“A ideia dos multiletramentos aparece e é difundida no Brasil por vários professores de algumas instituições brasileiras. O termo “multiletramentos” é sempre no plural; não existe “multiletramento”. A ideia de letramento passou por uma mudança a partir da discussão e reflexão de muitos autores. A ideia de letramento no singular foi tornada “letramentos” porque as pessoas começaram a pensar de determinada maneira na questão dos letramentos que têm mais prestígio e outros que não têm, nos âmbitos e nas agências de letramento.”
Ana Elisa Ribeiro é professora do CEFET-MG, atuando no Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, na graduação em Letras e no Ensino Médio Integrado. Mestre em Estudos Linguísticos e Doutora em Linguística Aplicada pela UFMG, Ana Elisa é bacharel e licenciada em Letras pela mesma universidade. Seus livros mais recentes são Multimodalidade, Textos e Tecnologias (Parábola, 2021), Como nasce uma editora (Entretantas, 2023/Universidad Autónoma Metropolitana, México, 2024) e Linguística aplicada – ensino de português (Contexto, 2023). Além da carreira acadêmico-científica, Ana Elisa Ribeiro é autora de obras literárias e trabalha com edição de livros. Em 11/11/2024, o O Consoante promoveu uma entrevista-aula com Ana Elisa Ribeiro, intitulada Leitura, produção de textos e modos semióticos, diálogo que propiciou importantes reflexões em torno dos conceitos “multiletramentos” e “multimodalidade” e do trabalho com leitura e produção de textos na escola. A entrevista-aula foi planejada e executada, nas diferentes etapas, pelos alunos do 3º ano do curso de Letras-Português, da Universidade Estadual de Maringá, na disciplina “Linguística Aplicada ao ensino de língua materna”.
por Bárbara Mondego, Edivaine Porto, Eduarda Lincoln, Emilly da Silva, Filipi Silva, Gabrielly Araújo, Isabely Dias, Lorraine Costa, Maria Clara Poppi, Rafaela Oliveira, Renata Beatriz Vieira (alunos do 3º ano Português-Única), Jocieli Pardinho (doutoranda-PLE) e Neil Franco (DTL/PLE-UEM)
O Consoante: Em artigo publicado em 2014, com o título “Letramento na contemporaneidade”, a professora Angela Kleiman, uma das pioneiras dos estudos do letramento no Brasil, promove relevante reflexão sobre as práticas de letramento no contexto contemporâneo. Ela pondera que a contemporaneidade não tem a ver só com o que é tecnológico ou mais funcional para o aluno. E conclui: “A contemporaneidade diz respeito à flexibilidade e ao respeito pela cultura do outro para garantir a inserção tranquila do aluno nos novos modos de fazer sentido via escrita na sociedade tecnológica em que imagem e texto escrito imperam” (Kleiman, 2014, p. 82-83). A partir dessa ponderação, como instituir na escola práticas que podem ser transformadas para promover uma educação inclusiva e crítica, que atenda às demandas da sociedade digital e às necessidades de comunidades com acesso limitado à tecnologia?
Ana Elisa Ribeiro: A tecnologia digital está nas mãos de todos, ou da maioria, geralmente, sem qualquer sistematização. Estou pensando aqui no celular, por exemplo. Vocês sabem que no Brasil tem mais celular do que pessoas. O número de aparelhos é maior do que a população. Assim, esse equipamento está distribuído pela sociedade. O que ele faz com a gente? O conhecimento para usar esse equipamento criticamente não está tão distribuído assim. A gente precisa de um poder que é simbólico. A pessoa até tem o equipamento, baixa o software de graça, mas leva golpe, é enganada por fake news todo dia. Tem algo que as pessoas precisam sistematizar e aprender que ainda nos escapa. Sabemos que os bilionários dessas coisas são muito bilionários. É uma concentração econômica absurda, uma concentração econômica estranhíssima, uma concentração de poder também muito estranha, e nós ficamos ali meio marionetes nisso tudo. E junto com todo mundo, nossos alunos, nossos pais e nós mesmos. Tento pensar em qual é o papel que a escola poderia ter nesse cenário complexo. A escola vem sendo demandada, exigida e pressionada, mas não tem dado conta de resolver muita coisa. Estou afirmando isso pelo seguinte: há pelo menos 20 anos está escrito em vários documentos que o professor tem de dominar tecnologias digitais. O documento oficial do MEC de formação de professores é de 2001 e lá já estava escrito que a gente tinha de ter formação para tecnologias. Só assim, vago. Mas não temos as ferramentas para isso. Isso não aconteceu de um jeito massivo, de um jeito organizado, sistematizado. Conheço um cara que é professor não sei de onde, que fez mestrado, que fez um negócio legal na sala dele. Sim, mas são situações isoladas até hoje, mesmo depois da pandemia. A gente chega na aula ou na escola com muita ideia digital, e o povo olha meio atravessado para nós. São os doidinhos da escola, os nerds da escola. Portanto, é difícil conseguir sistematizar coisas, decidir coisas. Depois da pandemia, teve uns rebotes estranhos também. Por exemplo, estamos vendo uma lei para proibir o celular. Nos estados já havia algumas e agora é lei federal. É estranho você pensar que vai ser proibido. Eu não sei como é que isso pode ser solução para alguma coisa. Me parece mais fugir do que solucionar. E não sei como é que faço também, quem é que vai fiscalizar? Porque quando você inventa uma regra dessa, tem de ter alguém para olhar se está, se não está, o que é para fazer. Eu não gostaria, porque o celular dos meus alunos é muito útil para mim, na minha sala de aula, bem útil mesmo. Toda hora eu falo “Procurem aí tal coisa”. Ele é um assistente nosso. Eu acho que eu vou ser multada junto com eles, na hora que esse negócio acontecer. O que seriam práticas? Estou perguntando sobre a pergunta? O que seriam as práticas que levariam as gerações, e aí estou falando todas, porque elas convivem. Nós convivemos, os professores, os alunos, as pessoas jovens, as pessoas velhas, a lidar de maneira crítica com ambientes e recursos digitais. E quem não tem? Como é que faz? Quem não tem o quê? É outra pergunta. Porque celular a pessoa tem, mas o que que ela não tem que está nesse rol, nesse imaginário de recursos que a gente tem e não consegue muito dizer o que são. Mas, enfim, celular tem, mas o que está ali, por exemplo, em termos de software? O que seria um currículo digital relevante, importante, escolarizável? Por exemplo, tenho colegas que estudam games, gamificação. Para eles é muito importante essa coisa da gamificação. Eu não gosto de jogos, nunca fui muito de jogo a vida inteira, não tenho jogo no meu celular. Para mim, isso não é importante, não é uma coisa que eu faria. Tem essas questões que são os balanceamentos das coisas. O que é importante, o que não é, quem está dizendo que é importante, o que eu selecionaria como ferramenta, como recurso, seja lá a palavra que for. É uma coisa que nós precisamos decidir coletivamente, se a gente for pensar que isso é uma coisa grande para todo mundo. Mas que a gente acaba fazendo meio individualmente, no âmbito da sua sala de aula, ou talvez no âmbito da escola, localmente. Quando nos referimos a tecnologias digitais, o que exatamente estamos considerando? Que arsenal é esse? Coloco aspas em “arsenal” porque é uma metáfora ruim, é uma metáfora bélica, de guerra, mas é um pouco essa ideia do conjunto de coisas com as quais vamos lutar. Eu gostaria de devolver a pergunta pedindo para fazerem uma lista de coisas que vocês acham que são importantes, porque elas são, é uma lista gigantesca. Se a gente fizesse uma lista colaborativa, o que eu acho que a sala de aula de português tem de ter? Computador, Internet, em termos infraestruturais. Mas o que eu vou ensinar de leitura e produção de texto que tem relação com tecnologia digital e que hoje seria, vamos dizer, fundamental? Tem de usar o Padlet. Por quê? Ensino o quê com o Padlet? Ele não é o fim, ele é o meio. Ele não é a finalidade, ele é o que estou querendo ensinar usando isso. A gente tem de pensar o que produz um efeito interessante sendo usado como meio para a minha missão. A minha missão é ensinar a ler e escrever melhor. Não é ensinar informática. A minha não é. Mas a informática é um meio para eu fazer isso, em muitos casos. Mas com o que que eu trabalho? Outra coisa: esse arsenal muda todo dia. Uma coisa acaba, outra aparece. E aí você sempre fica com essa angústia de que está ficando para trás, de que está desatualizado. Eu estou um pouco relax com a minha desatualização porque não dá para acompanhar tudo, todo dia, o tempo todo. A pressão agora é Inteligência Artificial, todo mundo sabe disso. A gente fica se sentindo meio burro. “Nossa, eu não sei como é que esse negócio funciona, vou ter que usar, como é que eu vou ter que usar?”