Imagem: https://www.facebook.com/photo/?fbid=849471680554161&set=tana-moreano-estreia-na-literatura-com-o-livro-de-ficção-cora-do-cerrado-o-livro
por Sophie Sagrado
No livro que inaugura a figura de Tana Moreano na carreira literária, a autora contextualiza-nos numa construção ficcional situada em meados da década de 1980 sem ser, pois, limitada em sua ficcionalidade: é precisamente o contrário, suas temáticas são atemporais a partir do momento em que acontecem neste país, cultural e historicamente preconceituoso. É preciso, então, sobrelevar tais questões e mostrar por palavras a permanência de comportamentos limitantes e restritivos, onde a figura feminina não é vista em sua individualidade tampouco como participante e protagonista da esfera social. Tana Moreano é engenheira agrônoma de formação e atuou na área por mais de 20 anos, tendo também vivido em diversos estados, sendo Minas Gerais um de seus maiores encantos. Narrando suas vivências às netas, disseram-lhe que seria uma boa ideia se construísse um livro a partir de suas contações de histórias: o estopim para que Moreano fizesse a materialização de sua arte.
Valendo-se de seus percursos e de relatos coletados e observados ao longo de seu viver – inerentes ao processo da vida – a autora constrói Cora, uma mulher independente e que deseja, acima de tudo, ser dona de si e de sua vida. Mãe solo, vê-se à margem da sociedade, mas, ainda assim, não permite que isso a determine e nomeie a sua capacidade, embora seu posicionamento não impeça a ocorrência de julgamentos e pré-conceitos (bem como preconceitos). Cora está prestes a finalizar seus estudos no curso técnico quando engravida de Tião, moço que conhecera no curso e que conduz Cora a ir viver com ele na fazenda da família. Cora, então, abandona seus estudos em prol de seu novo filho e de sua nova situação. Por mais que já tenha Pedrinho – seu primeiro filho – a protagonista não se incomoda, em um primeiro momento, em ir tentar a vida noutro lugar. Contudo, ao longo da narrativa, descobrimos com Cora as imensas dificuldades que a esperam e acorrentam-na.
Com considerável destaque, somos guiados a perceber o quão os diferentes contextos – vividos por distintas pessoas – cegam e as tornam invisíveis; tanto para si mesmas quanto para suas comunidades. Cora experimenta um grande desassossego ao notar a falta de posicionamento das figuras femininas que habitam seu (novo) redor, aquelas constantemente à mercê do homem – como figura masculina – e às suas incoerentes, injustas imposições. O preconceito regional e cultural é um aspecto bem desenvolvido e intencionalmente provocativo no romance de Tana Moreano. Isso pode ser exemplificado pela figura de Dona Josefa – mãe de Tião e sogra de Cora – que sempre faz comentários desdenhosos a respeito da nora, que veio da cidade e teve uma criação bem distinta de Dona Josefa e das outras mulheres da fazenda, sempre tendo o incentivo de ganhar autonomia e de ser autossuficiente, coisas que a grande parcela das mulheres da zona rural em que Cora se insere não tiveram. Analogamente, verificamos a intertextualidade deste romance contemporâneo com algumas das características que constituem o segundo período do Modernismo no Brasil: regionalismo, crítica às instâncias de poder – mesmo que estas sejam o próprio homem – e um intenso processo reflexivo no que diz respeito à existência do “eu” e de tudo aquilo ao entorno da trama. Outro aspecto narrativo interessantíssimo na obra de Moreano é a adesão de seus próprios neologismos, de maneira que sua literatura abrange não somente marcas regionais do cerrado ou dos personagens, mas também a imensa técnica criativa da autora.
A dialética entre espaço rural e setor alimentício é, ainda, uma das essencialidades deste livro. As descobertas, as decepções e as ascensões nesta narrativa caminham, quase que indissociavelmente, junto à produção de alimentos em num local onde um sutil coronelismo faz-se dominante. Antonio Candido, em seu livro “Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos” comenta que é preciso que o leitor se entrose na dor humana estabelecida na tortura da paisagem. E eu, como leitora, diria que o romance de Tana Moreano nos atenta em demasia ao que Candido estabeleceu; há revolta, há empatia, há injustiça e justiça: a vida belamente representada por palavras, pela arte.
Parabéns!