foto: O Consoante
por Laura Galuch
25 de janeiro de 2019. Maringá, Paraná. Lembro-me de estar sentada no sofá, assistindo à programação da Globo News, quando Maria Beltrão, então apresentadora do Estúdio I, após a música de “urgente”, noticiou que uma barragem havia se rompido em Minas Gerais. Imediatamente, meus pensamentos chegaram a Mariana, cidade mineira devastada, em 2015, por um mar de lama.
Como, em tão pouco tempo, quatro anos especificamente, no estado de Minas Gerais, repetia-se a mesma situação?
Ao longo dos dias, dos meses, pude ter uma pequena resposta, ou melhor, ver a ponta do iceberg, revelado minuciosamente por Daniela Arbex em seu livro-reportagem “Arrastados: os bastidores do rompimento da barragem de Brumadinho, o maior desastre humanitário do Brasil”.
Premiada por outras obras, que também atuam na construção da memória da história do Brasil, como “Holocausto brasileiro” e “Todo dia a mesma noite: a história não contada da boate kiss”, a autora mineira, como resultado de um trabalho cuidadoso, ao longo de 19 capítulos, reconstrói momentos anteriores ao rompimento da B1, barragem desativada da Mina do Córrego do Feijão, explorada pela mineradora Vale na cidade de Brumadinho, Minas Gerais, narra como bombeiros, legistas, peritos e demais envolvidos atuaram no salvamento e na (difícil) identificação das vítimas e elucida que o mar de lama não foi um acidente.
Segundo o dicionário Michaelis, acidente é algo “casual, fortuito, imprevisto”, características que não se aplicam ao rompimento da barragem em Brumadinho. Ao longo de todo o livro – principalmente no 16.º capítulo –, Arbex traz detalhes das investigações que revelam uma “Tragédia anunciada”.
A Vale, responsável pela Mina do Córrego do Feijão, já sabia, pelo menos, desde 2017, da instabilidade da B1, barragem construída pelo método de alteamento a montante, um dos mais baratos e, ao mesmo tempo, mais instáveis e inseguros. Justamente por isso, a multinacional agiu para que funcionários da Tüv Süd – empresa responsável pela revisão periódica de segurança na barragem – declarassem a estabilidade da B1, em 2018.
Causa consternação o seguinte fato relevado pela autora (p. 248): “em junho de 2018, sete meses antes do colapso da B1, havia circulado entre empregados da multinacional [Vale] uma planilha denominada ‘Top 10 – Probabilidade’, na qual constava um ranking de dez barragens da empresa em situação de risco acima do aceitável. A B1 ocupava a oitava posição, com probabilidade de rompimento por erosão interna” – informação tratada apenas internamente.
Como se não bastasse a ciência do risco iminente de rompimento, a Vale sabia que as sirenes de alerta nunca estiveram operantes e que a lama chegaria à área administrativa da empresa – localizada abaixo da B1 – em menos de um minuto, impedindo que funcionários pudessem se salvar. Inclusive, os próprios empregados sabiam que as chances de sobrevivência em caso de rompimento eram mínimas. Arbex traz o relato de Josiane, então funcionária da empresa e irmã de uma das vítimas; em outubro de 2018, houve um treinamento de evacuação na Mina do Feijão, do qual ela participou com a sua irmã. “As duas caminharam por cerca de 15 minutos para deixar a área administrativa, onde estavam, e chegar no antigo Centro de Estudo Ambiental, definido pela Vale como um ponto de segurança”. “– Vamos todos morrer – comentavam os participantes com humor, após serem informados de que, em caso de um rompimento real do maciço, eles teriam poucos minutos para evacuar a chamada zona de autossalvamento”. Infelizmente, foi o que ocorreu em janeiro do ano seguinte, não mais em situação de treinamento.
25 de janeiro de 2019. Brumadinho, Minas Gerias. 12 horas, 28 minutos e 24 segundos. Rompimento da B1 na Mina do Córrego do Feijão. Mais de dez milhões de metros cúbicos de rejeitos vazaram, formando uma onda de lama de 8 metros de altura, a 108 quilômetros por hora, que atingiu, inicialmente, a área administrativa e o refeitório da Companhia, destruindo, na sequência, pousada, casas, estradas, pontes e vegetações da região do Córrego do Feijão.
Às 12h56, o primeiro helicóptero do Corpo de Bombeiros chegou à região, pilotado pela Major Karla Lessa, primeira comandante do helicóptero do Corpo de Bombeiros do Brasil. Ela, dois tripulantes, Gualberto e Welerson, e dois civis, Jefferson e Michel, foram responsáveis por um salvamento dramático, televisionado em tempo real pela Record (https://www.youtube.com/watch?v=jHo1WNPEAx4&t=321s). “Eram cerca das 14 horas, quando o país assistiu pela televisão ao horror da tragédia” (p. 95).