. Acho que precisamos de uma calma reflexiva para ver essas coisas, ver como é que elas podem ser usadas de um jeito interessante, que produza um efeito que tem a ver com nossa missão, na nossa disciplina. É que às vezes me dá a impressão de que essas coisas são um pouco atabalhoadas. Você tem de mostrar serviço, não sabe direito para que e como. Por exemplo, uma pergunta que sempre me faço: “O que o aluno aprendeu é uma consequência da tecnologia utilizada ou ele aprenderia de qualquer maneira, mesmo se fosse no papel?” Entendem? Porque se a resposta for que ele aprenderia de qualquer jeito, a tecnologia está ali apenas para dar um “upzinho”, por assim dizer. Seria uma coisa meio “grife”. Afinal, as pessoas que não têm acesso a essas tecnologias precisam se virar para aprender. Aliás, até pouco tempo atrás não havia nada disso. Ainda assim, aprendíamos a ler e a escrever — e bem, inclusive. Acabamos fazendo algumas trocas que considero estranhas e sobre as quais precisamos refletir. Para que serve essa tecnologia? Qual intervenção ela realmente faz no meu modo de ensinar e no modo de o aluno aprender? Porque precisa ser útil para ambos. No entanto, nem sempre é assim. Há situações em que eu ensino melhor usando uma tecnologia, e há outras em que o aluno aprende melhor porque utilizei aquela ferramenta. Isso não significa, necessariamente, que o processo é mais fácil para mim. Por exemplo, considero um uso muito interessante da tecnologia quando ela evita repetições. Vou dar um exemplo: professores que não precisam mais copiar a mesma coisa no quadro dez vezes. Antes dos anos 1990, o professor precisava chegar à sala e escrever tudo novamente, muitas vezes, ao longo do dia. Isso, inclusive, provocava a famosa LER [lesão por esforço repetitivo], que acometia muitos professores. Disciplinas como Física e Biologia eram ainda mais exigentes nesse aspecto, pois os docentes não apenas escreviam, mas também desenhavam muito. Naquela época, faziam-se muitos esforços para que o conteúdo ficasse visualmente compreensível. Hoje, esses profissionais se beneficiam muito com tecnologias que permitem levar os materiais num pendrive ou na nuvem. Basta projetar o conteúdo em sala de aula, sem precisar repetir o mesmo trabalho. Consigo projetar um texto ou qualquer material que automatize o que antes eu precisava fazer manualmente. Já vejo um ganho muito interessante. Economizamos tempo e energia. Se o projetor, o computador ou os cabos funcionarem corretamente — o que sabemos que nem sempre ocorre —, ganhamos um tempo valioso. Em vez de perder cinquenta minutos copiando, dedicamos apenas dez para colocar o material e utilizamos o restante para discussões e atividades. A qualidade do tempo de aula melhora significativamente. Esse é um ganho tecnológico pouco mencionado. É como se tivéssemos de usar a tecnologia apenas para colocar o aluno para trabalhar, mas ela também impacta diretamente nossas condições de trabalho. Ela elimina a repetição, torna nosso trabalho mais eficiente e, em alguns casos, pode até melhorar o aprendizado do aluno. Contudo, precisamos avaliar até que ponto essas ferramentas resolvem nossos problemas ou criam novos. Sabemos que não resolvem tudo. Uma questão é resolvida, mas outras surgem, devido ao novo modo de fazer as coisas. Por isso, gostaria de sugerir uma reflexão sobre “tecnodiversidade”, conceito proposto pelo filósofo chinês Yuk Hui. Há um livro traduzido para o português chamado Tecnodiversidade, no qual ele discute as chamadas cosmotécnicas, ou seja, formas diversas de técnicas e tecnologias para realizar algo. Hui defende a manutenção dessas diversidades técnicas, pois culturas dominantes tendem a impor seus métodos como os únicos ou os melhores. Essa homogeneização acaba apagando outras formas de conhecimento e prática, o que pode ser prejudicial para a evolução cultural e técnica. Trazendo isso para a sala de aula, podemos pensar em um ambiente “tecnodiverso”, onde diferentes tecnologias, antigas e novas, convivem e se complementam. Precisamos lembrar que a velha aula com giz também era uma tecnologia. Em um país como o nosso, essa diversidade é uma questão de sobrevivência. Não podemos esperar que todas as escolas tenham acesso às tecnologias mais avançadas para ensinar conteúdos complexos; precisamos nos virar com o que temos. Como diz o ditado popular: “Quem não tem cão, caça com gato”. Portanto, questiono: o que comportaria uma curadoria tecnológica e digital que levasse a bons resultados sociais? Esse conceito de resultados sociais é trazido pelo New London Group no texto sobre multiletramentos. Eles questionavam se a aula que davam, nos anos 1980 e 1990, produzia resultados sociais significativos. Em outras palavras, o que os alunos fazem com aquilo que aprendem? A reflexão é válida. Como ensinar de maneira que o aluno saia mais preparado para o mundo, especialmente em termos de comunicação? Na BNCC, encontramos algumas listas de conteúdos e habilidades tecnológicas que o professor deve abordar. Contudo, considero essas listas perigosas, pois a tecnologia fica rapidamente obsoleta. Por exemplo, se ensinássemos Orkut como ferramenta obrigatória, hoje isso não faria sentido. É preferível buscar abordagens mais genéricas, como ensinar a dinâmica de produção e leitura de textos nas redes sociais, sem nomear plataformas específicas. Além disso, precisamos lidar com a desigualdade. Enquanto eu sou uma professora privilegiada, atuando em uma escola de uma capital relativamente bem estruturada, outros colegas estão em regiões com pouquíssimos recursos tecnológicos. A mesma lista de habilidades pode representar um desafio muito maior para eles. Como instituir práticas que garantam uma educação inclusiva e crítica? Não tenho uma resposta pronta, mas acredito que precisamos refletir coletivamente. Quais são as demandas da sociedade digital e o que, de fato, é nossa missão como professores de língua materna? O que posso ensinar para desenvolver habilidades de leitura e escrita, mesmo em contextos limitados? Por fim, volto ao conceito de tecnodiversidade. Muitas habilidades são desenvolvidas independentemente do meio utilizado. Por exemplo, a capacidade de localizar informações explícitas em um texto pode ser trabalhada em livros, jornais ou folhetos. Não precisamos depender exclusivamente do digital. Por isso, precisamos ser professores flexíveis e criativos. Minha sala de aula mesmo tem um projetor no teto e Internet que funciona quando quer. Não posso depender dela. Preciso ser esperta e me adaptar às condições que tenho, buscando sempre cumprir minha missão. Retomando o ditado: “Quem não tem cão, caça com gato”. E, no meu caso, meu gato é muito poderoso. Eu estava apenas refletindo que, aqui, nesta sala onde estamos, a situação é realmente diferenciada. Talvez, nesta sala, consigamos estar no século XXI. Esta sala, de fato, está muito bem equipada. No entanto, as demais talvez estejam competindo com as de vocês em termos de recursos. É exatamente essa a questão. Talvez, na minha instituição, exista apenas uma sala no padrão do século XXI. Todos acabam disputando o uso dela, enquanto as outras salas permanecem no mesmo esquema de sempre.
