querendo ou não, precisamos considerar que, de forma geral, quem está inserido nesse contexto de educação são pessoas que, por várias razões, se afastaram da escolarização e, por este motivo, provavelmente, a prescrição gramatical não lhes seja familiar. O livro trouxe exemplos de situações reais de fala, que talvez, fossem bem próximas do público que iria trabalhar com aquele material. Particularmente, achei o material muito interessante, uma vez que propõe um estudo da língua, considerando a perspectiva da variação. Os livros didáticos, em geral, trazem uma abordagem dos fenômenos linguísticos na perspectiva da norma gramatical.  Um ou outro traz, como box, ou como nota de rodapé, alguma explicação sobre a realização variável de determinados fenômenos, mas sem maiores detalhes. Penso que esse episódio do livro didático evidencia como nós somos conservadores em relação à língua.

OC: O professor Valdir Barzotto, em artigo de 2004, ao se inserir na discussão sobre as variedades linguísticas e ensino de língua portuguesa, faz ressalvas no que se refere a três vertentes de tratamento das variações em sala de aula, baseadas nos verbos respeitar, valorizar e adequar. Para o autor, “as três vertentes pressupõem que alguém se posicione em lugar de melhor prestígio, tanto em relação às variedades, como em relação aos seus praticantes” (p. 95). E ao final, propõe outra vertente, com base no verbo incorporar. Que avaliação você faz dessa discussão de Barzotto?

Flávio Brandão: Em que pese a relevância da discussão proposta pelo professor Valdir Barzotto sobre a abordagem da variação linguística na sala de aula, visto que é sempre bom refletirmos sobre o tema, tal discussão ocorre em forma ensaísta, ou seja, são reflexões do autor e não uma discussão teórico-metodológica a respeito do assunto. No seu texto, Barzotto destaca, a partir das definições dicionarizadas dos verbos respeitar, valorizar, adequar e incorporar, possíveis formações discursivas em torno do emprego desses verbos e, consequente, das práticas pedagógicas relativas à abordagem da variação linguística nas aulas de língua portuguesa, na escola. No que tange aos pressupostos teóricos da Sociolinguística Educacional, esses termos são amplamente utilizados, sem restrições. O termo adequação, por exemplo, é comumente empregado. Uma vez que há diferentes situações de interação e, portanto, diversos usos linguísticos, é necessário o falante reconhecer os níveis de formalidade e/ou informalidade da interação e, dessa forma, fazer uso da variante que melhor se adapte ao contexto interacional. Por exemplo, numa situação de interação entre um médico e um paciente que não domina a linguagem técnica da área da saúde, haverá necessidade de adequação da linguagem, por parte do médico, para que a comunicação entre ele e seu paciente ocorra da melhor forma possível. Nesse movimento, não há, necessariamente, uma valoração em termos de maior ou menor prestígio. Na realidade, o que se espera do falante é que tenha condições de optar pelo nível de linguagem a ser utilizado para que a comunicação seja eficaz. Quando se fala em valorização e respeito de todas as variantes,  e aqui uso os deverbais para referir-me aos verbos “valorizar” e “respeitar” discutidos por Barzotto, o que a Sociolinguística Educacional quer, efetivamente, não é fazer uma hierarquização entre as variantes linguísticas, mas mostrar que cada uma tem o seu valor e, sem prejuízo da interação, é possível de ser empregada. Quanto à proposta de práticas pedagógicas que explorem as variedades praticadas pelos estudantes em seus meios sociais, a partir das discussões do autor em torno do verbo “incorporar”, penso ser um caminho promissor. Aliás, é justamente nessa direção que orientam os trabalhos em Sociolinguística Educacional. Com relação a esta questão levantada pelo autor, gostaria de fazer duas considerações. Primeiramente, a inserção das variantes dos estudantes no processo de ensino-aprendizagem deve ocorrer paralelamente ao trabalho com as normas padrão e culta, visto que é dever da escola e direito do estudante o acesso a essas normas. Depois, na proposta do autor, de incorporar as variedades linguísticas, no trabalho com a língua, de certa forma estão implícitas as outras noções refutadas por ele, pois tal proposta, na realidade, seria o resultado de um processo de respeito e valorização das diferentes variantes, permeado pela noção de adequação linguística.

OC: As redes sociais são um campo aberto de manifestações de pensamento de todas as ordens (política, social, cultural, ideológica etc) e ao mesmo tempo terreno de discussão, muitas vezes infundadas, sobre questões de língua e linguagem. Com isso, podemos dizer que também as redes sociais contribuem para a disseminação da intolerância linguística?