Lamentavelmente, 270 pessoas (ou 272, considerando as duas gestantes entre as vítimas) não puderam ser resgatadas com vida; foram engolidas, arrastadas e enterradas pela onda de lama. A jornalista mineira traz detalhes – difíceis, porém necessários para a construção da memória coletiva – sobre o resgate e a identificação das vítimas. A violência provocada pelo rompimento da barragem foi tamanha que, ao menos, 950 segmentos corpóreos foram resgatados pelos bombeiros. Segundo a autora, os militares encontraram até quinze segmentos de uma mesma vítima ao longo de 10 quilômetros, materialização da fúria com que foram arrastados.
Sobre a recorrência de identificação de uma mesma vítima, um trecho de “Arrastdos” torna-se emblemático: “Apesar de todo o empenho do IML, a reidentificação de casos passou a ser uma realidade. Quando novos segmentos de uma mesma vítima eram encontrados pelos bombeiros – houve até quinze identificações de uma só pessoa –, o processo era tão doloroso para os parentes que o Instituto Médico Legal optou por deixar para as famílias a difícil decisão de ser ou não avisada a cada fragmento localizado. Noventa e nove por cento dos familiares não quiseram receber uma nova comunicação. A perna de Vaguinho é um dos duzentos segmentos corpóreos que aguardam uma destinação” (p. 229-230).
Com relação aos corpos resgatados, outra condição chama a atenção: em virtude da força da lama, ao serem arrastadas, as vítimas perderam a camada superficial da pele, responsável pela coloração dos corpos brancos, pardos e pretos; consequentemente, não houve distinção de nenhuma delas pela cor da pele. Para a autora, esse fato é extremamente simbólico: “Em um mundo com tanto racismo estrutural e toda espécie de preconceito imposto pela cultura da branquitude, as vítimas de Brumadinho estavam todas iguais. Elas exibiam a cor branca revelada pelo subcutâneo, já que a pele sofrera abrasão”. (p. 166).
Há mais um fato chocante pós-rompimento: a ambição das pessoas. Movidos pelos repasses financeiros da empresa, indivíduos, que sequer residiam no município, viajaram para lá, com o intuito de aplicar golpes na empresa e na população; foi necessário, inclusive, instauração de inquérito pela Polícia Civil. Mais terrível que isso, é se colocar no lugar de uma mãe, cujo filho morreu na tragédia, que escutou o seguinte: “– É, Mário, há males que vêm para o bem. A barragem estourou, mas todos nós vamos ter dinheiro no bolso.” (p. 232). Afinal, quanto vale uma vida?
25 de julho de 2022. Três anos e seis meses após o rompimento da B1, bombeiros seguem em busca de quatro joias – como são chamadas as vítimas da tragédia: Cristiane Antunes Campos, Maria de Lurdes da Costa Bueno, Nathalia de Oliveira Porto Araújo e Tiago Tadeu Mendes da Silva. Para os familiares, são 1.277 dias de angústia, sem notícias dos seus. Para aqueles que puderam enterrar parentes e conhecidos, são 30.648 horas de sofrimento, de saudade, de indignação e de luta por justiça. Para muitos brasileiros, porém, a conta é outra: é o tempo que já passou; trata-se de um fato – gravíssimo – em situação de quase esquecimento, o que é inaceitável.
Hoje, ainda não foram julgados os acusados pela tragédia. No dia 06 de junho de 2022, um dia antes da identificação de mais uma vítima, o Supremo Tribunal Federal (STF) devolveu para a Justiça de Minas Gerais a competência para julgar pelo rompimento 16 executivos da Vale e da Tüv Süd. Agora, o grupo pode ser levado a júri popular, sob acusação de homicídio doloso (quando há a intenção de matar) das 270 vítimas da tragédia.
No posfácio de seu livro, Arbex faz a seguinte pergunta: Brumadinho nunca mais? Não se sabe a resposta, afinal, a justiça é lenta e as decisões, atravessadas por interesses financeiros. Se tivesse sido considerado o rompimento em Mariana, em 2015, maior tragédia ambiental do Brasil, Brumadinho, maior tragédia humanitária do Brasil, não teria acontecido, já que medidas deveriam ter sido tomadas. A luta, assim como ressaltou a escritora em sua passagem pela Bienal, noticiada por “O Consoante”, é para que haja a construção da memória do brasileiro.
Em “Arrastados”, Daniela Arbex resgata histórias de sobreviventes, de familiares das vítimas, de bombeiros, de médicos-legistas, de policiais e de moradores das áreas atingidas, impedindo que os afetados sejam vistos e lembrados apenas como números da tragédia. Sua obra, como ela própria descreve em um dos autógrafos cedidos carinhosamente a “O Consoante”, é “uma recusa ao esquecimento. É também sopro de humanidade”.
Ótima resenha, Laura. Já quero comprar o livro.Parabéns 🎉
Maravilhosa resenha. Muito necessária a divulgação dessa obra. Parabéns!