foto: Cleudemar Fernandes 

“…o que sustenta a tirania é a própria estrutura democrática, porque é possível escolher continuar sustentando a tirania, uma vez que o poder atribuído ao cidadão retorna ao tirano dada essa subserviência. O cidadão sente esse poder porque deu esse poder ao tirano, se sente ao lado do tirano. A essa subserviência, à superobediência, está associado ser visto como um sujeito humanizado.”

 

Vanice Sargentini é professora titular do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e professora visitante na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). É coordenadora do Laboratório de Estudos do Discurso (Labor/UFSCar) e autora de livros, capítulos e artigos publicados no Brasil e no exterior, entre os quais se destacam: Los Pueblos de la Democracia (La bicicleta Editiones, 2018), Mutações do Discurso Político no Brasil (Mercado de Letras, 2017), (In)Subordinações Contemporâneas: consensos e resistências nos discursos (EdUFSCar, 2016), Presenças de Foucault na Análise do Discurso (EdUFSCar, 2014) e Legados de Michel Pêcheux (Contexto, 2011). Foi professora visitante na Universidade de Toulouse III/Paul Sabatier. Em entrevista-aula concedida a O Consoante em 05/10/2021, intitulada “Sociedades democráticas e práticas discursivas: os discursos da (des)obediência”, a Profª. Drª. Vanice Sargentini promoveu reflexões bastante oportunas sobre as mídias, as redes sociais, as formações políticas e religiosas que, por meio de suas práticas discursivas, funcionam como ferramentas de controle da população.

 

por Anna Clara Gobbi, Fabiana Floss, Isadora Hamamoto, Izabelle Diniz, Neil Franco, Pedro Navarro (part. especial), Raphaela Caparroz e Tiago Guimarães

 

 

O Consoante: Recentemente tivemos conhecimento da intenção de revogação da lei de segurança nacional, o que culminou no veto de punição por disseminação de fake news. Por que as mídias sociais se tornaram o suporte mais utilizado para a divulgação de notícias falsas? Você acredita que o fenômeno das fake news pode afetar (ou já vem afetando) a maneira como a esfera jornalística produz seu discurso?

 

Vanice Sargentini: Primeiramente, obrigado a O Consoante pela questão, pois ela dá oportunidade para que eu possa responder, sobretudo, o que tem me trazido interesse na tradição de trabalhar com o discurso político e, atualmente, me centrando mais na questão das sociedades democráticas, a partir de uma perspectiva foucaultiana, que se pauta na noção de práticas discursivas.

          Quando me pergunta sobre a lei de segurança nacional que está em tramitação, parece que existem alguns vetos e, de certa forma, isso não significa que tenham suspendido a punição a quem divulga a desinformação, mesmo porque a questão da desinformação está, em grande parte de suas ocorrências, relacionada a crimes de calúnia, racismo e homofobia, por exemplo. Há aquela fake news, que talvez não crie tanto problema na sociedade, mas há também aquelas acompanhadas de notícias que agridem, ofendem e distribuem ódio. Portanto, a distribuição de fake news pode ser objeto criminal, com interesse político, porque visa afetar alguém como sujeito na sociedade ou afetar as instituições. Isso me leva a citar Foucault em A Sociedade Punitiva, um curso ministrado por ele na década de 1970, no qual ele expõe que na instauração e funcionamento do sistema penal o que se viu é que “as leis sociais são feitas por pessoas às quais elas não se destinam, mas para serem aplicadas àqueles que não as fizeram” (Foucault, 2015, p. 22), logo, temos esse problema na regulação de leis sobre fake news, que, de certa forma, estão em suspenso, em andamento. Ora, pune-se pelas leis de notícias falsas, ora, usa-se de outras leis para punir essas práticas, por exemplo, a lei de segurança nacional. Isso tudo mostra que há uma articulação entre a verdade e o poder, havendo, historicamente, circunstâncias em que a justiça responde à conveniência do mais forte. O aumento da distribuição de notícias contestáveis, de falso contexto ou de falsas conexões atende aos desejos do sujeito de dizer e de consumir notícias inscritas em um dado regime de verdade, em uma vontade de verdade, conforme propõe Foucault (em A Ordem do Discurso), alinhada a algumas instituições seculares, dominantes. Então, muitas vezes não se trata apenas de combater notícias falsas, afinal, o outro não quer ser dissuadido disso, ele quer acreditar nesse tipo de informação.

          E por que as mídias sociais são as que mais distribuem notícias falsas? Eu diria que são vários os fatores, porque os danos causados com a desinformação também são diferentes. Por exemplo, hoje existe uma CPI (sobre a Covid), pois o dano causado pelas notícias falsas é colocar a vida em risco. As agências de checagem, que trabalham desde 2017/2018, reuniram profissionais de vários países para definir como seriam feitas as verificações das notícias, e as grandes agências fizeram isso buscando manter sua credibilidade e, por consequência, sua sobrevivência. Observou-se que o lugar de proliferação das fake news são sobretudo as redes sociais, local de domínio de ninguém, praticamente. Controlar a distribuição dessas notícias falsas é uma ação dificílima, afinal, existe lucro, e os investidores ganham com o impulsionamento de notícias falsas. Há inclusive ações para inibir canais que reproduzem notícias falsas, mas o que ocorre é que mal esse canal sai do ar, já volta com outro nome. São inúmeros canais e, a partir de 2016, houve um aumento significativo deles, inclusive na sequência dos anos eleitorais, pois os candidatos compreenderam que essa prática é muito produtiva com a possibilidade de atingir um número muito elevado de pessoas. Dessa forma, não tenho dúvidas de como isso se instalou e de que continuará nos processos eleitorais posteriores. Não há como suspender essa prática. Além disso, se pensarmos nas redes sociais, como elas podem atingir números incontáveis, vemos seu amplo alcance; e quando digo incontáveis, se aplica somente aos usuários, pois, para o algoritmo a informação exposta é muito bem detalhada, como número de acessos e o perfil das pessoas que buscam determinado tipo de conteúdo. Assim, as redes sociais são muito produtivas para aquilo que passou a fazer parte no domínio da política. Temos também o pathos funcionando muito bem no momento da circulação dessas notícias com todas suas emoções. Além disso, como já disse, dá lucro, é difícil combater, é difícil tirar do ar.

