“O interessante em uma experiência literária – neste caso, uma viagem – é que nós sejamos levados a nos descentrar, de tal maneira que essa alteridade nos toque e nos faça viver com esse ímpeto concreta e imaginariamente. Colocar-se no lugar do outro é uma possibilidade de ter uma empatia com esse outro que nos falta, profundamente, nessa sociedade contemporânea”.
por Izabelle Diniz, Laura Galuch e Neil Franco
Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor do Departamento de Teorias Linguísticas e Literárias da Universidade Estadual de Maringá. Doutor em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras “O evangelho segundo talião” (nVersos, 2013), “Tiro de misericórdia” (nVersos, 2014) e “Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo” (Hedra, 2018). Organizador do livro de ensaios “Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade” (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, da antologia “Pai contra mãe e outros contos” (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Colabora, periodicamente, para os jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo e para as revistas Veja e Carta Capital. Seu mais novo livro, Diário de um escritor na Rússia (Hedra, 2019) foi escrito em solo efetivamente russo durante a última Copa do Mundo, em trabalho como correspondente da revista Veja.
No dia 24 de junho, no auditório do bloco G-34, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), foi realizado o lançamento do Diário de um escritor na Rússia, que contou com uma plateia interessada nas “histórias e estórias” de Flávio Ricardo Vassoler sobre a Rússia de Dostoiéviski, Gógol, Stalin, Bakhtin e companhia ilimitada. O Consoante participou do lançamento, ao promover uma entrevista-aula, com o objetivo de estabelecer um diálogo com o escritor sobre o “Diário”. O público presente assistiu não só a uma aula de literatura, como também de história, filosofia, política, com grande destaque para o que Vassoler chamou de “russidade”, em sua síntese sobre a alma russa.
O Consoante: Você escreveu um texto para cada dia de Copa do Mundo. Eles foram publicados no site da revista Veja durante o evento. Como é escrever literatura para um veículo jornalístico com um grande alcance? Como surgiu a ideia de compilá-los e publicá-los em um livro?
Vassoler: Eu publicava textos em sites para uma revista chamada Peixe Elétrico, lá de São Paulo, editada pelo Tiago Ferro. Num determinado momento, eu estava fazendo uma viagem, ali pela região dos Bálcãs, na antiga Iugoslávia, e o Tiago me mandou uma mensagem falando: “Olha, tem um amigo meu que é editor da Veja, o Fábio Altman. Ele está precisando de um especialista em literatura russa para ministrar palestras para os jornalistas que vão cobrir a Copa do Mundo, justamente sobre a história da literatura russa. Você topa? Eu disse: “Claro! Lógico! Vamos lá”. Quando o Fábio me escreveu, ele se mostrou não só corintiano, como eu, mas nós tivemos uma empatia muito grande ao falar de temas históricos. Ele é um leitor contumaz de escritores russos. Duas semanas depois eu retornei a São Paulo. Nós marcamos um almoço e fomos nos encontrar. Com a simpatia política, de viagens e o ímpeto literário, ele me contratou para dar as palestras, mas já naquele almoço eu falei: “É o seguinte, você não vai me contratar só para dar essas palestras, não, você vai me levar pra eu escrever uma versão recente do ‘Diário de um escritor’, que Dostoievski escreveu na década de 1870. Só que agora eu vou viajar pela Rússia e vou refazer esses textos”. O cara arregalou os olhos e disse: “Pô, mas você é ousado. Primeira vez que estamos conversando”. Fábio Altman foi muito bacana e bancou esse projeto. Me levou para lá, e eu passei um mês. Eu cheguei um pouco antes do início da Copa na Rússia, que começaria dia 15 de junho. Eu viajei quase 6.500km, em sua maioria de trem, mas também de avião, por 10 cidades da Rússia europeia, que receberam os jogos. Um dos meus álibis para convencer o Fábio, além do estudo sobre a Rússia, foi o fato de que morei lá durante o mestrado (2008-2010) e, um ano antes da Copa (2017), eu tinha feito outa viagem dos meus sonhos. Vocês já ouviram falar do Grande Expresso Transiberiano? Eu dei um curso de literatura russa passando por China, Mongólia, toda extensão da Sibéria da ponta oriental, passando ali pela Sibéria Ocidental, cruzando os Montes Urais, que ficam na fronteira entre Ásia e Europa da Rússia, para chegar até Moscou. Eu já tinha experiência nesses trabalhos internacionais. Agora, portanto, respondo mais diretamente sobre a intersecção entre jornalismo e literatura. O Fábio Altman sabe que eu não tenho formação jornalística, mas eu vinha publicando, então há mais de um ano, textos de crítica literária, no Estadão, na Folha e comecei a publicar na Veja. Então, eu já tinha uma traquejo com a linguagem jornalística. Só para contextualizar, tem uma peculiaridade do mercado literário no Brasil. É muito difícil viver como escritor no Brasil, sobretudo quem pretende fazer uma literatura séria, e não uma porcaria comercial. Isso tem um revés muito grande em termos financeiros. Por outro lado, a ingerência editorial tende a ser menor sobre o texto. E hoje temos de saber aproveitar as mídias sociais. Eu fui conformando um público que vem me acompanhando. Eu tenho organicidade para escrever meus textos, o que é uma coisa totalmente inusitada. A minha primeira experiência para além da academia ao escrever para veículos que tolhiam a minha escrita no sentido da extensão foi o jornalismo. Mas para todos os veículos para os quais eu colaboro, veículos conservadores, com exceção de Carta Capital, eu preciso dizer que nenhum deles jamais chegou para mim e falou: “Você tem que escrever dessa forma”. Portanto, eu tive esse privilégio de encontrar algumas franjas, algumas veredas nesses caminhos para fazer esses textos. O diálogo foi ainda mais facilitado, porque o Fábio queria que eu pautasse, ele me deu total liberdade editorial. Ele só queria que eu não pautasse o futebol, e sim as questões históricas, culturais, políticas da Rússia. Eu não podia falar de política do Brasil. Eu acho que vocês vão imaginar o porquê, não é? Eu tive liberdade de falar da Rússia do século XIX, da Rússia do século XX, da Rússia contemporânea, estou aqui com a camisa da União Soviética, falei muito da União Soviética no livro. Eu fiz meu trajeto em sentido horário. Saí de Moscou, cidade natal de Dostoiévski, capital da Rússia, para Níjni Novgorod, Kazan, Saransk, Samara, Volgogrado – esta última foi o ponto alto da viagem, pois a cidade se