OC: No segundo tópico do seu artigo “Multiletramentos e Multimodalidade: Vozes e Ideias em Trânsito no Brasil”, você discorre sobre a abordagem em relação a esses dois termos ao longo de 25 anos, no caso, multiletramentos e multimodalidade. Em uma das passagens do texto, você faz a seguinte afirmação: “Foram 25 anos para que os multiletramentos fossem entrando seriamente no debate educacional brasileiro, mas serão tantos anos mais para que essas noções sejam bem compreendidas e façam diferença em nossos efetivos modos de aprender e ensinar linguagens e suas tecnologias” (Ribeiro, 2023, p. 48). Com base nesta afirmação, os multiletramentos e as multimodalidades devem ser tratados ou definidos como conceitos teóricos, práticas pedagógicas ou aspectos que envolvem diferentes modos de linguagem no processo educacional?
AER: Esses textos estão todos ou quase todos disponíveis livremente. Esse é de um livro disponível na Internet. Esses 25 anos se referem ao fato de que eu estava, na época, comentando justamente o “Manifesto da Pedagogia dos Multiletramentos”, publicado em 1996, e a reunião que os autores fizeram em 1994. Uma coisa que temos de nos perguntar é: como essas coisas chegam ao Brasil? De onde vêm? Geralmente, esse trânsito tem a ver com o trânsito das pessoas que vão para fora, conhecem certas coisas e trazem para cá, porque elas são influenciadas por essas experiências. E, às vezes, vinga; às vezes, não. Dependendo de onde você está, do tamanho do seu privilégio e da instituição em que você trabalha. Tem determinadas instituições que somam poderes. Exemplo: a pessoa fala uma coisa e todo mundo copia. Isso tem a ver com o poder assimétrico, mal distribuído etc. Isso também acontece em termos de bibliografia, de quem você lê e de quem você cita, sempre reproduzido na vida acadêmica. A ideia dos multiletramentos aparece e é difundida no Brasil por vários professores de algumas instituições brasileiras. O termo “multiletramentos” é sempre no plural; não existe “multiletramento”. A ideia de letramento passou por uma mudança a partir da discussão e reflexão de muitos autores. A ideia de letramento no singular foi tornada “letramentos” porque as pessoas começaram a pensar de determinada maneira na questão dos letramentos que têm mais prestígio e outros que não têm, nos âmbitos e nas agências de letramento etc. Já a noção de multiletramentos não, porque ela é um construto que tem um horário de nascimento, é nesse texto do New London Group. Dessa forma, não existe “multiletramento”. Já multimodalidade não é “as multimodalidades”; multimodalidade é porque se consideram os modos semióticos diferentes na produção de sentido. Estão dizendo que toda vez que você lê um texto, tudo o que está nele ajuda a produzir sentido. Quando você escolhe ou recorta um modo semiótico, vai ser parcial. Tanto a sua leitura vai ser parcial quanto sua produção vai ser parcial. Parece óbvio hoje dizer isso, mas os linguistas sempre separaram a parte verbal do restante. Na linguística, é muito comum dizer: “Isso aí é extratextual, extralinguístico”. Algo que não é da nossa alçada, pois está sendo trabalhado só com palavras, frases, parágrafos, texto no sentido de palavras. O que esses autores dizem? Gunther Kress e Theo Van Leeuwen, entre outros, defendem que o texto é tudo que compõe seu sentido, transcendendo as palavras. Embora pareça simples, essa compreensão levou tempo para se tornar amplamente reconhecida. Ela aumenta significativamente a complexidade do nosso trabalho, pois, além de entender palavras, frases e vírgulas, é preciso considerar cores, texturas, diagramações e hierarquizações visuais. Isso complica o processo, mas torna-o mais interessante para ler, compreender e produzir. Você precisa adotar outra mentalidade ao ler e escrever. Com ferramentas intuitivas disponíveis, qualquer pessoa pode criar conteúdo. É o caso de alunos que produzem trabalhos no celular ou no Canva. É preciso saber utilizar essas ferramentas eficazmente, pensando além das palavras. Outra coisa interessante: a ideia de multimodalidade não nasceu com os multiletramentos. A abordagem multimodal já existia na Semiótica Social. Nos multiletramentos, ela se torna um eixo central, permitindo olhar os textos sob uma perspectiva mais ampla. Por exemplo, ao realizar um mestrado, doutorado ou TCC, usar a noção de multiletramentos significa adotar uma visão multimodal dos textos. Um fato interessante é que em uma pesquisa de bibliologia, os manuscritos estavam fazendo o estudo de um povo originário mexicano mostrando o uso da letra capitular, aquela que inicia os capítulos de livros. Eles se perguntaram qual era a função exercida por ela. Outra coisa que eles discutem: por que alguns trechos eram escritos com uma letra diferente? E chegaram à conclusão de que isso era feito para que o olho pudesse separar informações, o que a teoria chama de framing, o enquadramento do texto. Portanto, a multimodalidade é muito antiga, não tem a ver só com a tecnologia. Ademais, a multimodalidade também pode ser uma prática pedagógica na medida em que esse conhecimento é convertido em atuações em sala de aula. Por exemplo: eu digo que sou muito multimodal, mas se na sala de aula eu faço o oposto disso, torna-se uma prática convencional. Kress usa uma expressão que é “poder semiótico”: quanto mais modalidades você conhece e domina, mais poder semiótico você tem, você faz uma escolha consciente. O nosso problema é não conhecer muitas formas de produção. O Enem, por exemplo, é muito restrito. O aluno não conhece outros gêneros, outras formas de produção, e a escola salienta isso. Não é uma afronta ao Enem. Eu desejo que a prática melhore. Desse modo, pode ser uma prática pedagógica a partir do momento em que você quebra com o uso exclusivo da tradição, o estudo exclusivo da palavra e com a gramática normativa. Por exemplo, estamos trabalhando nos anos finais do Ensino Fundamental ou no Ensino Médio e vamos produzir uma peça que será publicada nos stories das redes sociais da escola sobre um evento que acontecerá. O story é um gênero textual que exige planejamento e pode apresentar música. Como todos sabem, é necessário selecionar a nota musical para escolher uma música para o vídeo. Isso é uma intenção. Outro dia visitei uma escola onde gravei um vídeo mostrando o tamanho da sala e a quantidade de alunos presentes durante uma apresentação. Esses alunos realizaram um teatro em que tocava determinada música. Perguntei qual era a música, e eles alegremente me responderam que era do Bruno Mars. Guardei essa informação e, ao publicar o vídeo gravado, utilizei a música escolhida pelos meninos. Logo notaram a canção e me enviaram uma mensagem elogiando a escolha. Informei que foi escolhida pelos alunos. Essa situação não foi aleatória, pois as músicas foram pensadas para compor aquela peça. Os multiletramentos têm uma relação com os letramentos no manifesto [do New London Group], mas não rompem com essa ideia. Somos tributários das pessoas que pensaram na questão dos letramentos, mas acreditamos que o mundo está em constante mudança e que não podemos continuar dando aula do mesmo jeito. Dizem que não pode ser mais o letramento alfabético. Vamos enfrentar novos desafios, pois estão chegando novas mídias que alteram os gêneros textuais e suas formas de circulação. Nos anos 1990, surgiu o conceito de “multiletramentos”, que não rompe com o letramento tradicional, mas o suplementa. A multimodalidade, um dos pilares dos multiletramentos, é uma abordagem que considera os textos, a linguagem, a leitura e a produção utilizando uma metalinguagem daquela teoria. Por exemplo, termos como “enquadramento” e “saliência” são empregados. Até não concordo com a tradução “saliência”, prefiro utilizar “realce”, mesmo que ninguém tenha utilizado essa tradução. Não temos tradução dessa teoria no Brasil, temos somente pessoas falando sobre o assunto, por isso ficamos dependentes das pequenas traduções realizadas. O termo “saliência” é engraçado, pois o pessoal do Nordeste considera