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por Laura Galuch*

 

          Oficialmente, a Olímpiada de Paris terminou em 11 de agosto, quando a chama olímpica foi apagada e o bastão passado para Los Angeles, que sediará o evento em 2028. No entanto, é fato que os jogos parisienses ainda ecoam na mente dos apaixonados por esporte.

     Paris prometeu tornar-se a edição mais sustentável da história dos Jogos Olímpicos. Marca importante, principalmente em época de colapso climático. No entanto, outro legado se destaca: a participação feminina. A partir daqui, destacamos as histórias daquelas que vêm “de um lugar onde o céu molha o chão, céu e chão gruda no pé, amarelo, azul e branco”, como diz a música que embala as meninas da ginástica rítmica do Brasil.

           Se olharmos para a delegação verde e amarela, desde a sua primeira participação olímpica, foi somente em Paris que o Brasil teve mais mulheres do que homens competindo em uma Olimpíada. Para além da presença, também pela primeira vez, a maioria das medalhas brasileiras foi conquistada por mulheres: foram 12 medalhas femininas contra sete masculinas. Uma foi conquistada por equipe mista, vale o registro.   

           Todos os nossos ouros também têm sangue feminino: Bia Souza, Rebeca Andrade e a dupla Duda e Ana Patrícia.

         Certamente, a vitória de Bia Souza representa não só uma conquista para as mulheres, mas também uma vitória para o povo preto. Não por acaso, a atleta, após a sua conquista, declarou à imprensa que “os negros estão conquistando o poder. É muito bom escrever isso na história e servir de inspiração”. E que inspiração!  

          Outra a marcar o seu nome na história foi Rebeca Andrade. Seu feito começou em 2021, quando, na Olímpiada de Tóquio, tornou-se a primeira medalhista da ginástica olímpica brasileira e a primeira atleta do país a ganhar duas medalhas em uma única edição dos jogos. Em 2024, ela continuou o seu legado: conquistou uma medalha de bronze, duas de prata e uma de ouro, com isso, tornou-se a maior medalhista entre os brasileiros. O lugar mais alto do pódio veio com a mistura de Beyoncé e do funk carioca, com Anitta e com Baile de favela. Mais do que isso, sua medalha veio na prova de solo. Nada mais emblemático, afinal, “Dos filhos deste solo és mãe gentil / Pátria amada, Brasil”.      

          Aliás, é preciso destacar que Rebeca Andrade conseguiu outra proeza: “entrar na casa dos brasileiros”. Explico. Na final do individual geral, a TV Globo registrou a sua melhor audiência em uma quinta-feira à tarde, desde novembro de 2022. O recorde da CazéTV também foi com a final da brasileira: foram 2,8 milhões de aparelhos sintonizados ao mesmo tempo. Fato louvável, se considerarmos que, em anos não olímpicos, poucas são as transmissões abertas de esportes que não o futebol. Futebol masculino, para ser mais exata.  

          Agora, voltemos às medalhas douradas. A terceira e última veio com Duda e Ana Patrícia. Dupla que recolocou o vôlei de praia no pódio, resgatando a tradição brasileira. Dupla que se fez forte, especialmente, Ana Patrícia, que, após a Olímpiada de 2021, foi alvo de ataques em suas redes sociais. Sua declaração à imprensa ao fim da partida mostra – um pouco – a pressão que atletas podem sofrer. “Depois de 2021, eu recebi tanta mensagem de ódio, de julgamento, de pessoas que queriam que eu desistisse. […] Eu merecia viver isso aqui, merecia viver isso com a Duda. Muita gente fala muita coisa, mas agora, quando forem falar, falem que foi a gente que deu o sangue para dar essa medalha para vocês”. Já aproveito para dizer: obrigada, Duda! Obrigada, Ana Patrícia.

         No segundo lugar do pódio, temos nossas atletas de prata. Não por acaso, no misticismo a prata representa a Lua, a energia feminina, a pureza e a sabedoria divina. Rebeca trouxe duas para casa. Tatiana Weston-Webb e a seleção feminina de futebol garantiram a sua.

Até 2018, Weston-Webb participava dos campeonatos representando o Havaí. Foi quando recebeu o convite do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) para competir pelo Brasil. A atleta não pensou duas vezes. Claro que, para nós, a última onda dela valia ouro. Como não pensar que para nós, brasileiras, as barreiras são muitas vezes maiores? De todo modo, com sua medalha no pescoço, tornou-se mais uma inspiração para a nova geração.

         A seleção começou, sim, a competição desacreditada. Poucos – para não dizer ninguém – colocavam o futebol como possível medalha. Cenário que quase se confirmou com a fase de grupos aquém do esperado – o Brasil passou de fase como um dos melhores terceiros colocados. Quartas de final: uma nova competição. As meninas se agigantaram. Eliminaram as francesas, dentro de casa. Na etapa seguinte, eliminaram as atuais campeãs do mundo, as espanholas, com uma atuação de gala, diga-se de passagem. Na final, criaram chances, mas o futebol é traiçoeiro, quem não faz leva, e elas, infelizmente, levaram. Mesmo assim, despedida digna para Marta e uma mensagem de que é possível para as novas gerações.

        Chegamos às medalhas de bronze. Individualmente: Larissa Pimenta, no judô, Rayssa Leal, no skate, e Bia Ferreira, no boxe. Coletivamente, as meninas do vôlei e da ginástica.

       Na quadra, após uma derrota para as americanas na semifinal, o time comandado por Gabi usou todo o jeitinho brasileiro: sacudiu a poeira, reinventou-se e deu a volta por cima. Como diz o bom samba – mais brasileiro impossível –, “Erga essa cabeça, mete o pé e vai na fé / manda essa tristeza embora / basta acreditar que um novo dia vai raiar / sua hora vai chegar”.

