“O gênero continua sendo uma peça-chave para se trabalhar com o ensino das práticas sociais” diz o professor Adair Bonini, em entrevista a O Consoante.

 

por Rafael Alves e Neil Franco

 

O Prof. Dr. Adair Bonini, docente da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tem sua trajetória acadêmica marcada pelo estudo dos gêneros discursivos/textuais, especialmente os da esfera jornalística. Entre seus trabalhos de maior destaque, está a produção do livro Gêneros textuais e cognição: um estudo sobre a organização cognitiva da identidade dos textos (2002) e, também, sua participação na organização dos livros Gêneros: teorias, métodos, debates (2005) e Os gêneros do jornal (2014). O Consoante aproveitou a presença do professor no V Conali, evento ocorrido nos dias 25, 26 e 27 de setembro, e realizou uma entrevista.

 O CONSOANTE: Suas pesquisas se voltam, em grande parte, para os gêneros discursivos/textuais. Como surgiu esse interesse? 

 BONINI: Eu não tenho uma história retilínea. Vamos dizer que eu passei por vários campos da linguística. Quando comecei o mestrado, trabalhei com psicolinguística. O meu interesse veio justamente em trabalhar questões que eram de processamento [textual], mas que estavam mais relacionadas à ação do sujeito, mais próximas das práticas sociais. Ainda não era uma pesquisa que relacionava gênero e educação, estava mais relacionada a gênero e a entender a mente do sujeito (isto é, de cognição), no sentido de como ele atua socialmente, daí entrou o gênero como uma peça-chave. Posteriormente é que eu comecei a entrar mais no campo da Linguística Aplicada, de forma a estabelecer um diálogo mais próximo com os colegas que estavam fazendo pesquisas nesse campo. Assim, eu vi a possibilidade de explorar vários aspectos que eu não estava explorando no campo da cognição, que poderiam, então, guiar o trabalho com o ensino.

OC: Por que você acha que é importante trazer esse conceito de gênero para a academia e para a escola?

BONINI: Desde o final da década de 1970, temos tentado, no campo educacional, sair de uma abordagem estruturalista de língua, para pensá-la de uma forma mais ampla, como ação do sujeito e como forma de estar, participar e constituir o mundo, e, portanto, de interação política e cidadã. Então, não se trata só de um ensino voltado a regras ou a aspectos formais, mas de algo que é muito mais amplo. E o gênero é um conceito que é muito apropriado para pensarmos esse tipo de trabalho com a linguagem, com a educação e com o ensino-aprendizagem. Eu vejo que o conceito é bastante válido. Claro que ele não existe sozinho, ele tem relação com o conceito de discurso, com a enunciação e com outros conceitos que ajudam a abordar essa ação dos sujeitos sociais. Contudo, eu vejo que o gênero é um conceito que é muito fácil de operacionalizar. Nós o reconhecemos na interação – ele é muito visível, muito comprovável. Acho que continua sendo uma peça-chave para se trabalhar com o ensino das práticas sociais, isto é, não ensinar o gênero propriamente, mas como uma forma de fazer as pessoas pensarem na sua ação com a linguagem, de aprender com a sua própria ação e com a dos outros e, também, de pensar a forma como a linguagem ocorre no mundo. Isso vale para o ensino fundamental, médio e também para a graduação, ou seja, todas as etapas do ensino. É claro que, no ensino de graduação, é um trabalho bem diferente do que ocorre nas outras etapas, mas igualmente importante. Nós temos trabalhado muito na graduação a questão dos gêneros acadêmicos, tanto na leitura, quanto na escrita acadêmica e na oralidade – esta última, tradicionalmente, abordada tão pouco, mas nos últimos anos temos trabalhado bastante na graduação. E eu acho que isso tem sido bastante importante não só para os alunos de Letras, que estão se formando para ser professores e têm que aprender a dominar esse conceitual e essas práticas, mas também para os estudantes de outras áreas, como da Engenharia, do Direito, entre outros, que podem se beneficiar muito em entender não só os gêneros acadêmicos, mas também os próprios gêneros das suas profissões, da sua atuação profissional e social.