um outro sentido da palavra. Não existe em português uma metalinguagem homogênea com que todos concordem, mas em inglês existe a metalinguagem que criaram para esse arcabouço que é olhar para os textos numa abordagem multimodal. Isso mostra a sua aderência a uma teoria e a um certo construto teórico, desde que você tenha entendido. Às vezes, acreditamos que estamos seguindo as ideias de Bakhtin, mas, na hora de dar uma aula acabamos seguindo outro embasamento teórico. Quando os construtos teóricos aparecem, eles servem como modelos que explicam, propõem e organizam o universo de textos e suas possibilidades. Pode ser uma prática pedagógica, na medida em que você passa a pensar e executar a sua aula com base na proposição teórica em que você acredita. Coloco “acredita” entre aspas porque, na ciência, o termo pode soar inadequado. Ainda assim, em certa medida, acreditamos nas teorias de que gostamos e que assumimos. Você acredita naquilo que está explicando, o que não quer dizer que você não discuta a teoria e que não possa questioná-la e desafiá-la. É importante que façamos isso. A teoria parece explicar corretamente essas concepções e nos leva a deixar de abordar da maneira que pareça pouco eficaz ou passa a provocar condições de aprendizagem guiadas pelas concepções que assumimos. Como abordar um texto em sala de aula? Como seria uma abordagem “multimodalista” ou “multiletrada”? A multimodalidade está nos multiletramentos. Como ler e produzir textos sob uma abordagem multiletrada? Quais textos selecionar? A consideração dos diferentes modos de linguagem e as considerações dos alunos estão justamente na adesão a essa abordagem.
OC: Considerando que a Base Nacional Comum Curricular (2018) incorpora os conceitos de multimodalidade e multiletramentos, como você avalia o desafio da aplicabilidade dessas noções para a prática pedagógica especialmente no contexto da análise de textos, levando em conta o cenário de desigualdade no acesso às mídias digitais? Quais estratégias poderiam ser adotadas para garantir que essas teorias sejam aplicadas de maneira inclusiva nas salas de aula para a formação de leitores mais críticos e conscientes no âmbito escolar?
AER: Acho que está tudo misturado, tem vários pontos. Sempre vejo uma importante preocupação nas perguntas de vocês, especialmente com o cenário de desigualdade, sempre considerando a questão brasileira. Em termos de BNCC, o documento foi feito por grupos de um jeito superlongo, e as ideias de multiletramentos e multimodalidade aparecem o tempo todo. Essas noções transformam, e não podemos escapar disso. É o documento mais importante em vigor. Quando o lemos, precisamos entender o que estão querendo. De certa forma, aquilo foi eleito como o modo de entender. O que o Brasil quer? O Brasil assinou isso. O Brasil está considerando que o jeito de formar as pessoas é via multiletramentos. Nos livros da Roxane Rojo, há várias obras que são coletâneas de práticas, com capítulos dedicados a práticas multiletradas. Elas ajudam a gente a entender como é que podemos fazer isso. A BNCC, no entanto, é um caso sério. A palavra “multimodalidade” aparece, mas não é explicada e não tem referência. A palavra “multiletramentos” também aparece, mas igualmente não está explicada, nem há referência bibliográfica. Há uma nota de rodapé que explica muito mal o que é. Precisamos correr atrás disso. É claro que isso tem a ver com a nossa época, com as mudanças nas concepções e nos movimentos políticos, que também mudam. Na análise de textos, e também na sua produção, sempre temos de analisar com graus diferentes de complexidade e dificuldade. Quando o aluno chega ao final do ensino médio, precisa dar conta de certas coisas que um menino de 12 ou 13 anos não consegue. A produção de texto também deveria se tornar mais complexa, mais encorpada, com uma desenvoltura melhor. Sabemos que está escrito que a escola não pode se esquivar da produção de textos complexos e sabemos que lemos muito mais do que escrevemos. Às vezes, eu pego uma turma e descubro que produziram apenas dois textos no ano anterior. Ninguém aprende a escrever produzindo dois textos por ano. Isso seria um milagre. E eu não faço milagres, nunca disse que fazia. Por outro lado, o professor tem de fazer milagre quando tem 400 alunos. Ele precisa orientar a escrever toda semana e ainda comentar os textos. Isso é inviável e todo mundo sabe disso. Em termos de produção de texto e ensino de escrita, estamos em uma situação muito complicada, porque não temos condições de trabalho. É também um projeto de emburrecimento. Ninguém sabe escrever. Eu acho isso uma tristeza. Num cenário de desigualdade, como vocês têm mencionado nas perguntas, considerando o contexto de acesso às mídias digitais ou a qualquer outra coisa, inclusive na escrita, a situação é complicada. Não se trata apenas de tecnologia digital, mas de acesso, afinal, tem relação com outros textos que podem ser analisados e produzidos. Vivíamos sem tecnologias digitais até outro dia, e vou falar de novo sobre a adversidade técnica. Como isso é importante! Precisamos improvisar, se for necessário, porque certas habilidades não dependem de telas. Alguém pode escrever bem em qualquer lugar. Isso não significa que devemos abrir mão de lutar pelas tecnologias mais atuais. Não dá para parar e ficar trinta anos esperando as coisas acontecerem. O cenário de desigualdade extrapola as questões da escola e precisa ser resolvido com urgência, hoje, amanhã, todo dia. Todos sabemos disso. Mas, na escola, precisamos fazer o que está ao nosso alcance e tentar alcançar o que não está. Isso, às vezes, leva uma carreira inteira. Tenho mais de 25 anos de carreira e tem coisas que espero até hoje. Se eu tivesse parado, não teria feito nada. Nem todo mundo concorda com essas concepções e conceitos de multiletramentos e multimodalidade. A questão é que hoje eles são inescapáveis. Dessa forma, precisamos, no mínimo, entender o que são e avaliar se essas abordagens trazem resultados sociais interessantes e não apenas resultados imediatos, mas algo que as pessoas levem para a vida. Formar leitores críticos sempre foi o objetivo da escola, ou será que não? Eu acho que sim, mas o que temos feito? O quanto isso é crítico? Hoje, parece que temos ainda mais urgência. Será que vivemos em um ambiente mais complexo e mais ameaçador em que saber ler melhor é ainda mais importante? A comunicação ficou mais complexa, com muito mais textos e gêneros em circulação. Para mim, isso é muito claro: a quantidade de informações que recebemos, produzimos e lemos o dia inteiro nos enreda o tempo todo. E o que fazemos com isso? Será que o professor de Português não tem relação com isso? Falar “professor de Português” parece até antigo. Na verdade, somos professores de linguagem, de leitura, de escrita. Por outro lado, a escola não consegue, e nem vai conseguir, absorver e resolver tudo. Todo mundo já sabe que a escola não é a salvadora da pátria, embora pareça, muitas vezes, que todos colocam essa pressão sobre ela. É engraçado como todo mundo tem uma ideia do que a escola dever ensinar. Por exemplo, você vê um banqueiro discutindo mercado financeiro, e o que ele diz no final da conversa? “Ah, a escola tinha que ter uma disciplina de educação financeira.” Todo mundo acha que a escola deveria ter uma matéria sobre aquilo que considera importante. É como se a escola fosse uma junção de tudo que as pessoas, muitas vezes de fora dela e que nem fazem nada por ela, acham que ela deveria resolver e ensinar. Por isso, precisamos ser muito firmes com essas questões. É necessário escolher, fazer uma curadoria, uma seleção, pensar no que é mais relevante dentro da condição em que trabalhamos. O que é mais importante? Se eu não tiver determinado recurso, como vou resolver? Em termos de aumentar a criticidade e a consciência das pessoas, considero isso um dos nossos eixos fundamentais no ensino. Acho que precisamos fazer isso tomando consciência de todas essas coisas e refletindo sobre o conjunto de possibilidades