por Daniela Schüroff e Vitória Floriano

 

           Violência, humilhação e constrangimento: são palavras que vêm a nossa mente assim que pensamos nos trotes universitários. Tal realidade vem mudando aos poucos, por meio das ações solidárias, porém ainda persiste. Não é novidade que durante todo o ensino médio, e, muitas vezes, durante o cursinho, há uma preparação muito intensa para ingressar em uma universidade. Tal fato gera muita expectativa, a qual muitas vezes é quebrada no primeiro dia letivo como aluno da graduação: a recepção dos calouros.

             Ao retornarmos no tempo, percebemos que essa prática não é recente. As cerimônias de recepção aos calouros surgiram na Europa, durante a Idade Média. Era uma forma de manter o campus livre de doenças, por isso seus cabelos eram raspados e roupas queimadas. Esse ritual veio para o Brasil com os portugueses e acontece desde o surgimentos das primeiras universidades. Diante disso, são mais de 600 anos de história e inúmeras formas inseridas no ambiente acadêmico.

            Uma coisa é certa: os trotes têm um caráter de integração entre os estudantes. No entanto, o que ocorre é que, por ser algo considerado culturalmente natural, acabam sendo banalizados dentro de alguns cursos, resultando em violências e humilhações. Assim, os calouros acabam se sujeitando ou por pressão ou apenas para tentar se enquadrar em um espaço social.

              Em 2019, o ano letivo na UEM começou com ações dos veteranos de formas distintas. De um lado, houve notícias se referindo ações violentas cometidos no campus de Umuarama, como o ato vexatório que os calouros sofreram ao serem alvos de lavagem (comida de porco), a qual foi arremessada pelos veteranos. O trote causou muitos inconvenientes, levando os estudantes a passarem mal devido ao forte odor. No entanto, com uma visão bastante distinta da primeira, alunos do curso Design e de Moda do campus de Cianorte fizeram, por iniciatia própria, como nos relata Alessandro Rocha, professor do Departamento de Pedagogia do campus, um trote solidário com o nome “Bicho de rua”, que visou arrecadar ração e instalar, em locais públicos, comedouros e bebedouros para cães. Rocha enfatiza que “a motivação consciente de não fazer uma recepção humilhante, e sim uma ação que fosse solidária partiu dos próprios alunos’’. Ainda destaca o agradecimento da Prefeitura não só pela arrecadação dos mantimentos para os cães e gatos, como também a adoção de alguns desses animais.

             “Na UEM, o trote tinha desaparecido. Aos poucos foi voltando, com aquela conversa de que é tradição, de que é festa, de que o calouro gosta. Bobagem! O calouro “gosta” porque não tem alternativa, não sabe o que é uma recepção amigável. Houve muita conivência com isso. Já presenciei, aqui na UEM, verdadeiros atos de selvageria, grosseria e estupidez, violências e humilhações, desde pequenas até outras bem mais graves”, afirma o professor do Departamento de Ciências Sociais da UEM, Pedro Jorge de Freitas, docente há mais de 30 anos na instituição.

             Essa imposição aos calouros é refletida na organização da sociedade atual. Para Freitas, o veterano que aplica o trote, que pinta, que suja, que humilha um calouro não está comemorando a chegada de um novo colega. Está, apenas, com essa roupagem de comemoração, pondo para fora suas frustrações, os elementos doentios de sua personalidade, seu egoísmo, suas fraquezas. Com esses atos, ele consegue se auto afirmar em cima de colegas que, naquele momento, estão vulneráveis. Essa vulnerabilidade se dá pelo fato de muitos calouros serem inexperientes, de outras cidades, e precisando de uma recepção digna, amiga, parceira. Precisam ser acolhidos, começar a gostar desta instituição. E defrontam-se com essas agressões quase sem nenhum mecanismo de defesa, o que pode resultar, muitas vezes, na evasão universitária.

             Relatos sobre torturas vividas durante o trote não são incomuns e difíceis de serem encontrados. Foi justamente o que aconteceu com uma aluna de Design de moda que, sem poder se defender, viu seu cabelo sendo tingido por uma tinta usada para pintura de móveis. “Nunca havia pintado meu cabelo e, em consequência desse descuido, tive que pintar para conseguir esconder a tinta que tinham jogado em mim’’, relembra a estudante, frisando o quão chateada ficou. A discente ainda afirma que isso não foi algo que a machucou fisicamente, mas seu lado sentimental foi abalado por se tratar de algo que faz parte dela.

           Outro estudante que participou do trote de Agronomia, em 2015, lembra-se do fato de serem atingidos por Lepecid (medicamento de uso animal para o tratamento de ectoparasitas e larvicidas). Outra situação ocorrida durante a festa de recepção foi a imposição dos veteranos obrigando os calouros a comerem cebola crua, a qual foi mordida por outros estudantes. “Tinha até uma garrafa de bebida alcoólica com um pênis de borracha no bico. Eles obrigavam as meninas a tomarem aquilo e tiravam fotos da situação”.