Flávio Brandão: Com a popularização do acesso às redes sociais em ambientes virtuais, ficou muito evidente, sobretudo na atual conjuntura em que vivemos, a existência de uma polarização de ideias e atitudes. Acho que fomos do céu ao inferno e vice-versa, pois as redes sociais trouxeram uma rapidez na informação, mas, por outro lado, colocaram em evidência algumas coisas que a gente não gostaria de ver: a existência de uma polarização de ideias e de atitudes, resultado de um fundamentalismo que beira ao fanatismo (político, religioso, social, cultural e ideológico). Nós estamos vivendo um momento dos extremos, o que, por si, é muito perigoso. Esse contexto polarizado trouxe à tona, de um lado, uma onda de conservadorismos e, de outro, discursos radicais em favor da subversão dos valores e das ideias socialmente construídos. O problema disso, é que as discussões travadas nas redes sociais, na maioria das vezes, não apresentam profundidade, são discussões muito rasas, pois muitos que se posicionam o fazem a partir de conceitos superficiais e, talvez, levados pelo movimento. Hoje, tem se difundido um discurso de ódio, de intolerância, de preconceito, de segregação, como, há muito, não víamos. No que se refere às questões de linguagem, não é diferente. Percebemos, nos discursos conservadores, também a defesa de um conservadorismo e de um purismo linguístico. São comuns, nas redes sociais, “memes” e postagens que revelam uma concepção de língua pautada na prescrição gramatical, cujos fundamentos estão na norma padrão. Essa intolerância linguística acaba revelando, na realidade, uma visão pessoal. Não é difícil encontrarmos, no ambiente virtual, quem discrimina o outro por causa da língua. Nesse contexto, se cristaliza a ideia de que o indivíduo que não sabe gramática normativa não sabe língua portuguesa. O preconceito linguístico que se apresenta, na realidade, traz à luz a crença de que o indivíduo que não domina a norma padrão é inferior. Inclusive, as próprias redes sociais difundem discursos enviesados e até bastante equivocados sobre o uso da língua, tais como: “a internet fez com que as pessoas desaprendessem o português”, “porque o whatsapp vem fazendo as pessoas escreverem tudo errado”. Portanto, comentários como esses mostram bem a intolerância linguística presente nas redes sociais.

OC: Você recentemente recebeu um prêmio por sua tese de doutorado. Poderia falar um pouco sobre o que foi sua pesquisa?

Flávio Brandão: Na realidade, isso foi uma surpresa. O prêmio que recebi foi o Prêmio “Luiz Antônio Marcuschi de Teses e Dissertações”, promovido pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll). A tese foi defendida no ano passado, na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Sinceramente, não imaginava que minha tese seria selecionada em meio a tantas do Brasil todo. Um dos desafios que o ensino de língua portuguesa na escola apresenta é o de formar estudantes realmente proficientes quanto ao uso da língua materna, em situações diversas de interação verbal. Assim, o trabalho que realizei, com base nos pressupostos teóricos da Sociolinguística Educacional, com destaque para os estudos de crenças e atitudes linguísticas no ensino de língua, teve como principal objetivo investigar como ocorre a abordagem da variação linguística no processo de ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa, no Ensino Médio, em escolas públicas do Estado do Paraná. Para tanto, realizei a análise de três corpora, constituídos pelos documentos oficiais norteadores do ensino de Língua Portuguesa no Brasil, pelos livros didáticos de Língua Portuguesa indicados para o Ensino Médio, no guia do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) 2015 e pelos questionários respondidos pelos professores da rede pública de ensino do Estado do Paraná. A análise documental considerou três documentos oficiais: os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, as Orientações Curriculares para o Ensino Médio e as Diretrizes Curriculares Estaduais de Língua Portuguesa para a Educação Básica do Estado do Paraná. Os materiais didáticos foram analisados com a finalidade de verificar como ocorre a abordagem da diversidade linguística, tanto na parte teórica dos conteúdos, como nas atividades. A análise dos livros didáticos foi realizada a partir de um roteiro composto por cinco perguntas abertas. Além disso, foi utilizado um questionário online para que se conseguisse obter respostas de professores do ensino médio, de todas as cidades do Paraná, para investigar como se dá a abordagem da variação linguística pelo professor, na sala de aula. A partir do estudo que realizei, foi possível verificar que os documentos oficiais não são suficientemente esclarecedores sobre o trabalho com a variação, ou seja, orientam sobre a necessidade de se trabalhar com a variação, mas não há encaminhamentos de como realizar esse trabalho. A respeito dos materiais didáticos, conclui que, em geral, esses materiais propõem atividades que não são suficientes para explorar em profundidade as diversidades linguísticas, embora o tema seja abordado em todos os materiais, não como resultado da valorização da variação linguística, mas por uma imposição do PNLD. Sem dúvida, isso não deixa de ser um avanço, pois, no passado, havia obras que sequer abordavam o tema da variação lingüística. Com relação às crenças e atitudes dos professores sobre a diversidade linguística, constatei que, de modo geral, os professores assumem um discurso em defesa da importância do trabalho com a variação linguística na sala de aula. Entretanto, no questionário, havia uma questão aberta para verificar a atitude dos professores diante de usos linguísticos pelos estudantes em situações de oralidade, usos estes não prescritos na gramática normativa. Uma parte significativa dos professores condenou esse emprego de variantes nãos prestigiadas pela norma gramatical. Isto é, há uma tendência dos professores de vincular o saber linguístico do estudante ao domínio da norma culta e não à adequação da língua aos diferentes contextos discursivos. Além das análises, o trabalho apresenta uma discussão teórica sobre a história do ensino de Língua Portuguesa no Brasil, sobre as normas linguísticas, a partir de quatro autores: Stella Maris Bortoni-Ricardo, Roberto Camacho, Ataliba de Castilho e Carlos Alberto Faraco. A base teórica do trabalho também conta com uma discussão sobre a Sociolinguística Educacional e sobre os estudos de crenças e atitudes linguísticas no ensino.