que temos no nosso contexto concreto. Como posso alcançar resultados melhores com o que está ao meu alcance? Aquela história do multimodal. Não existe texto monomodal ou unimodal, certo? O pessoal perguntou isso, e já que estou falando tanto de multimodalidade, queria explicar o seguinte: os modos semióticos, ou seja, diferentes formas de significação: palavra, imagem, som, entre outros, todas essas coisas estão “orquestradas”. Estas são palavras que os autores usam: orquestrar, orquestração. Esses modos semióticos estão organizados como em uma orquestra. Não sei se todo mundo já teve a oportunidade de ver uma orquestra tocando. Quem teve, ótimo; quem não teve, vai no YouTube ou em qualquer lugar possível. Quem não tem cão, caça com gato, mas veja uma orquestra tocando. Uma orquestra não toca cada um do jeito que quer; isso não é uma orquestra. Aliás, nem uma banda faz isso. Tem um regente, e cada instrumento tem um papel, um momento certo, coordenado. É isso que eles estão dizendo quando usam essa metáfora. Foi o Theo Van Leeuwen, que é músico, quem trouxe essa ideia. É importante lembrar que o texto é orquestrado. Tudo tem seu lugar, você escolhe: agora entra a flauta; agora entra a guitarra (estou mencionando guitarra porque tem uma orquestra que é de rock, certo?); agora entra o violoncelo. Em alguns momentos, a música é mais acelerada; em outros, mais lenta, mais suave ou mais agressiva. Existe uma organização nisso, e o mesmo vale para os textos e para os modos semióticos, especialmente quando olhamos de forma multimodal. Então o que são esses modos? Como passamos a enxergá-los e a considerá-los? Isso exige estudos para analisarmos os textos e descobrirmos onde estão as multimodalidades neles. Quando alguém não entende direito o que é um modo semiótico, acaba focando apenas nas palavras, porque é com o que sabe lidar. E o que fazemos com o resto? Temos de aprender. Precisamos entender que há escolhas ali que podem não ser óbvias para nós, mas que para um designer, por exemplo, são claras. O designer aprende a olhar outros aspectos: a distribuição na página, os espaços em branco, a hierarquização. Ele observa coisas que nós, acostumados só com o texto verbal, muitas vezes deixamos passar. Quando falo de “parte visual” não é só sobre fotos ou desenhos. Passamos a considerar que todos os modos contribuem para a produção de sentidos. Se é assim, tanto para ler quanto para escrever, precisamos atuar sobre eles, não apenas sobre as palavras. Isso implica que temos de aprender mais do que o alfabeto. Já em 1990, estudiosos apontavam que a palavra é apenas um elemento do modo verbal, mas não é o único a produzir sentido em um texto – e nem sempre é o principal. Segundo essa visão, todo texto é multimodal. Essa é uma afirmação de autores como Gunther Kress, que defendem que todos os textos são construídos e sustentados por mais de um modo semiótico. Um exemplo disso é o estudo de capitulares nos textos antigos, que mostra como materiais, espaços, textura e outros elementos também fazem parte da produção de sentido. É por isso que duvido que se possa apresentar um texto verdadeiramente monomodal. Mesmo que um texto esteja mal planejado ou mal orquestrado, sempre haverá outros modos semióticos compondo a mensagem. Quem trabalha com edição, como eu, percebe isso facilmente. Por exemplo, na produção de um livro infantil ilustrado, não há como dizer que ele não contém uma série de camadas pensadas e articuladas, todas compondo o texto. Nesse sentido, é importante considerar o que os designers “escrevem”, ou seja, como eles contribuem para o texto de forma multimodal. Claro, existem outras maneiras de olhar e teorias diferentes. Pode-se optar por focar apenas no texto verbal, mas isso não significa que está alinhado com a ideia de multiletramentos ou com a perspectiva multimodalista. Nesse caso, se estará olhando de forma seletiva e parcial, priorizando apenas um dos modos semióticos. A linguística tradicional sempre fez isto: olhou mais para as palavras. Já o designer, o artista visual faz o oposto, focando em outros aspectos. Ainda assim, tudo isso é possível de se aprender. Podemos e devemos aprender a identificar os modos semióticos em qualquer texto, seja lendo, escrevendo ou pedindo para alguém escrever. Isso nos permite ampliar nossa visão e atuar sobre todas as camadas que compõem um texto multimodal.
OC: No capítulo “Um caso com jeito de sugestão”, presente no seu livro Textos multimodais, leitura e produção, você apresenta diferentes compreensões pautadas em autores distintos para os conceitos “Retextualização e reescrita” e sugere uma atividade que pode ser aplicada no currículo escolar. Na sua opinião, quais são os principais desafios ao retextualizar um texto para diferentes modalidades de linguagem e como a utilização desses diferentes modos (imagens, textos, som) impactam na produção textual e na relação de proximidade entre o público-alvo e o autor?
AER: Adoro o processo de retextualizar e reescrever, acho que é o exercício número um que nós deveríamos fazer, porque exige muito da pessoa que está retextualizando e reescrevendo. Esse processo também ajuda a desmistificar a falácia de que a escrita é um dom divino, que surge em sua cabeça e sai pelos dedos, o que intimida muita gente. A escrita não é isso, nem para os profissionais. Mesmo os escritores famosos, jornalistas, ou outros profissionais da escrita, têm de fazer versões de seus textos. Eles são lidos e muitas vezes solicitados a refazer, e isso se torna um processo comum. Então temos de entender que a escrita é processual, recursiva e depende da interação com outros. Retextualizar é diferente de reescrever. Digo isso pensando em alguns autores que escreveram muito sobre esse tema, como Maria de Lourdes Matencio, Luiz Antônio Marcuschi, Regina Dell’lsola. Esses autores explicam muito bem o que é a retextualização, em especial a mudança do propósito comunicativo. Por exemplo, meu propósito comunicativo com essa fala é um e, quando ela for retextualizada, o propósito será ligeiramente outro, mas a mudança vai acontecer principalmente no modo semiótico. Minha fala, que conta com meus gestos, meu tom, minha voz e vários recursos multimodais acontecendo, quando for transformada em texto escrito, vai se tornar uma outra coisa, com outros recursos modais, vai haver a extração de uma fala que será transformada em escrita. Provavelmente vão ser eliminados traços de oralidade e repetições, também serão feitas algumas modificações, e talvez não seja possível alterar demais as minhas palavras para não modificar o que eu disse, porque isso é grave na retextualização. Já a reescrita fica dentro do mesmo modo semiótico, ou seja, o processo de um texto escrito transformado em outro texto escrito. A retextualização, não. Nela é possível mudar até mesmo o modo semiótico, como transformar um discurso falado em um texto escrito, diferentemente da reescrita, que se restringe ao texto escrito. Tudo isso é muito legal, um exercício satisfatório e trabalhoso, delicado. Tem de haver sensibilidade para ser feito, além de muita negociação. Não é um processo mágico. Desse modo, na retextualização, os modos semióticos são levados em consideração, além do propósito comunicativo, que é o eixo principal dessa reversão. Eu chamei de “reversão” pensando que é uma re-versão, uma versão que trabalhada gera outra versão e assim ela vai se revertendo de uma modo para outro. É importante também conhecer o texto de partida e principalmente o de chegada, pois é preciso saber para que gênero você está fazendo essa reversão. Podemos fazer uma analogia com a tradução. Jakobson fala em tradução intralingual, quando você traduz dentro da mesma língua, e não de uma língua para outra. Ou seja, é preciso saber o que vai ser mudado de uma forma para outra, que terá outra configuração. No mínimo, você precisa conhecer esses dois universos, assim você ou seu coletivo precisa pensar o que vai ser revertido, se isso tem relação com os mesmos ou com outros modos semióticos.