OC: Ainda há motivos para pensar que os gêneros na pesquisa e no ensino são um modismo?

 BONINI: Não concordo que seja e, inclusive, nem que tenha sido um modismo um dia. Embora, é claro que, na ciência, em determinado momento, ocorra de todo mundo falar do mesmo tema. Mas eu não acho que tenha sido um modismo, porque o gênero apareceu, do ponto de vista teórico, dos debates acadêmicos, como uma necessidade. Então, quando Bakhtin é redescoberto nos anos 1990, ele não aparece como um modismo, ou seja, “vou estudar a área de gênero, porque agora tem esse autor que é famoso”, mas porque se viu que ele era muito relevante para se entender a linguagem e as questões de ensino-aprendizagem. Portanto, nesse sentido, eu tenho um pouco de resistência em entender que o gênero seja/tenha sido um modismo.

OC: Gêneros discursivos ou textuais? Essa discussão ainda é pertinente?

BONINI: Eu acho que a maioria dos que estudam gênero, hoje, trabalha numa perspectiva de gênero do discurso, mesmo os que não usam esse termo. O pessoal do ISD [Interacionismo sociodiscurisvo], por exemplo, trabalha com o termo “gênero textual”, mas a perspectiva é de discurso. Então, nesse sentido, talvez não coubesse mais esse discussão. Mas dentro da área de linguagem, de modo geral, acho que se faz muito essa distinção e o termo “textual” ainda é dominante, quando se fala de gênero. Por exemplo, vamos pensar nos livros didáticos, como que aparece o gênero? Aparece como se fosse o nível mais alto da linguagem. Ou seja, ainda há predominância dessa visão dos níveis, como da fonologia, fonética, sintaxe, indo até o texto e o discurso. E não é isso que se defende no campo de ensino-aprendizagem, mas, sim, de inverter essa pirâmide, na qual começaríamos pelo sujeito, isto é, por pensar o sujeito e sua ação de linguagem. A abordagem operacional e reflexiva que propõe o Geraldi, por exemplo, não consiste em pensar que eu vou ensinar os níveis e que o gênero está lá em cima, como um nível a mais. Acho que nós temos que pensar a partir de como esses sujeitos estão lidando com a linguagem, como se enxergam enquanto produtores de linguagem e de práticas sociais. E daí o gênero é discursivo, mesmo que se fale em textual, estamos pensando em gênero como resultado das ações discursivas desses sujeitos, nas enunciações e tudo mais.

OC: Os gêneros da esfera jornalística são bem presentes nos seus trabalhos. Por que esse interesse em especial?

BONINI: Acho que não tem algo que seja relacionado à minha biografia. É de vivência do mundo, de pensar que as mídias, particularmente as mídias/linguagens/práticas jornalísticas, são influentes nas ações e nas decisões do mundo. Então, é um aspecto que nós não temos como não debater, principalmente enquanto professores de língua portuguesa, que recebemos alunos que precisam se pensar como produtores de linguagem que se relacionam e fazem parte do mundo – mundo, este, que é constituído pela linguagem. E os gêneros jornalísticos estão presentes e são influentes, além de haver, nesse meio, muita desigualdade, em termos de poder, em relação a quem está do outro lado das mídias, enquanto consumidor de informação. Outra razão é de vivenciar politicamente as influências que são exercidas nas próprias eleições, desde a década de 1980, pós-ditadura civil-militar, de modo a pensar como que as mídias, particularmente o jornalismo, influem nesses processos. E, claro, pensando que talvez nossas pesquisas possam ser um ponto de ajuda, que podem vir a nos fazer pensar essas práticas de outro modo ou até transformá-las, quem sabe?!

OC: Em que você pensou ao propor um trabalho com o jornal escolar? Criar suporte para publicação de textos é um caminho para desenvolver a escrita, independentemente do nível de ensino?