chamava, na época da Segunda Guerra, Stalingrado. Depois eu fui para Rostov-sobre-o-Don e Sotchi. Eu cheguei nessa cidade de trem e estava um verão escaldante. A Rússia tem as quatro estações bem demarcadas. Chegando a Sotchi, estava cruzando de trem e parecia que eu estava na Mata Atlântica, parecia que eu estava chegando ao Rio de Janeiro, ao ver o Mar Negro, uma coisa maravilhosa. Depois de Sotchi eu fui para a cidade de Kaliningrado. Esta cidade pertencia aos alemães e se chamava Königsberg. É a cidade em que nasceu, viveu e morreu o filósofo Immanuel Kant. O túmulo dele está lá ainda, e eu sabia que esse também seria um ponto alto da viagem. Depois eu fechei o círculo indo para São Petersburgo. O que eu tentei fazer? Mesclar crônicas, reportagens, ensaios e muita ficção para compor esse mosaico. Várias passagens no livro abordam essas questões de trânsito entre os gêneros literários. Mas é importante frisar que, pela minha formação, primeiramente falando da formação acadêmica e vivencialmente híbrida, foi interessante para mim a aproximação com os objetos com os quais eu queria dialogar, de maneira a ouvir o que as personagens tinham a dizer, sem determinar o gênero, se reportagem, se ficção, se ensaio. Vocês vão perceber que esses textos tem uma característica hibrida, e essa foi uma liberdade que me foi concedida pelo editor, que me falou: “Aproveita a sua condição de escritor e especialista para fazer um mergulho na Rússia, uma investigação sobre a cultura e história do país, de tal maneira que você possa exprimir essas várias facetas”. Uma característica que eu empreguei, já que a maior parte das notícias sobre a Rússia que chega até nós vem pelo prisma da agência Reuters, ou seja, um prisma antirrusso/americanófilo, sem conhecer os princípios e os valores dos russos a partir deles próprios, foi a categoria literária do “autor-personagem”. Vocês vão perceber que algumas personagens do livro me emparedam muitas vezes. Eu tento expor minhas opiniões, mas minhas opiniões obviamente são matizadas, são contraditórias, até mesmo paradoxais. Mas é importante frisar que eu tentei trazer, por meio dos vários diálogos que compõem a obra, sejam diálogos abertos, sejam impressões sobre a Rússia, a perspectiva que esse país tem em relação ao Ocidente, uma alteridade muito marcada. Por ter vivido lá e por estudar a Rússia há um bom tempo, isso já é uma coisa que vem para mim de maneira mais osmótica, mais natural, e eu tentei trazer isso no livro. O livro se configura dessa maneira, e o jornalismo nesse caso foi um veículo muito interessante, porque para a Veja, uma revista com uma tiragem semanal enorme, os textos exigiram de mim um esforço totalmente hercúleo. Eu pegava a manhã, geralmente do dia em que eu chegava à cidade, para escrever o texto, mas o processo geralmente me tomava a tarde também. Depois eu ia singrar as cidades em busca de temas. Foi uma investigação como se eu tivesse feito uma pesquisa etnográfica, buscando dados, referências. Os textos originais eram entremeados por fotos minhas postadas no site, e vocês vão ver que o livro está dividido em dez partes, e cada parte é introduzida por uma foto. São fotos que eu tirei nas diversas cidades por onde passei. Com essa apresentação, eu faço uma contextualização geral para nós mergulharmos nas questões.
OC: Podemos observar que o Diário de um escritor na Rússia constrói-se a partir de gêneros discursivos, com fronteiras nem sempre perceptíveis (reportagem, crônica, ensaio), na intersecção de diferentes esferas socioideológicas (a jornalística, a literária, a acadêmico-científica). O que o levou a mobilizar gêneros diferentes durante seu percurso literário de um mês na Rússia?
Vassoler: Essa questão foi levantada em nossos diálogos preparatórios para essa entrevista-aula, e para falar dela eu faço uma rápida retomada da minha formação. Eu não venho originalmente das Letras. Fiz graduação em Ciências Sociais, mas antes tive a desventura de estudar um ano de Direito. Vocês nem podem imaginar como eu tenho “orgulho” do Direito… Eu saí do Direito justamente porque me incomodava uma lógica de tipologia, de enquadramento, de dogmatismo, de mitificação da realidade em determinados nichos. Fui para as Ciências Sociais esperando que eu fosse estudar as maneiras pelas quais a nossa sociedade se reproduzia e vinha a ser tão injusta. Infelizmente, senti um incomodo não menor, porque eu esperava mais, eu esperava que a Sociologia, que a Antropologia, que as Ciências Políticas, que são as bases do curso de Ciências Sociais, pudessem dialogar entre si. Eu esperava que pudesse incorporar meus estudos de Filosofia, de Psicologia, mas aquilo que foi acontecendo quando eu queria fazer iniciação científica, quando eu busquei ali pensar se eu ia fazer mestrado em Sociologia que era a área que mais me interessava – eu tinha que me setorizar, me “departamentalizar” em determinadas metodologias que pouco estabeleciam diálogo entre si. Para falar brevemente da minha formação, eu diria sociologicamente que eu pertenço ao interstício, a uma espécie de erro do capitalismo brasileiro. Eu pude estudar em escolas particulares lá de São Paulo e vivia numa vila operária, e geralmente isso não acontece. A gente vive em uma única classe. Temos pouco transcurso de classe no Brasil. Talvez, mais recentemente, o Brasil tenha passado pelo único período da sua história ao longo do qual foi possível ter alguma emergência social para uma classe que não podia chegar à universidade, não tinha acesso a crédito e assim por diante. A polifonia, essa dialogia de que os teóricos falam a partir de Bakhtin, essa constituição polifônica de classe sempre me foi uma coisa peculiar. Era curioso quando eu chegava à faculdade, ia para o movimento estudantil e via meus amigos de classe média falando dos operários. Eu era filho de operário, e quando eles falavam de consciência de classe, eu não identificava meu pai ali, eu não identificava os amigos do meu pai. Isso me incomodava profundamente, porque parecia que a minha realidade se reproduzia não sob o signo de um método, de um caminho determinado, mas sob o signo da contradição, e eu não encontrava um domínio, um campo que pudesse me acompanhar nessas contradições, até que eu encontrei a famosa Teoria Crítica da Sociedade. Eu fui deparar com Walter Benjamin, com Theodor Adorno. O primeiro autor com que eu deparei – e que na verdade foi aluno do Theodor Adorno, esse grande autor da Teoria Critica – foi o Hans Magnus Enzensberger. Não sei se vocês já leram alguma coisa dele. O primeiro texto que eu li na faculdade foi o “Guerra