OC: Em um dos capítulos do seu livro Escrever, hoje: palavra, imagem e tecnologias digitais, especificamente na seção intitulada “Da redação”, você aponta que, partindo do pressuposto de que existem mudanças com relação à produção de gêneros na sociedade atual, há problemáticas em formas de avaliação estagnadas e limitantes, como no caso do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Desse modo, você tece uma crítica à prova de redação do ENEM, que prioriza um formato limitado de produção textual. Você chega a apontar que é preciso atualizar os meios de avaliação que explorem gêneros multimodais e mais criativos, a fim de abarcar o novo ser social que este momento histórico de tecnologias está gerando. Dessa forma, podemos afirmar que a escola não está preparando adequadamente os alunos para o mundo digital e multimodal? É preciso repensar como a escola lida com esses gêneros?
AER: Vocês já pararam para pensar se é possível fazer uma redação multimodal no Enem? Considerando o tamanho do exame, é muito complicado implementar algo assim. Mas isso não significa que não possamos refletir sobre o impacto que a redação atual tem para a educação. O Enem tem um poder enorme: o que ele propõe, as escolas correm para aplicar. Isso cria uma pressão enorme para quem está na sala de aula, especialmente no ensino de leitura e escrita. A minha crítica à redação do Enem é justamente esta: eu gostaria que a escola pudesse fazer mais efetivamente pelas pessoas, em termos de desenvoltura com a escrita. A redação atual com uma fórmula não é suficiente. Pelo contrário, ela produz resultados engraçados, como alunos utilizando palavras ou expressões que nem compreendem totalmente, criando textos mecânicos e padronizados. Hoje, até ferramentas como o ChatGPT conseguem replicar esses textos com qualidade semelhante ou até superior. Isso é preocupante, porque não é esse o objetivo de uma formação ampla em escrita. O meu sonho é que a redação do Enem fosse apenas um detalhe na vida acadêmica dos estudantes, que eles tivessem desenvoltura para muitas outras coisas. Porém, a realidade é que muitos alunos não chegam a ter essa desenvoltura nem para realizar o Enem, chegando a sentir medo de fazer a prova. A redação do Enem, hoje em dia, atende mais às necessidades logísticas, como corrigir milhões de textos, do que aos objetivos educacionais. Isso é lamentável, porque limita o impacto positivo que a escola poderia ter no desenvolvimento textual. O gênero textual exigido pelo Enem é uma criação artificial, que não existe fora do exame. É uma fórmula, um algoritmo, que os alunos aprendem, muitas vezes, apenas para passar na prova. Embora seja possível ensiná-la, ela não tem relevância social ampla, especialmente considerando os multiletramentos que poderiam ser trabalhados na escola. Como professora que gosta de escrever, sei o poder que isso tem e lamento muito por não poder fazer mais, pois também me sinto presa por uma série de coisas que são maiores que eu. Adoro ensinar escrita e reconheço a importância do Exame, mas o formato do terceiro ano do ensino médio me frustra. Sinto que traio meus próprios princípios quando tenho de priorizar o treinamento para a redação do Enem em detrimento de outras práticas de escrita. Tento diversificar as atividades, mas isso é difícil dentro da pressão institucional. As escolas, às vezes, tornam a redação do Enem o objetivo principal, infelizmente, chegando a fazer propagandas com isso. E eu acho terrível para o nosso futuro. O Enem serve para avaliar o que tem sido aprendido ao longo da escolarização, porém, na verdade, o Exame acaba criando fórmulas que a gente se vê obrigada a ensinar em sala de aula. No caso da escrita, não acredito que seja benéfico. A escrita é uma ferramenta usada por qualquer pessoa, independentemente da profissão escolhida. Até meu pai, que é médico aposentado, observou como hoje os médicos produzem mais textos do que interagem diretamente com os pacientes, porque precisam redigir laudos e relatórios. Isso mostra a importância de desenvolver competências textuais funcionais, o que vai muito além do modelo imposto pelo Enem. Uma vez, uma colega argumentou que o Enem não pode mudar muito porque isso aumentaria as desigualdades, já que nem todos os professores e escolas conseguiriam lidar com propostas mais complexas. Eu gostaria de ensinar muito mais, explorar a multimodalidade, por exemplo, que é algo inerente aos textos. No Enem, a leitura até explora a multimodalidade, com gráficos, infográficos e tirinhas, nos textos motivadores. Contudo, na produção escrita, ela não é trabalhada. Ou seja, a multimodalidade sempre esteve na escola, mas ainda há uma lacuna na abordagem para desenvolvê-la. E, a meu ver, a gente pode mudar isso, respeitando os limites do Exame, até porque essa avaliação é a coisa mais importante que acontece ao final da Educação Básica.
OC: Em seu artigo “Educação em Tecnologias Digitais na Pandemia: Ciclos da Precariedade”, conseguimos, por meio dos questionamentos realizados, reconhecer a precariedade da infraestrutura escolar que dificulta o acesso e a utilização das tecnologias digitais, limitando a eficácia das práticas pedagógicas. Em sua compreensão, quais mudanças na formação do docente seriam necessárias para preparar de forma adequada os educadores para o uso de tecnologias digitais?