BONINI: É uma frente de trabalho que vai evoluindo. Quando você inicia, você pensa em algumas coisas, tem determinadas metas e, talvez no início, estivesse mais relacionado com essa prática de produção escrita e leitura dos estudantes. Mas atualmente eu tenho pensado mais no sentido de como que, por meio do jornal, os estudantes podem se colocar socialmente. Então, acho que o foco está um pouco diferente, mas também seria isso, quer dizer, ao se colocar e ao se pensar nessas práticas, eles também vão produzir linguagem e pensar nos conhecimentos que são necessários para produzir essas linguagens, esses gêneros – eu prefiro chamar de mídia e não suporte, porque mídia é um termo que tem um caráter mais social e não tão técnico. Embora haja jornais escolares que, às vezes, são produzidos só como suporte, em que ali aparece o resultado de atividades que foram produzidas em sala de aula, mas eles não estão produzindo efetivamente um jornal. É como se fosse um álbum, algo que vai dar visibilidade ao resultado das atividades, o que eu acho um trabalho interessante, não vejo demérito nele, mas não é a mesma coisa que dizer que o aluno está produzindo um jornal escolar. Hoje, eu tenho trabalhado muito com meus orientandos a questão do planejamento da mídia, das discussões, das reuniões que se têm que fazer na sala de aula, de um processo de discussão e de decisões democráticas, por votações, debates etc., para que todos que estão ali estejam contemplados na concepção do jornal escolar.

OC: Qual a importância, no seu modo de ver, do livro de 2005 organizado por você, José Luiz Meurer e Desirée Motta-Roth para o panorama dos estudos de gêneros no Brasil?

BONINI: Acredito que o livro teve um importante papel na sedimentação do conceito de gêneros do discurso no Brasil e também na formação de pesquisadores dedicados a este tema. Tem sido, além disso, um livro bem acolhido no curso de Letras na maior parte das universidades brasileiras. Em uma classificação do blog da Parábola, elaborada a partir da consulta a programas de disciplinas de Letras de 30 universidades, ele aparece como o segundo livro mais adotado dessa editora. A variedade de enfoques e a riqueza da abordagem da obra é o resultado do trabalho rigoroso e da dedicação de diversos participantes do GT de Gêneros Textuais/Discursivos, um grupo de pesquisadores sediados na ANPOLL (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística); GT do qual eu era o vice-coordenador na época em que o livro foi organizado.

OC: O capítulo de Roxane Rojo, nesse mesmo livro, pode ainda ser considerado atual nas discussões sobre os gêneros discursivos/textuais?

BONINI: Embora hoje a maioria dos grupos de pesquisa opte por uma abordagem do gênero como elemento essencialmente discursivo e atrelado às práticas de sujeitos sociais, há ainda muitos setores em que o gênero é tratado apenas como uma peça formal. A visão de gênero apenas como forma do texto é ainda dominante no senso-comum, exercendo pressão sobre a construção de currículos, sobre a elaboração de materiais didáticos, sobre as avaliações de larga escala, e sobre a formação de professores. Nesse contexto, o capítulo de Rojo continua sendo um material indispensável, que pode contribuir bastante para fomentar discussões em sala de aula e para embasar debates nos grupos de pesquisa da linguagem e da educação em linguagem.

OC: Para onde você acha que as pesquisas com os gêneros vão caminhar nos próximos anos?

BONINI: Eu acho que o trabalho com o gênero ou tende a se constituir como um campo próprio, que seria o campo de análise e de estudos de gênero, ou se integrar de algum modo às análises de discurso. Eu acho que nós estamos num caminho que isso não está muito claro. Por exemplo, o pessoal no campo do dialogismo falava, muitas vezes, que estava fazendo análise de gênero dialógica, mas atualmente eles preferem trabalhar com o conceito de discurso, de análise de discurso dialógica e o gênero como parte dessa análise de discurso. Em outros lugares, você vê que o gênero acaba ganhando um tratamento mais autônomo, como campo e perspectiva, como nós estamos tentando fazer na Análise Crítica de Gênero – Désirée [Motta-Roth] lá em Santa Maria [UFSM] e eu. Então, alguns colegas estão tentando se centrar mais no gênero, mas, de algum modo, nós estamos em um diálogo com as teorias de discurso. Quando se fala em ACG [Análise Crítica de Gênero], tem-se um diálogo com a ACD [Análise Crítica do Discurso] e com diversos autores que têm discutido no campo crítico, como Paulo Freire, por exemplo.

 

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