Civil”: este texto é de um completo desencanto, porque ele analisa todas as utopias do século XIX ao XX que despontaram como o sol a pino, mas que depois tiveram seu crepúsculo, nos deixaram órfãos, e agora a gente está em um pesadelo completo nesse Brasil contemporâneo. Eu cheguei à faculdade já deparando com esse texto, mas diferentemente de um texto árduo, analítico, sem conotação, esse texto era um ensaio que muitas vezes oscilava entre a análise e a narrativa, e eu falei: “Opa! Isso aqui é uma coisa interessante pra mim”. Fui me aprofundando dos estudos da Teoria Crítica. Eu cheguei à noção de que não era preciso aceitar a divisão intelectual do trabalho. Era preciso conjuminar as diferentes abordagens, e essa era a proposta da Teoria Critica, estabelecer um diálogo entre os diferentes campos. De forma meio anacrônica, porque Dostoiévski viveu no século XIX, eu considero que aprendi mais Teoria Crítica com Dostoiévski do que com Adorno e Walter Benjamin. Nietzsche chegou a dizer: “O único psicólogo com quem eu tenho alguma coisa a aprender se chama Fiódor Dostoiévski”. Assim, além de estudar Dostoiévski como grande crítico da sociedade, um grande crítico da história, do movimento da história, das balizas de socialismo e cristianismo, eu encontrei muito esse humano contraditório em Dostoiévski. A literatura para mim foi um encontro para que eu pudesse significar essa polifonia que é constitutiva tanto da minha formação individual – em termos de um indivíduo sempre mediado obviamente pelas balizas da sociedade – quanto da minha formação intelectual acadêmica. Por conta disso, essa voz da informalidade, da coloquialidade, da tradição oral, não letrada, convive comigo com essa tradição de ter estudado no exterior, de ter podido viajar, de ser agora professor universitário, de ser escritor. Então, ao transitar por esses meandros, nunca me bastou ou nunca me pareceu suficiente determinado discurso ou dependência de método com o gênero literário estrito para tentar exprimir os textos que despontavam em diálogo com essa realidade. Muito dessa polifonia não é algo que eu implanto no texto como se me fosse agradável, mas como sendo uma segunda pele.
OC: Além de mobilizar os referidos gêneros discursivos citados na pergunta anterior, você promove a intercalação de outros (diálogo, poesia, provérbio, chiste, cantiga de ninar etc.), sem contar fragmentos de textos com base em outros tantos gêneros. De alguma forma, essa variedade de gêneros é um reflexo da sua experiência, da sua formação?
Vassoler: Eu vou contar um pouquinho a vocês de como a dialogia foi se formando na crueza, na imbricação com a realidade, no corpo a corpo com os eventos pelos quais eu ia passando na Rússia, e como eu fui aproveitando essa contextualização –temos uma característica de reportagem, mas depois vem para a ficção e para o relato. Este texto [indica a página do livro] está escrito em Moscou. Se não me engano, ele é o último texto em Moscou. Me lembro perfeitamente, eu estava indo para o Museu do Bunker 42. Só para vocês terem uma ideia, os metrôs em Moscou foram construídos no começo da dinastia do Stalin, que ficou 29 anos no poder. Stalin constrói os metrôs, sabedor de que a União Soviética poderia ser atacada pelas potências capitalistas da Europa Ocidental. Se forem para Moscou e descerem as escadas rolantes dos metrôs do centro da cidade, vocês irão levar de dois a três minutos para descer, por que os metrôs já foram pensados como bunkeres, como abrigos subterrâneos. Vale frisar que depois da Revolução de Outubro de 1917, tropas de catorze países se juntam para apoiar os russos brancos, sejam eles tsaristas, sejam os russos que apoiavam a Revolução de Fevereiro de 1917, que derrubou a monarquia – todos visavam à queda do comunismo e dos bolcheviques. A União Soviética, então, surge depois de uma longa guerra civil. Era esperado que a União Soviética fosse atacada novamente, como o foi pelos nazistas em junho de 1941. Então, as estações de metrô eram verdadeiros bunkeres. Antes de eu ir para o museu, fui comer em um fast food russo especializado em batata. De repente, um senhor ouviu minha conversa. Ele percebeu que eu era estrangeiro pelo sotaque e veio conversar comigo. Era um senhor não tão velho para estar na Segunda Guerra Mundial, mas já não era tão novo para estar na guerra da Tchetchênia. Eu digo isso porque ele estava com uma calça militar. Pensei logo que esse senhor poderia ter sido do exército. Nós começamos a conversar. Aquele senhor gostava de futebol, e na Copa de 1982 o Brasil enfrentou a União Soviética, e o Sócrates fez um golaço. Portanto, eu achei que teríamos uma conversa sobre futebol, mas quando eu perguntei o que ele fazia, ele me disse que era um capitão reformado do Exército Vermelho. Tinha estado na guerra do Afeganistão. A Guerra do Afeganistão foi altamente nociva para a economia soviética, um dos motivos pelos quais, entre os vários, a economia soviética entrou em colapso. Aquele senhor me contou duas histórias, que são histórias completamente paradoxais ou contraintuitivas para nós, porque a guerra nos traz os mortos, os escombros, o choro e o ranger de dentes, algo como uma representação pictórica que Picasso fez de Guernica. Mas esse homem, capitão reformado do Exército Vermelho, traz o niilismo da guerra, traz o companheirismo da guerra, traz a superação do egoísmo pela guerra. Como a guerra está profundamente enraizada no imaginário russo, com a explanação que estou fazendo aqui eu mostro como é essa dialogia, não só pela minha formação, mas agora tendo um texto, cujo título é “Se queres paz, prepara-te para a guerra?”, de tal maneira que vocês percebam que eu mobilizo esses vários discursos em diálogo com a realidade mesma, que nos ajuda a captar suas nuances não por meio de uma foto, de um enquadramento, mas, sim, por meio de uma síntese, do seu movimento, das suas contradições, mobilizando essas histórias. Se fizerem a leitura desse texto, vocês vão se lembrar dessa nossa discussão e ver como é que eu pude, como escritor, mobilizar esses vários gêneros para tentar me aproximar, não só em caráter jornalístico, histórico e literário, mas também para tentar trazer essa voz da periculosidade russa, de um país que se considera invadido, agredido pelas grandes potências ocidentais. De fato, a Rússia foi invadida por Napoleão no começo do século XIX, foi invadida por catorze países na guerra civil, que se estendeu até a Revolução de Outubro. E foi invadida pelos nazistas. A invasão nazista trouxe um saldo de vinte e sete milhões de soviéticos mortos na Segunda Guerra.