      Na ginástica, uma união de experiência e juventude. Com 20 anos no esporte, foi em Paris que Jade Barbosa conquistou a sua primeira medalha olímpica. Também em solo europeu, Júlia Soares, a nossa caçula, mostrou ao mundo o movimento que recebe seu nome desde os seus 15 anos. Flávia Saraiva foi a personificação do que é ser brasileira: graça, simpatia e garra, ao competir com um corte no supercílio. Lorrane Oliveira mostrou sua resiliência e sua superação, características tão caras a nós, ao participar dos jogos poucos meses após o falecimento de sua irmã. Rebeca Andrade completou o quinteto, que é a personificação da sororidade.

         Agora, um destaque à medalha do judô por equipe mista. Após um empate, Rafaela Silva foi sorteada para a luta decisiva. Os deuses olímpicos não brincam em serviço. A judoca que, dias antes, havia perdido a luta pelo bronze, em poucos segundos, garantiu a medalha para o Brasil. Um pódio com muitos simbolismos, seja pela persistência, pela representatividade, pela volta por cima.

         Aliás, Rafaela só confirmou o seu legado de superação. Antes de ir a Paris, a atleta havia relatado em uma entrevista que, antes de ser campeã olímpica no Rio, em 2016, as pessoas levantavam o vidro do carro quando ela passava, pois achavam que ela iria roubá-las. Quando ganhou a medalha de ouro, as pessoas passaram a abaixar o vidro do carro para poder cumprimentá-la. Esse fato mostra que, no Brasil, a sobrevivência de uma mulher, especialmente a negra, depende de muitos fatores. É preciso ganhar para conquistar o valor social.   

       Ainda sobre Paris, se considerarmos que as medalhas são entregues aos vencedores, várias outras poderiam ser distribuídas às brasileiras. Ana Sátila, a atleta incansável. Babi Domingos, a primeira brasileira a participar da final individual da ginástica rítmica. Victoria Borges – que, mesmo lesionada, não abandonou as suas companheiras – e as demais meninas da ginástica rítmica. Enfim… Tantas histórias. Tantas abdicações.   

         Essas conquistas se tornam ainda mais emblemáticas se pensarmos que, por quase quatro décadas, as brasileiras foram proibidas de praticar modalidades consideradas “incompatíveis com as condições da natureza feminina”. Embora a proibição tenha sido derrubada, ainda há dificuldades a serem enfrentadas pelas mulheres brasileiras e pelas atletas diariamente – quase uma prova de 400m com barreiras, eu diria.

         Comecemos por um caso recente, o de Flávia Maria de Lima. A atleta, que se preparava para disputar os 800 metros rasos no atletismo, foi acusada de abandono parental por viajar para competir. Fato que chama a atenção, afinal, quais atletas homens foram acusados de abandonar seus filhos durante eliminatórias ou Copa do Mundo? Eis um obstáculo na corrida das mulheres no esporte.

        Outra barreira enfrentada pelas atletas no Brasil – e não somente aqui – são os crimes sexuais. Em março de 2024, o Globo Esporte divulgou uma reportagem sobre casos de assédio no futebol feminino. Foram entrevistadas 209 jogadoras. 52,1% afirmaram ter sofrido alguma violência. Uma delas relatou que, “depois de o jogo acabar, enquanto o treinador falava, o auxiliar passava a mão na bunda das atletas”. Esse fato faz lembrar o caso de jogadores como Robinho e Daniel Alves que, embora julgados e condenados, ainda são protegidos e defendidos por grande parte dos boleiros.

         Por falar em crime, é repugnante o fato de a competição de 2024 ter contado com a participação de Steven van de Velde, atleta holandês condenado, em 2016, pelo estupro de uma menina de 12 anos. Embora o Comitê Olímpico holandês tenha alegado a ausência de risco de reincidência, a participação do atleta parece ser contrária aos princípios olímpicos: amizade, compreensão mútua, igualdade e solidariedade. Certamente, não pensaram – ou não se importaram com – na vítima ou no possível incômodo gerado às mulheres. Por isso, medalha de ouro para os brasileiros Evandro e Arthur, que foram os responsáveis pela eliminação do holandês.

        Além das atletas, outras mulheres dentro do esporte sofrem pela ação dos homens, como as jornalistas. Parece até figurinha repetida, porém, novamente, durante a cobertura do evento, uma repórter brasileira foi vítima de assédio enquanto participava de uma transmissão ao vivo. Mais especificamente, no sábado (3/8), dois homens beijaram o rosto de Verônica Dalcanal, enquanto a jornalista relatava o dia vitorioso dos atletas brasileiros. Vitória na competição. Derrota como sociedade.       

         Para além do esporte, dados revelam que, a cada 6 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. Em sua maioria, as vítimas são meninas, negras, de no máximo 13 anos. Vítimas que têm seus sonhos interrompidos e que, infelizmente, acabam tornando-se uma mera estatística para grande parte da população.

        Como esses dados, não queremos apagar a alegria das conquistas dos Jogos Olímpicos. Pelo contrário. Queremos que os olhos se abram a fim de que, dia após dia, o Brasil e o mundo sejam vitoriosos não só no esporte, mas principalmente como sociedade. Nosso desejo é que tenhamos uma sociedade “medalha de ouro” em justiça e em segurança para que, finalmente, as mulheres possam ser o que quiserem e fazer o que almejam em condições de plena igualdade.

 

*Professora de Língua Portuguesa e Doutoranda em Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Londrina

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