OC: Quais os caminhos da Sociolinguística Educacional em termos de pesquisa e divulgação de seus resultados e, também, no que diz respeito ao ensino de língua portuguesa na escola?

Flávio Brandão: A Sociolinguística Educacional já avançou bastante em alguns aspectos, sobretudo com relação à discussão a respeito da valorização da diversidade linguística no contexto escolar e às diferentes concepções de norma e suas implicações no processo de ensino-aprendizagem. São avanços significativos, pois o tema da variação está marcado politicamente nos documentos oficiais que norteiam o ensino de língua portuguesa. Trata-se de um ganho importante para a área, já que, desse modo, os materiais didáticos necessitam obrigatoriamente abordar a variação linguística. No entanto, os avanços poderiam ser maiores, se os profissionais não ficassem presos à questão da valorização da diversidade linguística e buscassem centrar esforços na transposição didática dos conteúdos de variação. A Sociolinguística Educacional, ainda tem um longo caminho a percorrer. Por isso, há temas promissores que ainda carecem de investigação e de pesquisa no âmbito da academia, como, por exemplo: a) estudos de crenças e atitudes linguísticas no ensino de língua materna; b) investigação das políticas públicas para o ensino de língua portuguesa na perspectiva da variação. Particularmente, este é um tema interessante, pois, há trinta anos, se estudam e se discutem metodologias e estratégias de ensino, levantando e propondo alternativas que ainda não conseguiram apresentar, de fato, resultados significativos, mesmo havendo bons profissionais nas esferas acadêmica e escolar. Isso se deve à falta de políticas eficientes que possam de fato alavancar o ensino aprendizagem, pois as que existem são de governo e não de estado para a educação; c) como se dá a abordagem da variação linguística nas avaliações oficiais, uma vez que documentos ressaltam a necessidade de que a variação seja trabalhada em sala de aula. No entanto, as avaliações exploram pouco esse tema; d) a produção de materiais didáticos que envolvam os fenômenos linguísticos variáveis. Esta, talvez, seja uma das mais importantes contribuições em termos de Sociolinguística Educacional. O que aparece hoje nos materiais didáticos, de forma geral, é uma abordagem da variação linguística restrita a um capítulo específico. Os fenômenos variáveis quase não são abordados e, quando isso ocorre, na maioria das vezes, são apenas em forma de notas de rodapé ou de caixas de texto, sem muita profundidade.

OC: Ainda sobre os caminhos para as pesquisas da Sociolinguística e até da Pedagogia da Variação, de que forma os gêneros discursivos/textuais são tratados na perspectiva das variações linguísticas? Falamos, por exemplo, em como a questão das variações estilístico-composicionais é considerada, uma vez que os gêneros se fazem presentes nas práticas discursivas de todo falante da língua?

Flávio Brandão: Sobre a relação variação linguística e gêneros discursivos, um tópico interessante para ser discutido, sem dúvida, é a variação estilístico-composicional. Nesse sentido, mesmo que de forma inicial, já existem alguns encaminhamentos por parte de pesquisadores sobre essa questão. Inclusive, o eixo de Variação e Ensino, do Grupo de Trabalho de Sociolinguística, da Anpoll, do qual eu também faço parte, sob a coordenação da professora Silvia Vieira, da UFRJ, estabeleceu uma agenda de trabalho, com algumas prioridades. Dentre essas prioridades destaco o tema “Gramática e produção de sentidos no texto”. Os trabalhos a partir deste tema deverão abordar, por exemplo, a análise de fenômenos gramaticais como recursos expressivos na construção do sentido do texto, seja numa perspectiva funcionalista, que considere o texto como unidade de uso, mas que busque a interpretação dos elementos que compõem as estruturas da língua; seja numa perspectiva discursiva, que considere o texto como discurso: um evento em situação dialógica, em que se manifestam elementos linguísticos e extralinguísticos codificados pela gramática e realizados de acordo com um contato vigente para os diversos gêneros textuais. Acredito que, em breve, teremos importantes contribuições na interface variação linguística e gênero discursivo.

 

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