OC: Dentre as vozes, percebe-se que os diálogos em forma de discurso direto são muito presentes. O que o levou a usar esse recurso? Qual é a importância dos diálogos com as personagens para a constituição do livro e, principalmente, para a representação do sujeito russo?
Vassoler: Essa pergunta é interessante, e vou tentar ilustrá-la com minha vivência pessoal. Eu sou neto de imigrantes italianos, por parte de mãe, e convivi com negros, índios e migrantes nordestinos que vieram para trabalhar em São Paulo. Eu pude ver que a consciência de classe era mais complexa e contraditória do que esse pertencimento econômico estrito. Por que eu estou dizendo isso? Porque quando me perguntam sobre os diálogos, dois autores foram fundamentais na minha formação. Eu já falei sobre um deles, que é o Dostoiévski. Mas outro autor que foi tão importante quanto Dostoiévski, e eu não estudei no mestrado e no doutorado, foi Sócrates. Quando eu li A República, Platão me deu uma aula de alteridade, porque toda vez que eu achava que compreendia o Sócrates em seus diálogos, ele me escapava. O Sócrates estruturava o pensamento do outro, parecia que estava defendendo um determinado ponto de vista. Entretanto, na hora em que eu achava que havia compreendido como ele pensava, ele desestruturava tudo aquilo que havia dito e fazia com que seu leitor e seu interlocutor tivessem que pensar contra suas próprias posições. Sócrates é um autor antidogmático e contradogmático. Ele vai nos trazer o posicionamento do outro a partir dele mesmo, e o Dostoiévski é um autor que faz isso profundamente. Para vocês terem uma ideia, Dostoiévski foi condenado à morte no fim da década de 1840, por fazer parte de um círculo socialista. A pena de morte foi revertida em longos anos de trabalho forçado. Dostoiévski ficou dez longos anos na Sibéria. Ele teve uma transmutação ideológica e passou a defender, pasmem, o mesmo regime, o mesmo monarca que o havia condenado à morte. Fica claro que as posições de Dostoiévski são contraditórias. Nós leitores ganhamos com isso porque ele pôde exprimir as posições ideológicas, filosóficas e existenciais para além da sua época, trazendo essa pluralidade. Isso Bakhtin chama de polifonia em Problemas da Poética em Dostoiévski, fazendo com que as personagens incorporassem ideias que muitas vezes se contradizem. O que serviu de modelo pra mim sempre, porque eu via vontade de libertação e consciência de classe, no caso dos operários que conviviam ali com meu pai. Mas também via vontade de poder, vontade de opressão, vontade de compartilhar do poder. O que eu estou dizendo é que nós encontramos balizas de contradição entre os movimentos e procuramos entender por quê. Com essa noção de mobilização do diálogo, com a noção de que, como autor-personagem, eu poderia ter uma experiência em confronto com o outro, mas fazendo com que o outro me afetasse com suas próprias ideias – foi isso que eu tentei exprimir. Nesse caso, é a baliza da expressão do que é a “russidade”, vou usar esse termo. O que é a russidade? Qual é o local específico da Rússia? Como a Rússia se estrutura como um país eurasiano, mas não é Ásia e nem Europa. Ela tem um local peculiar. Assim eu tentei me exprimir. Daí a importância da alteridade em questão.
OC: Como mencionado, você trouxe vozes de diferentes personagens e tentou exprimi-las de maneira igualitária. Estaríamos mesmo diante da polifonia dostoievskiana? Qual foi a importância dessa escolha para deixar a alma russa transpassar as páginas do livro?
Vassoler: Aqui temos muitos alunos e alunas da minha disciplina “Práticas de Leitura de Texto Literário” e de “Literatura Brasileira”, por isso, a resposta que eu vou dar é algo que eu tento exercitar em sala de aula. Eu venho falando sempre que vocês não podem ficar no curso de Letras sem fazer disciplinas da Filosofia, da Sociologia, da História. Vocês devem buscar essa pluralidade. No caso das vozes, eu poderia ficar até amanhã trazendo para vocês uma série de autores que vão entremear suas ficções com aforismos, com discussões abertamente filosóficas e existencialistas. Para vocês terem uma ideia, cito Guerra e Paz, esse grande épico de Tolstói sobre a invasão que a Rússia sofreu das tropas napoleônicas. Em determinado momento, Guerra e Paz já não é mais um romance escorreito com começo, meio e fim. Ele nem tem uma personagem cuja trajetória serve como espinha dorsal da narrativa. Porém, é interessante perceber que em determinado momento o narrador tolstoiano para a narrativa para fazer um ensaio do papel do indivíduo na história e, mais especificamente, na guerra. Thomas Mann, esse grande autor alemão, que escreveu, entre outros clássicos, A Montanha Mágica, cuja obra é totalmente transpassada pela figura da morte, vai trazer reflexões sobre a natureza do tempo em um ensaio belíssimo no meio do livro. Vou em busca de não trazer as minhas opiniões impostas às pessoas e às personagens com as quais eu dialoguei ou não, sendo elas fictícias ou reais. Nessa mescla de gêneros para compor a literatura, os diálogos vêm à tona para exprimir esse princípio de alteridade que está pulsando nos meus textos.
OC: Durante entrevista concedida à rádio CBN de Maringá, no último dia 20/06/19, você disse o seguinte: “Como autor-personagem, eu tentei me descentrar das minhas próprias posições pra trazer para o leitor essa alteridade da Rússia”. Primeiramente, como foi a construção do autor-personagem? Qual foi a importância dela na obra para mostrar ao leitor a alteridade russa?