AER: Estamos falando da formação de professores. Como mencionei anteriormente, o documento do MEC, que está em vigor desde 2001, já abordava essa questão. Logo, deveria ter ocorrido uma mudança, já que as graduações, por exemplo, passaram por muitas transformações e os Projetos Pedagógicos de Curso (PPCs) são reformulados com certa frequência. Sabemos que os cursos de Letras estão em constante atualização, mas a efetivação dessas mudanças é difícil. Isso depende de diversos fatores, como o corpo docente, as formações dos professores, as teorias que eles adotam, entre outros. Não é uma questão simples; o processo é muito disperso. As escolas, de modo geral, são precárias em muitos aspectos. Em alguns casos, elas acabam se assemelhando a ambientes de controle, com outras funções que são importantes para o funcionamento social. Quando a pandemia chegou, desencadeou uma série de problemas que muitas vezes não consideramos. Quem ensina em áreas periféricas ou comunidades vulneráveis enfrenta desafios que nós, que lecionamos em áreas mais centrais, talvez não percebamos imediatamente. Por exemplo, a escola é muitas vezes o único local onde as crianças têm acesso a uma refeição. Isso não é uma preocupação para as escolas de áreas mais centrais, mas para muitas crianças, a escola representa o momento em que elas podem comer. Quando as escolas foram fechadas, essas crianças ficaram sem alimentação. Além disso, outro impacto grave foi a questão dos pais precisando deixar os filhos em algum lugar. A escola, muitas vezes, é esse lugar. É uma espécie de “creche” ao longo da vida. Durante a pandemia, muitos pais precisaram sair para trabalhar, enquanto seus filhos menores ficaram em casa. Com isso, o home office se tornou inviável para muitas pessoas, especialmente para as mulheres. Estudos demonstram que as mulheres tiveram mais dificuldade em fazer home office, pois há uma percepção de que as mães e esposas podem ser interrompidas com mais facilidade. Ainda hoje, vivo essa experiência em minha própria casa. Quando estou falando com vocês, há sempre alguém entrando, achando que estou disponível, sem entender que estou em aula. Para isso, precisei colocar uma plaquinha que diz “Favor não interromper, estou em aula”. Essa falta de controle é algo com que tivemos de lidar intensamente durante a pandemia. A escola, então, resolve muitos problemas, para além do ensino de conteúdos. Para muitos, o ensino de uma matéria específica acaba se tornando secundário. Isso ficou muito claro na pandemia, quando as precariedades ficaram mais visíveis. Outro ponto que me vem à mente diz respeito à formação docente. Quantas redes escolares realmente permitem que o professor busque aprimoramento? Sabemos que muitas delas não permitem, algumas proíbem explicitamente, como no caso de quem deseja fazer um mestrado. Outras permitem, mas com a condição de que o docente abandone seu salário, uma maneira velada de não permitir, o que acaba precarizando ainda mais as condições de trabalho. Em relação ao ensino de leitura e escrita em um ambiente semiótico e tecnológico complexo, como é o caso da nossa sociedade, as condições são precárias, mesmo quando as escolas são bem estruturadas. Um exemplo disso são as escolas privadas mais tradicionais, que, embora pareçam ter mais recursos, muitas vezes não oferecem as condições ideais para um ensino transformador. Elas podem estar trabalhando com teorias antiquadas, abordagens rígidas e pouco generosas, que falam sobre diversidade nas suas propagandas, mas não aplicam isso de fato nas relações internas da escola, entre professores, alunos e colegas. Essas escolas podem ser acolhedoras e afetuosas, mas isso não garante que promovam uma abordagem de leitura e escrita de forma ampla e desenvolta. Esse é um desejo dos professores, mas não conseguimos implementar isso sozinhos. Existe uma necessidade de coletividade e políticas públicas mais robustas para que as coisas mudem. A formação docente, em relação à tecnologia digital, vem sendo discutida desde 2001, mas até hoje não houve uma solução definitiva para o problema. Embora saibamos que algo precisa ser feito, as propostas são difusas e inespecíficas. Não sabemos exatamente o que é necessário aprender, o que deve ser implementado nas escolas. Por exemplo, chegaram os computadores e as escolas receberam tablets. Todos se lembram da promessa do tablet, mas ele não “pegou”. A questão é: o que fazer com o tablet? Para utilizá-lo de forma eficaz, o professor precisa estudar, aprender com outras experiências e saber como aplicá-lo no processo pedagógico. Caso contrário, o tablet não servirá para nada, exceto para gerar propaganda de que a escola tem tecnologia. A chegada do equipamento não resolve o problema. O que se faz com ele é o que realmente importa. Além disso, as próprias tecnologias digitais estão em constante transformação, o que torna o processo de aprendizagem ainda mais desafiador. O que aprendemos hoje pode estar desatualizado amanhã, e estamos sempre correndo atrás, tentando acompanhar a evolução, sem conseguir alcançar a excelência plena. Creio que as mudanças necessárias para a formação docente passam pelas condições de trabalho. Não se trata apenas de implementar a tecnodiversidade, mas de garantir que os professores tenham condições ao menos próximas do ideal para ensinar. O objetivo deve ser melhorar a leitura e a escrita dos alunos. Para isso, a melhor condição que um professor pode ter não é necessariamente o acesso a mais equipamentos, mas sim o tempo. O professor de língua portuguesa precisa de tempo: tempo para ler, para refletir, para comentar o que os alunos produzem. Não se trata de corrigir, mas de comentar, de ser um interlocutor do aluno. Se isso não acontecer, não adianta ter tablets ou outros equipamentos. O tempo e a capacidade de interação são fundamentais para que o ensino de leitura e escrita seja verdadeiramente eficaz.
OC: João Wanderlei Geraldi, em artigo publicado pela revista Bakhtiniana, em 2014, intitulado “A produção dos diferentes letramentos”, afirma que o conceito de letramento é “muito difícil de ser especificado” e “epistemologicamente problemático”, num claro questionamento ao conceito na modernidade. Essa reflexão proposta por Geraldi nos permite depreender que está havendo uma espécie de banalização do conceito de letramento? Qual a sua compreensão desse questionamento feito por Geraldi?
AER: Acho que ele tem razão, como tem razão todo mundo que disser assim “olha esse conceito, definição tem seus limites”. É difícil, pois quem opera com essa noção precisa explicar, objetivar, desenhar e redesenhar toda hora. Há a propagação de novos letramentos, por exemplo, letramento digital, literário, acadêmico, visual, entre outros afins, que dificultam a compreensão. Os próprios autores estrangeiros que propuseram isso faziam críticas a essa adjetivação excessiva e à banalização dessa noção. Contudo, é preciso questionar: o que colocamos no lugar? Porque, ao se tirar algo, pode-se desorganizar o ambiente novamente. Geraldi nos convida justamente a ver os limites da coisa, de como podemos operar com ela de forma mais eficaz, precisa e produtiva. Essa noção é muito relevante e tem de ser publicada em muitos outros lugares. Ela tem nuances, por exemplo, em um primeiro momento, em Angela Kleiman e em Magda Soares. Vocês perceberão que elas propõem definições sutilmente diferentes, trabalham de maneira diversa. Cabe ainda ressaltar que essas questões também são disputadas. Os autores se provocam, discordam, entram em disputas teóricas, que nos convidam a refletir para ampliar o escopo do que se pode fazer na escola. Há o rompimento da questão de ser apenas “alfabetização”, a “letra”, e isso faz ampliarmos nossa visão, sendo mais inclusivos e democráticos do que a ideia de alfabetização anterior ou um recorte de que existe “certo” versus “errado”. Nesse sentido, o letramento é tido como processo, considerando-se as práticas sociais. Por isso, é importante estudar muito e ler autores, saber bem o que eles escrevem, pois às vezes eles nem se citam, não falam um do outro, mas vemos que estão dialogando, observando se há a banalização, porque, particularmente, acredito que ocorra, justamente nos adjetivos, distorções. É importante ver de onde vem. Quando alguém muito poderoso diz algo, ele ou ela tem o poder de que pessoas leiam; uma pessoa menos poderosa pode até falar algo mais interessante, mas ninguém lê. Ilustro essa afirmação com a história do travesseiro de pena: depois que o jogamos para cima, juntar as penas é muito difícil. Por isso, é necessário propor a leitura de diversos autores, se questionando sobre seus limites e visões.
OC: Em entrevista concedida ao O Consoante, em outubro de 2020, a professora Márcia Mendonça da Unicamp coloca em evidencia o problema do sucateamento, da precarização da escola, na hipótese de certa manutenção do ensino via recursos tecnológicos. Por exemplo, no Estado do Paraná passamos a conviver com o que vem sendo chamado de “plataformização” do ensino quando o termo parece adquirir, nesse caso, uma valoração negativa. Que avaliação você faz da implantação de um ensino por essas plataformas?