        Felizmente, para um aluno de psicologia, sua experiência foi diferente. Houve a sensação de acolhimento por parte dos veteranos e “foi bem respeitoso tanto na questão das brincadeiras quanto na ausência de pressão para que os calouros fossem participar do trote’’. No entanto, essa visão mais empática dos veteranos de alguns cursos não é a mesma para todos, o que faz a sociedade também depreender alguns conceitos prévios sobre tal prática, pois, segundo o relato do estudante, quando os alunos foram pedir dinheiro em um semáforo da cidade, um motorista chegou a dizer que o trote era fraco e que os veteranos deveriam “caprichar’’ mais. Para ele, esses alunos que sofrem trotes violentos, na maioria vezes, se sujeitam à humilhação a fim de evitar julgamento social, por serem coagidos a isso. Além disso, também sentem medo de não fazer amizade com quem irá compor a sala de aula e com os veteranos, que são os que já conhecem a universidade e todo o seu funcionamento e têm o desejo de perpetuar a hierarquia acadêmica. O pensamento de muitos que participam desse rito de passagem é que “No próximo ano podemos nos vingar”.

                Diante de todo o caos gerado, sabe-se que muitos casos continuam impunes. Em relação a isso, Freitas ressalta a imagem negativa dessas ações que é atribuída, erroneamente, às universidades. São os alunos que organizam os trotes, os quais, muitas vezes, acontecem fora do espaço acadêmico. “A impunidade começa quase sempre na aprovação no vestibular. As escolas sujam, pintam e cortam o cabelo de seus alunos aprovados e colocam o nome da UEM para fazer propaganda, ou seja, usam indevidamente o nome, a imagem da Universidade, uma prática condenável, realizada com objetivo de fazer marketing, ganhar dinheiro. A UEM deveria proibi-los de usar sua imagem e, se for o caso, processá-los. Depois, alunos que organizam trotes violentos (isso é um pleonasmo), dentro e fora da UEM, pelo mesmo motivo, deveriam sofrer sanções de acordo com a gravidade do gesto. Claro que é necessário conversar, esclarecer, fazer campanha educativa contra o trote. E informar que sanções serão aplicadas. Mas, é necessário agir com rigor com os recalcitrantes. Punir atos de violência gratuita, proteger nossos novos alunos, não é autoritarismo. É, antes, um ato pedagógico, civilizatório, para formar pessoas melhores.”, frisa o professor Pedro Jorge, do mesmo modo que Alessandro Rocha alerta sobre a necessidade de desenvolver, nos alunos, uma visão social por meio do trote, para que eles tenham, justamente, uma visão mais humanista. Fazer com que o aluno não se subordine de forma humilhante ao chegar à universidade.

            Assim, diante de todas as inconveniências sofridas  por calouros durante várias décadas, desde a criação da instituição, a UEM começou a  implementar soluções para reverter esse problema. Uma delas é o disque denúncia para relatar trotes violentos e abusivos, com o número de telefone 0800-643-4278. Outra medida adotada foi, em parceria com o Diretório Central dos Estudantes (DCE), a produção de um vídeo, divulgado em rede social, para deixar claro aos calouros que não precisam se sujeitar aos trotes violentos. Ricardo Dias, vice reitor da Universidade, ressalta: ‘’a UEM não admite atos de violência, seja durante os trotes ou em qualquer outra ocasião. No caso de alguma ocorrência, a instituição tem mecanismos para acolher as denúncias e regulamentação que dá suporte tanto ao processo de investigação como para punição, podendo levar, no caso de discentes envolvidos, ao desligamento do aluno da instituição’’.

            Para evitar ações vexatórias e, ainda, fomentar iniciativas mais humanitárias dos veteranos que aplicam os trotes no começo do ano letivo, a Universidade realiza o concurso Trote Solidário, que premia as melhores iniciativas para tal prática. O primeiro lugar no concurso recebe R$ 1,5 mil, o segundo lugar, R$ 1 mil, o terceiro, R$ 700,00, o quarto, R$ 500, e o quinto, R$ 300. O prêmio precisa ser usado no prazo de seis meses na aquisição de material didático para o curso, aluguel de ônibus para visitas técnicas ou confecção de camisetas e bolsas, entre outros.

           “Temos visto que esta visão do passado tem perdido força e cada dia mais os trotes solidários proliferam. São ações organizadas pelos veteranos de intervenções em demandas da sociedade local com grande apelo social. Ações como reformas em entidades que atendem crianças e adolescentes carentes, campanhas de arrecadação de alimentos, incentivo à adoção de animais que, em alguns cursos, se tornaram tradição e se repetem há mais de uma década’’, destaca o professor e vice-reitor da UEM.

              Alguns cursos, como Letras, Psicologia e Filosofia, realizaram, neste ano, trotes mais humanitários, com integração discente mais efetiva, mostrando que há possibilidade de se divertir e criar laços dentro dos cursos sem precisar humilhar, coagir e tornar o outro vulnerável, mostrando que alguns cursos já estão tomando consciência desses atos e mudando suas posturas para que seja extinta a noção de que a recepção dos novos alunos tenha de ser, obrigatoriamente, algo desagradável. “Enquanto professor de universidade pública, temos que ser exemplo para a sociedade, da mesma forma que os alunos do campus de Cianorte alcançaram esse ideal, pois todos da mídia local verificaram o quanto a UEM, enquanto campus em Cianorte, está comprometida com essa causa’’, conclui o professor Alessandro Rocha.

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