Vassoler: Essa questão vem sendo contemplada pelas falas que eu venho trazendo aqui. Mas uma coisa que eu gostaria de marcar é que a Rússia é um país de formação cristã. A Rússia cristã ortodoxa vai se formar rechaçando os tártaro-mongóis. Quando vocês virem algum “russinho” com as maçãs do rosto salientes, principalmente as mulheres, que são muito bonitas, vão ver esse resquício tártaro-mongol no russo secular. A Rússia se forma com a base cristã ortodoxa por meio de uma igreja que nunca se separou do Estado. Ao mesmo tempo, tem a Rússia como um cadinho que traz o marxismo ocidental de raiz alemã e o socialismo utópico francês. Traz para formar esse país complexo de matiz ateia, cristã ortodoxa, com uma cultura própria cosmopolita e urbana em Moscou e São Petersburgo, sobretudo. Mas com uma tradição riquíssima do seu interior. Para vocês terem uma ideia, tem uma piada na Sibéria – eu estou falando de uma vasta região que comporta um sexto da superfície terrestre –, tem uma piada lá que diz o seguinte: “40 graus a baixo de zero, 40% de teor alcoólico e 40km não são nada”, porque estamos falando de milhares de quilômetros, de um frio que baixa a -60ºC, e eu não preciso falar da vodca russa (risos da plateia). Eu tentei trazer a linguagem poética com lirismo, essa linguagem do camponês, do interior, as variedades históricas das cidades, a policromia da experiência da ortodoxia. Essa perspectiva de alteridade russa não se dá apenas com os diálogos históricos e filosóficos com as personagens, mas também com essa experimentação, com várias narrativas, com a comida russa, com a bebida russa, com as superstições, e assim fui configurando um mosaico para que o leitor pudesse entrar em contato com essa experiência da alteridade. Eu só me descobri efetivamente brasileiro quando morei fora do Brasil. Por aqui, as coisas estavam naturalizadas. A forma como eu falava, como eu “xavecava”, como eu corria ou andava, tudo isso não parecia mediado pela minha cultura. Agora, quando eu fui viver em um país de cultura bem distinta, com mediações e contato entre as pessoas, homens e mulheres, amizades tão diferentes, eu tive que me ressocializar. Foi lá no lugar do outro, nessa posição de alteridade, foi no exterior que eu me vi aqui como se eu fosse um outro para mim mesmo. Foi essa experiência de ter morado fora do Brasil por um tempo – durante o mestrado, um ano na Rússia, depois, no doutorado e no pós-doutorado dois anos nos Estados Unidos –, sobretudo essas mediações de proximidade e distância, foi isso fez com que eu tivesse um olhar mais cuidadoso em decantar em mim mesmo essa vivência do que é o mundo.
OC: Percorrendo as páginas de seu livro, vemos que a memória é um elemento muito importante, não só para mostrar o contexto histórico a partir dos diversos monumentos encontrados nas cidades que o autor-personagem visita, mas também para dar voz a figuras históricas. Como o autor-personagem lida com a questão de reviver esses fatos, mostrando, de modo implícito, que a Rússia pode ser um Brasil gelado?
Vassoler: É irônico porque, desde muito novo, a gente ainda tinha aquela noção, aquele “esquemão” de lousa. Guerra Fria, bloco capitalista, bloco socialista. Desde pequeno, e, agora, vocês vão saber o porquê, eu não tinha muita simpatia pelos Estados Unidos. A ironia é que eu morei mais tempo lá do que na Rússia. Essa é a grande ironia. Essa é a grande contradição. Na orelha do livro, se vocês forem ler a orelha do livro, uma querida amiga, a Ieda Lebensztayn, que é uma grande estudiosa de Graciliano Ramos, fala sobre o fato de que a Rússia, nos seus sonhos e pesadelos, moldou o transcurso do século XX. O século XX é inescapável sem a Rússia. Você não consegue imaginar o transcurso do século XX sem a Rússia, naquilo que a Rússia sonhou, a expansão do horizonte histórico. Foi a utopia, a maior que a humanidade já sonhou, porque estamos, justamente, falando de uma orfandade dos projetos utópicos que alcançariam toda a esquerda, mas, também, todos os movimentos reformistas e ditos revolucionários depois do fim da União Soviética. Mas a União Soviética não foi apenas um sonho utópico. Ela foi, em enorme medida, composta por campos de trabalhos forçados, fuzilamentos, Estado policial, censura brutal que levou aos países de socialismo real experiências radicalmente contraditórias. Então, enquanto eu transitava do século XIX para o século XX, dialoguei com personagens históricas. Mas eu também tentei trazer aquilo que está acontecendo na Rússia de hoje. Vocês vão ver muitos diálogos sobre Vladímir Putin, que é o novo tsar da Rússia, um líder, que, provavelmente, só sairá do poder ou de morte morrida, ou de morte matada. E a Rússia tem uma história de transição de poder altamente traumática, de tal maneira que é interessante ver como Putin quer acabar com a cisão entre tsarismo e a União Soviética, porque a monarquia tsarista formava um império e ele não quer recuperar, oligarca que é, a noção de igualdade e de fraternidade da União Soviética. Ele quer recuperar os símbolos imperiais da União Soviética, de tal maneira que o império tsarista russo e a União Soviética culminem nele próprio e nos seus projetos de expansão. A Crimeia que o diga. Eu estava em Moscou quando houve a guerra da Geórgia (2008). Lá no Leste Europeu, os Estados Unidos vão financiando partidos de oposição, para que os países que compõem a antiga União Soviética se distanciem da Rússia. O que o Putin está fazendo agora na Venezuela é retribuir esse carinho dos Estados Unidos aí no seu quintal histórico. Então, eu tentei trazer esse transcurso histórico, em diálogo com essas personagens, trazendo pessoas, pessoas simples, não só estudiosos, que expressaram as suas opiniões, muitas vezes, como eu disse, contra as minhas próprias visões de autor-personagem, para exprimir esse mosaico.
OC: A partir do livro, o leitor também ressignifica a Rússia. Podemos sentir a alma russa em cada página lida. Trazer essa sensação ao leitor já era o seu intuito?
Vassoler: Essa discussão sobre “russidade”, essas questões que a gente está movimentando, podemos ver, por exemplo, na página 205. Neste texto “Maturidade do adulto: recuperar a seriedade da criança ao brincar”, temos esse belo aforismo do Nietzsche, que vai me perseguir pelo resto da vida, para vocês terem uma ideia do que o autor-personagem faz. Eu vou ao mercado central de Rostov-sobre-o-Don. E o que o autor-personagem faz em diálogo com as vendedoras daquele mercado? Eu cheguei lá a uma barraca. Uma senhora se aproximou de mim. Era uma senhora, e tinha uma moça mais jovem. Ela puxou a minha mão e falou: “Vem cá, eu vou te apresentar uma solteirona, e você vai se casar com ela agora”. Quando ela se aproximou, ela foi e tirou uma foto. Fez questão que eu tirasse uma foto com a mocinha. Ela chegou e apresentou um tipo de rabanete russo que tinha que ser partido ao meio para exprimir a noção de casamento. Eu só podia entrar em contato com esses tipos de costume me embrenhando com alteridade, ouvindo essas pessoas. É o tipo de coisa que a gente só vai conseguir, muitas vezes, decantar com esse assombramento cotidiano. E aí é importante trazer essa peripécia do repórter, que está em busca de algo, que está investigando, repórter-investigativo, que está aberto à alteridade. Na verdade, ele vai fazer a pergunta, mas ele vai fazer com que as experiências venham até ele. E isso, nessa baliza do escritor em busca de histórias ou estórias, foi muito propício. Esse é um texto extremamente lúdico em que as fronteiras entre poesia e prosa estão muito esfumaçadas. Eu estava no mercadão tendo uma experiência radicalmente sinestésica, de fusão de sentidos, com sabores, cheiros, de uma cultura radicalmente outra em relação à brasileira. Então, esse é mais um exemplo, diferente desses exemplos ideológicos e históricos, que o livro traz à tona.