Ana Elisa Ribeiro: Plataformização, o estudo de plataformas, já uma área em estudo no mundo. Há uma crítica a isso, pois lembra uberização, precarização do trabalho, uma série de maneiras modernas de escravizar. Inclusive, trata-se de um campo e pode-se buscar bibliografias sobre ele para compreendermos de que forma a educação se relaciona aí. O termo plataformização é sempre negativo nos estudos de comunicação também. Em relação a se ter um material pronto para baixar, eu não chamaria de plataformização, considerando que o controle de usar o material não produzido pelo docente é antigo. Talvez, hoje, esteja mais agressivo, porque chega de uma forma mais fácil e vigiada, pois tudo o que acessa deixa rastro. Décadas atrás, seu “rastro” não era visto e hoje a vigilância é infinitamente maior. O professor que não abriu, que não usou, não viu, é encontrado, perseguido. É um problema da atualidade. Essa questão de o material vir pronto e o professor só repetir é antiga. Existem pessoas que criticam o livro didático por algo parecido e outras que gostam dele por outras razões e importâncias que ele tem. Nesse caso, o que eu chamo de plataformização é o fato de se estar dentro de um ambiente digital controladíssimo, vigiadíssimo, mesmo que não pareça, havendo relações com o capitalismo, a precarização do trabalho, problema mundial, não só nosso, pois imitamos outros lugares. A escola é tida como um lugar relativamente fácil para a plataformização. Não nos preparamos em termos de formação de professores, desde 2001, e estamos vulneráveis nessa relação de poder. Quem tem poder é o outro, que chega apenas com a conta e senha e diz “faça”. Ficamos inocentes nesse ponto. A pandemia acelerou esse enfrentamento. Ao mesmo tempo em que damos aula on-line, todos os nossos dados foram lá para dentro, ou seja, facilitou o processo para a big techs, já que todas as escolas, até as particulares, assinaram, aderiram etc. A entrada nesses ambientes é obrigatória, o docente não tem escolha. Ainda questiono: e se todos estivessem presentes nessas plataformas? Reflito: não estamos? Sim, estamos todos plataformizados, porque quem tem qualquer relação que seja, por exemplo, um e-mail, a Amazon, a Google, a Meta, a Microsoft ou a Apple, está palataformizado, logo, ninguém escapa. A pergunta deveria ser: como se sai disso? Como fazer um contrafluxo para não estar à mercê disso? Relembrando Yuk Hui, como utilizar a tecnologia para enfrentá-la? O algoritmo é um exemplo de que tudo pode ser escolhido para você. A Inteligência Artificial precisa ser pensada da mesma forma. É evidente que ela foi alimentada por alguém em um momento anterior, sem pagar nada a ninguém, sem direitos autorais ou algo que o valha, estamos plataformizados e vulneráveis sob vigilância e comandos que nos colocam no lugar do repetidores. Difícil enfrentar tal situação se somos o lado mais fraco da corda. Para finalizar aqui, há slides sobre uma produção de texto com aspectos multimodais, para elucidar de forma concreta o já discutido antes. Apresento um texto, denominado partida, informações ou dados para a fundamentação de um gênero mais específico, menos ou mais convencionado, ou seja, há gêneros “mais quadradinhos” e outros menos convencionados, com certa liberdade de movimentos. Geralmente, os alunos têm um pouco de dificuldade de lidar com a liberdade, pois querem modelos, coisas bem amarradinhas. Mas há casos de gêneros que não têm como ser assim. Para exemplificar, outro dia fiz a proposição de uma oficina de crônica, e uma estudante me questionou: “qual é o modelo da crônica?” Eu a respondi: “a crônica não tem modelo”. Há aspectos gerais, claro, mas podemos produzir com mais liberdade. Assim, apresento o que denomino “pacote 1”, a fim de que visualizem quantos aspectos podem ser elencados além da palavra, do verbal, negociar e escolher juntamente como os alunos: a natureza tecnológica, o formato, o tipo de circulação, ferramenta para escrita. Não só papel e lápis. Há inúmeras ferramentas. No “pacote 2”, os elementos necessários, como, por exemplo, se vai ter imagem e que imagem seria essa. Só a imagem é algo vago – desenho, foto, textura, fundo, os dados precisos, o que precisa se escrever ou o tipo de informação que precisa conter. No “pacote 3”, disposição e organização dos elementos informativos, ou seja, se vai ter algum tipo de hierarquização, frames, entre outros, e uma versão inicial, para quem precisa dele e percebe se vai obter os efeitos desejados, pois os textos são feitos com algum objetivo/finalidade. Depois desse momento, são necessárias as reescritas, que são parte do processo, considerando que sejam novas versões a partir das avaliações mais explícitas possíveis, sendo o professor ou outras pessoas que podem dizer para nós se o texto alcança o público esperado ou não. Para elucidar com um fato verídico, tínhamos de elaborar um card de um evento de um projeto que conduzo. A produção ocorreu a partir da solicitação de uma pessoa. O formato card foi elencado por circular em ambiente tecnológico, redes sociais. Claro que poderia ser também um story, mas foi elencado o gênero card. A pessoa diz: “Preciso de dia, horário, lugar, fotos de todos, se for o caso”, isto é, como iria ser hierarquizado. Na sequência, o outro estudante enuncia a resposta: “Como nasce uma editora, uma conversa com Daniela Padilha, fundadora da editora JuJuba”. Foram apresentados o tema, o nome e o título do que iria acontecer. A dúvida foi: “Isso é conversa, isso é mesa, palestra?”. “É uma mesa, a Pollyanna, em verde na foto, vai mediar apenas”. Ainda: dia, hora, sala, marca da instituição promotora. É preciso salientar que mesmo nos três “pacotes descritos”, “entregues”, ainda pode haver dúvidas sobre como trabalhar para ter a peça orquestrada ao final. A atividade descrita serve para qualquer série, e a quantidade de negociação a ser realizada para sair uma peça dessa é absurda, demanda tempo de trabalho, geralmente, usando uma tecnologia digital. Por exemplo, o aplicativo Canva é muito usado pelos jovens, é mais intuitivo. Por fim, evidencia-se quanto trabalho semiótico e negociação são necessários para produzir esse textos, desde espaço, cores elencadas, relação com peças anteriores, coerência com o tipo de evento e lugar, o que precisa aparecer mais e menos, o que precisa ser em negrito, fonte maior. Pergunta-se: “Por que a bolinha da Daniela é maior de que de Pollyanna?”. A Poliana é a mediadora, logo, a palestrante/convidada está em destaque, ou seja, elas têm importâncias ou papéis diferentes. Esse ato é visual, não está escrito. Também há a marca do grupo. Esse é um exemplo de produção que tem necessidade da visão multimodal. Se for feito de qualquer forma, não fica uma produção adequada, por isso precisa da informação de contraste, de hierarquia. Se o professor trabalha na organização do texto apresentado de forma “bagunçada” pelo estudante, esse trabalho precisa ocorrer para que os estudantes se tornem capazes de compreender as escolhas que fazem. Não é só, como se diz em Minas, “jogar de grila”, não é pegar os pacotes, elementos e jogar para os estudantes no espaço, nessa página. É muito mais que isso, com a efetivação de um exercício que dura semanas, se for feito em diálogo com o estudante. Acontece um “clique”, um despertar: “Nunca mais eu vejo isso daquele jeito”. Isso demonstra o cumprimento do objetivo docente, em que há a tomada de consciência do sujeito, que se torna mais crítico em relação à produção e à leitura de textos. Esse tipo de atividade é aparentemente simples, mas ao ser executada numa abordagem multimodalista, a depender da teoria, visão, metalinguagem. Dar nomes às coisas é importante, é o elemento organizador de ideias, da sistematização das etapas, acompanhamento, de uma avaliação mais processual. Serve para qualquer série e, até mesmo, graduação, pós-graduação, e aportará elementos próprios para a percepção de quem lê e escreve. Parece pouco, mas não é.