OC: Podendo, portanto, compreender que no livro o narrador é um autor-personagem, como é construída a concepção de sujeito desta personagem? Principalmente no texto “Almas mortas: saudade”.
Vassoler: Esse texto tem o nome de um grande romance russo chamado Almas mortas, de Nikolai Gógol. Nesse romance tem um momento muito bonito, está na página 122 do “Diário”. Eu fiz questão de cotejar, de comparar esse trecho com uma experiência vivida no Brasil, país de modernização tardia como a Rússia. O Brasil só vai passar a ter uma população majoritariamente urbana na década de 1970. Meus pais, por exemplo, são testemunhas disso. Deixaram o campo, eram boias-frias, eram camponeses, eram agricultores, trabalhadores rurais, foram para a cidade. Meu pai de criação, aqui do Norte do Paraná, e minha mãe, do interior de São Paulo. Foram lá para São Bernardo do Campo. Naquele processo de estabelecimento das montadoras, das oportunidades. Esse é um paralelo importante para a gente comparar dois países de modernização tardia, de capitalismo periférico, como Rússia e Brasil. Na página 122, uma nostalgia bucólica do Gógol, que muitos de vocês, se moraram no “interiorzão”, como meus pais, vão lembrar. Vejam só o que ele já fala sobre o signo da cidade lá: “Assim que a cidade ficou para trás, logo se desenharam, de ambos os lados da estrada, as bagatelas a que estamos acostumados: morrinhos, bosques de abetos, arbustos baixotes de pinheiros jovens e raquíticos, troncos queimados de pinheiros velhos, matagal bravo e outros disparates semelhantes. Apareceram vilarejos que se estendiam como cadarços, construídos como se fossem antigos montes de lenha, cobertos por telhados cinzentos, abaixo dos quais havia ornatos de madeira entalhados nos beirais, que acabavam parecendo toalhas bordadas pendentes”. Vejam, portanto, que a gente tem uma ambientação da Rússia profunda, de uma Rússia da qual o Gógol ou o narrador gogoliano sente nostalgia, e eu pude, nesta alteridade, ver, agora, a similaridade, trazendo uma experiência minha. Lanço mão do trecho do Gógol como trampolim para, em matéria de memória, com essa névoa da memória, essa nuvem da memória, me aproximar de uma experiência que é a minha mesma. Não em primeira mão, porque eu nunca morei em uma cidade do interior, em uma cidade de vila rural. Já nasci na cidade, na urbanidade. Mas uma experiência que está totalmente imantada de afeto. Hoje, infelizmente, já perdi todos esses ancestrais que eu mencionei no texto. Quando eu me lembro deles, eu me lembro de algo corporificado, porque, para mim, a memória, muitas vezes, tem mais corpo do que o real tangível, pela saudade que eu sinto dos meus ancestrais. Essa aproximação também vem do retorno biológico, histórico, político, essa dialogia aberta, mas também, com essa aproximação da vivência, da experiência e da memória.
OC: No texto “Do Gulag siberiano ao iPhone, o arame farpado passa a cercear a imaginação” (p. 127), vemos modos diferentes de invadir a privacidade. Antes a polícia era o órgão maior que podia fazer isso. Tal situação fica clara com o Arquipélago Gulag. Hoje vemos que os meios digitais tomaram esse lugar de uma forma sutil e não por força como antigamente, mas por ferramentas que foram desenvolvidas para uso cotidiano, como o Kindle, seu exemplo no texto. Sabemos que a Rússia leva fama muito grande de ser um país que monitora seus cidadãos. Você queria explicitar uma espécie de sociedade de controle que não está só na Rússia, mas sim em todo mundo?
Vassoler: Ótima pergunta. Quando eu fui para a China, eu não conseguia acessar o Google e o Facebook. Por quê? Porque a China tem o Google próprio, e o Facebook próprio, e o Whatsapp próprio. “Ah, mas a China monitora os cidadãos!”. Ah, os Estados Unidos não fazem isso, não é? Ah, o Google é uma empresa privada. Vocês acreditam em Papai Noel? É dinheiro de imposto, de cidadão americano que está pagando, junto com o Pentágono. O Google faz tecnologia junto com o Pentágono, aquilo ali é altíssima tecnologia de espionagem. Preciso falar que a ex-presidenta brasileira foi espionada? Nós vamos começar a sentir saudade de Franz Kafka. Hoje, com esses meios digitais, é possível monitorar, vistoriar. Todos nós estamos em rede, tenhamos ou não celulares. Tudo aquilo sobre o que nós conversamos, porque, por algoritmos, são captados os conteúdos do que falamos. Se não as palavras, ao menos sua aproximação semântica e estatisticamente configurada trazendo os léxicos. É uma coisa impressionante. E vocês sabem que este celular aqui não pode ser desligado. Quem achar que isso aqui é desligado também acredita em coelhinho da Páscoa e assim por diante. O que é um gulag? O gulag é um sistema que o grande escritor Alexander Soljenítsin chamou de Arquipélago Gulag. Aliás, esse arquipélago é o nome de uma grande obra que ganhou o Nobel de Literatura em 1970. O Gulag era um complexo de campos de trabalhos forçados na União Soviética e, geralmente, ficava em locais inóspitos da Sibéria e do norte da Rússia, perto do Círculo Polar Ártico. O arquipélago gulag tem uma estrutura que muito me ajudou a pensar sobre como trazer os relatos para a literatura, porque é um livro composto por uma série de cartas, que foram sendo enviadas, e o autor tem a preocupação de documentar historicamente aquilo que aconteceu nesses campos. Vejam o trecho da página 129. Vocês vão entrando em contato com o caráter narrativo, lírico, lúdico do meu livro e, ao mesmo tempo, ensaístico: “Ademais, os ataques atuais à democracia mundo afora, aliados ao radical desenvolvimento tecnológico, nos permitem pensar que os organismos de espionagem e repressão da finada União Soviética já se tornaram anacrônicos” Essa privacidade, toda a noção de privacidade, de direitos humanos, vai se forjar em uma noção de privacidade do indivíduo em relação às instâncias de poder. É nessa liberdade do indivíduo com a noção de privacidade que se conforma o sujeito moderno, em contraposição ao arbítrio dos poderosos e da estrutura de Estado. E o que vai ser dito aqui no trecho? Eis o que nos diz o historiador israelense Yuval Noah Harari, autor de Homo Deus: Uma breve história do amanhã, obra que pode ser interpretada como uma versão atualíssima do Arquipélago Gulag: “Hoje, nos Estados Unidos, há mais gente lendo livros digitais do que impressos. Dispositivos como Kindle são capazes de coletar dados de seus usuários enquanto eles estão lendo o livro. O seu Kindle pode monitorar quais partes do livro você lê depressa ou devagar; em que página ou frase você abandonou a obra. Se o Kindle tiver um upgrade para reconhecimento facial e sensores biométricos, pode saber como cada frase influencia seu batimento cardíaco e sua pressão sanguínea. O que o faz rir, o que o deixa triste, o que lhe provoca raiva. Logo os livros estarão lendo você enquanto você os lê. E, considerando a possibilidade de você esquecer rapidamente a maior parte do que lê, o Kindle jamais esquecerá nada a seu respeito”. O Putin está querendo seguir o exemplo da China para não deixar determinadas páginas virtuais, de empresas norte-americanas, operarem na Rússia. Porque antes de atirar a primeira bala, disparar o primeiro míssil, um ataque cibernético pode fechar todas as centrais elétricas de um país, a guerra se dá de outra forma. É claro que o Putin e a China querem vistoriar os seus cidadãos, mas, aí, eu vou citar Barack Obama, ex-presidente dos Estados Unidos: “Nenhuma sociedade civilizada é cem por cento segura com cem por cento de privacidade”. Não foi o Xi Jinping da China que falou isso; não foi o Vladímir Putin que falou isso. Foi presidente de uma suposta democracia. Então chamo a privacidade de um fóssil a ser relegado a futuros arqueólogos.
OC: Henrique Canary, no posfácio do livro, afirma: “O que existe de especial na Rússia é exatamente sua condição única, o fato de ela não poder ser encaixada completamente nem no marco das civilizações ocidentais, nem tampouco pertence ao Oriente”. De certa forma, o seu livro não se encaixa completamente em um gênero literário específico. Essa também é mais uma relação com a Rússia? Isso o torna especial, justamente por ter uma condição única?
Vassoler: É importante notar que vocês [d´O Consoante] fizeram uma leitura da conformação em mosaico, em bricolagem de gêneros literários, ou a partir daquilo que eu vou chamar de um autor-personagem, percorrendo um interstício de tais gêneros e fundindo uma série de vozes para compor o livro. Vocês puderam perceber que, por meio dessa moldura: formal, a forma também se torna conteúdo. Ela também consegue decantar uma experiência de historicidade da Rússia, como eu estou tentando mostrar. Quando vocês depararem com as histórias e estórias, tentem fazer uma experiência de descentramento. Aliás, é uma coisa de que eu sempre falo. A experiência mais imediata com a leitura é ter aquela identificação mais direta com a personagem e rechaçar, muitas vezes, algum livro ou algum relato que não diga algo para nós. Ora, isso é muito narcísico. O interessante em uma experiência literária – neste caso, uma viagem – é que nós sejamos forçados a nos descentrar, de tal maneira que essa alteridade nos toque e nos faça viver, seja concretamente, seja imaginariamente. Eu nunca matei ninguém, é claro, mas existem homicídios neste livro e, aliás, nos meus outros livros também. Colocar-se no lugar do outro é uma possibilidade de ter uma empatia com esse outro que nos falta, profundamente, nessa sociedade contemporânea. Tem um grande pensador espanhol chamado José Ortega y Gasset, que tem um aforismo que também sintetiza muito a minha tentativa artístico-intelectual: “Eu sou eu e minhas circunstâncias”, ou seja, eu não sou idêntico a mim mesmo; dependendo daquilo pelo que eu passar, eu posso ver um Flávio, eu posso ver um Ricardo, eu posso ver um Vassoler com o qual eu não gostaria de lidar. Aliás, todo mundo aqui, se eu perguntasse, falaria sobre experiência desse tipo. Se eu pudesse fechar a porta da memória, talvez eu vedasse certas coisas eternamente. Justamente porque eu vi algo com o qual não gostaria de deparar, senti o cheiro da poeira vindo debaixo do tapete e já não pude deixar de senti-lo, e assim por diante. Essa perspectiva de alteridade, de alteridade com a cultura, com ideias, com a história, com uma percepção do alimento, das tradições que balizam o dia a dia, foi, sim, uma tentativa minha, como autor-personagem, de trazer os relatos, mas, ao mesmo tempo, faz com que esse livro seja uma caleidoscópio, um mosaico. A minha perspectiva é trabalhar com categorias de abertura, de diálogo, de alteridade. Isso é mais como artista. É claro que eu, como Flávio Ricardo, sou muito limitado, tenho as minhas dificuldades e limitações, mas, para mim, foi um tema da nossa conversa aqui pontuar que, por exemplo, eu sinto abjeção em relação ao fascismo e sinto ainda mais abjeção quando um fascista está governando o país – e ainda mais abjeção quando o fascista governa um país que é o meu, que é o nosso. Mas, como escritor, eu consigo me colocar no lugar dele, na pele do fascista, e consigo prismar o mundo, conceber o mundo a partir do ponto de vista dele. Se nós não formos nos matar – espero que isso não aconteça, é claro –, a perspectiva é de convivência, se não de convivência próxima, ao menos de convivência no mesmo seio social. Eu acho que poderia resumir nesse sentido.
OC: Fábio Altman, no prefácio de seu livro, afirma: “Nenhuma Copa do Mundo teria graça se fosse apenas futebol, ainda que pudéssemos grudar nas retinas apenas os lances geniais de Pelé, Cruyff e Maradona”. A Copa da Rússia já é passado. Por meio do seu livro, vimos e sentimos que não foi só futebol. Diário de um escritor na Rússia, de Flávio Ricardo Vassoler, foi o lance genial da Copa de 2018?
Vassoler: Vocês me deixam muito emocionado com esse elogio. Vejam só: tem um texto na página 223 – agora, sobre futebol. Vocês sabem que a seleção brasileira está uma porcaria. O interessante é que eu adoro futebol – eu sou corinthiano e sempre gostei das Copas do Mundo. Mas eu não fui contratado para cobrir futebol. Eu fui contratado para viver um sonho, foi o sonho de poder escrever. Todo escritor sonha em viver o tempo inteiro da sua literatura. Para vocês terem uma ideia, eu escrevi o último texto e o entreguei no dia 14 de julho, e ele foi publicado no dia 15 de julho. Eu não conseguia dormir. Eu tinha que ficar andando para gastar energia, porque eu vivi o mês inteiro atrás de histórias, em busca de relatos, de imagens, de tal maneira que o meu olhar, seja o olhar da imaginação, para dentro, seja o olhar para fora, ele estava completamente fundido com a estrutura da narratividade, do ensaísmo. Eu tive que fazer algo como um desmame, porque eu não conseguia me desvencilhar do olhar literário. Eu tinha acabado a minha jornada, mas eu passei por uma nova situação e pensei: “Tinha que ter trazido isso para o livro. Caramba, isso tinha que ter entrado”. Aí, eu continuava anotando. Então, essa perspectiva foi muito forte para mim. O único texto sobre futebol é este da página 223, o único texto que o Fábio Altman, justamente o meu editor, pediu para eu escrever: “Quando o cume prenuncia a vertigem da queda: Uruguai e Brasil; Napoleão, Hitler e Stálin”. Eu fiz uma comparação entre o psiquismo do cume e da queda em um campo de futebol com a trajetória do Hitler, do Stálin e do Napoleão. Eu fui mostrar como essas três figuras históricas, que vieram de baixo, justamente por terem vindo de baixo e por terem chegado ao topo, ao ápice das suas respectivas sociedades, um poder inimaginável, carregaram para subir os degraus todo o ressentimento de classe que, ao invés de trazer um complexo de inferioridade, alçava-os para ir além. Eu fiz uma comparação entre o campo de futebol e o aspecto histórico. Por isso, uma coisa que vocês vão notando com a minha fala, continuamente, é que eu estou sempre com um olho no peixe e outro no gato. O que é o peixe? É o ato aparentemente pequeno, breve ou mais longo, de uma situação mais peculiar, mais singular e assim por diante. Mas essa singularidade tem sempre uma relação metonímica, a parte está sempre visando ao todo, isto é, à dimensão histórica, filosófica, existencial. É importante que se tenha em mente a natureza do mosaico. Tem uma foto minha que foi tirada pelo fotógrafo da Veja, aqui na Catedral de Maringá, com aqueles vitrais muito bonitos atrás de mim. E aquele mosaico, muito bonito e multicolorido. A gente fica tão hipnotizado pela beleza daqueles mosaicos individuais que a gente perde, muitas vezes, a dimensão policromática do arco-íris, do mosaico como um todo. É isso que eu tentei fazer. Com o périplo nômade do autor-personagem, eu tentei singrar esses vários interstícios da Rússia em várias situações, de uso de energia nuclear, bomba atômica, Guerra Fria, Rússia nostálgica do século XIX, muita referência literária, União Soviética, sonhos e pesadelos, até chegar a essa Rússia oligárquica, autoritária, mas também que quer se inserir, de maneira altiva, sem ser vassala dos Estados Unidos, no século XXI. Eu tentei trazer essas várias perspectivas.
OC: Na era da reprodutibilidade técnica em que tudo é cópia e em que as coisas perdem o seu significado real, vemos que o seu livro destoa dessa realidade. Como você faz para que o seu processo criativo tome outro rumo?
Vassoler: Essa expressão da era da reprodutibilidade técnica é uma expressão que traz o tipo de um ensaio maravilhoso do Walter Benjamin. Nesse ensaio, ele vai falar de uma perda da experiência aurática, daquela experiência singularíssima, diante de um ícone artístico, religioso, que não tinha a possibilidade de ser reproduzido em outra situação e que ganhava uma experiência do místico porque nem a narratividade desse evento mesmo poderia transportá-lo para o relato, para uma ficção e assim por diante. É claro que vocês poderiam dizer que essa reprodução permite democratizar o acesso a bens culturais, ou seja, a obras às quais nós não teríamos acesso se não as víssemos como fotografias, pôsteres, nos livros e assim por diante. Mas, aqui, o pessoal d’ O Consoante está tentando falar sobre essa tentativa, também, de você fazer uma obra que tenha ambição, que é dialógica, que não tenta se curvar a uma perspectiva de fazer com que o nível do texto, da obra de arte, se rebaixe completamente e vire fator de consumo imediato. Durante a minha fala para vocês, eu mostrei aspectos de conformação da minha vida, da minha formação de classe, do meu psiquismo. Muito da minha liberdade é maior em termos literários, na imaginação, na construção do texto literário, do que propriamente em vida pelas coerções sociais, financeiras, políticas que vamos vivendo em sociedade, nesse tipo de sociedade, porque não é qualquer sociedade que vai oferecer essa mesma experiência tão horrorosa que vem acontecendo sobretudo nessa contemporaneidade. Mas, como escritor, eu tinha, justamente, essa possibilidade de me descentrar, de ter uma perspectiva de irradiar novos discursos. E o fazer literário é como uma imagem que prenuncia, ou que deveria prenunciar, uma sociedade reconciliada. Está difícil imaginar uma sociedade melhor que essa. As possibilidades de imaginar, de vivenciar, ao menos na literatura, pelo menos na arte, na ficção, algo melhor do que a gente vive em sociedade é aquilo que me anima a propor uma leitura que faça com que o leitor e a leitora não se conformem, que busquem as referências. O meu livro é como se eu estivesse fazendo uma barricada, é algo meio pitoresco, mas é o sentido da minha vida. Vejam que contradição: as mídias sociais que critico são instrumentos por excelência, o instrumento que permite que haja um público orbitando ao redor da minha obra. Essa contradição não é minha, trata-se de uma contradição objetiva. Então, trata-se da minha tentativa de me contrapor a esse processo de mediocrização, de banalização. Eu espero que vocês sejam desafiados, que vocês busquem se colocar no meu lugar ou no lugar das personagens para vocês terem essa vivência da qual a gente foi falando nesta entrevista-aula em diálogo com o Diário de um escritor na Rússia.