          Outra questão que nos interessa é o fato de as redes sociais não necessitarem de um mestre aparente. Pêcheux, em A língua Inatingível, falava sobre isso ao tratar da circulação, expondo como os textos começam a circular sem um mestre aparente: “a língua de vento permite à classe no poder exercer sua mestria, sem mestre aparente.”( GADET & PÊCHEUX, 2004, p. 23). Eu gosto de perguntar aos meus alunos quantos deles costumam produzir conteúdo para as redes sociais e, em resposta, podemos ver que são poucos, pois são profissionais contratados que fazem esse tipo de trabalho, e as postagens são produzidas para que o sujeito se identifique rapidamente e passe a redistribuir o conteúdo. Logo, as repostagens feitas por pessoas reais ou robôs são muito produtivas nas redes sociais, e como elas não têm um mestre aparente, percebemos que muitas vezes as postagens vem em primeira pessoa, que é para que o interlocutor se inscreva naquele discurso. A postagem subjetiva o interlocutor como o proprietário daquele dizer. Há alguns dias vi uma postagem, inclusive estou trabalhando com ela, com os seguintes dizeres: “Me perguntaram porque eu continuo a defender o Bolsonaro, é porque eu quero o meu país de volta”. Ao pensar na frase “eu quero o meu país de volta” nos perguntamos: Que país? Qual é a característica que se perdeu? Como era? Ou seja, é uma fala pronta para o interlocutor se inserir. Dentro dessa produção de postagens temos diversas frentes, por exemplo, pautas anticomunistas, pautas sobre o conservadorismo, onde cada um compartilha o tema que mais se identifica, e todas essas frentes têm produzido algo. Logo, temos uma prática eficiente de disparos desse tipo de conteúdo. A inexistência desse mestre aparente faz cada um sair com a sensação de que é o autor daquilo.

          Ainda outra questão é a de que discurso de ódio se aprende, pois existe uma sintaxe do discurso de ódio. Uma estratégia é enunciar uma ofensa e depois declarar que era uma brincadeira, outra ainda é empregar a ironia, defendendo uma dada posição. Existe ainda a estratégia de mudança de foco, por exemplo quando há uma postagem combatendo as atitudes do governo atual e alguém replica: “mas e o Lula?”, ou então algo muito mais programado como o ataque direto, o choque, a violência pela linguagem, que geralmente aparecem em frases curtas com palavras de baixo calão e diretas que funcionam como distribuição do discurso de ódio e, dessa forma, se aprende pela reprodução/repetição, e as mídias sociais possuem as ferramentas para isso, afinal, elas organizam o discurso dessa forma, a partir de frases curtas. Em contraposição, para se afirmar que determinada notícia é falsa é necessário escrever um longo texto argumentando e provando sua falsidade. É certo, no entanto, que no contexto das redes sociais não será lido. Podemos identificar, também, a presença de silogismos. Por exemplo, vi em uma mensagem de WhatsApp a seguinte postagem – “O talibã está proibindo a população de se armar” – e na sequência a recuperação da informação de que o governo Lula foi favorável ao desarmamento durante seu mandato, logo, aplica-se o silogismo: “A política do Lula é a mesma do Talibã”. Esse tipo de aproximação é uma fraude maldosa, e tudo isso é possível por meio das redes sociais que também permitem a ocultação dos interlocutores. Não sabemos se estamos falando com uma pessoa ou com um robô, pois existem manobras para esconder a identidade desse interlocutor.

          Sobre a circulação de desinformação que observei, inclusive, em um artigo que publiquei (Sargentini e Chiari, 2019 – Revista Discurso & Sociedad), quero destacar como algumas mensagens do Whatsapp se organizaram no período eleitoral de 2018, de forma muito similar ao discurso didático-pedagógico. Coloca-se uma voz reconhecida publicamente, quadros semelhantes a uma lousa escolar com itens dispostos de forma didática, visando informar e ensinar as pessoas, e esse discurso didático dá credibilidade à notícia falsa. Quando me pergunta se o contato com as notícias falsas pode afetar a maneira como a esfera jornalística produz seu discurso, eu respondo que sim.

          Falando ainda sobre as sociedades democráticas e as práticas discursivas, eu gostaria de ponderar que é exatamente no interior da sociedade democrática que se tem a permissão para a desinformação. Por exemplo, se uma pessoa sai à rua pedindo ditadura, ela só pode fazer isso no interior de uma sociedade democrática, porque depois de estabelecida uma ditadura, ela não poderá mais o fazer, ou seja, é uma grande ironia. A notícia falsa só funciona nesse ambiente democrático no qual os controles para inibi-la nem sempre funcionam. Para Michel Foucault, a prática discursiva forma o objeto sobre o qual ela fala, não existe o objeto em si mesmo. O que há é uma soma de enunciados, com uma certa regularidade, que me permite conhecer, por exemplo, a homossexualidade, ora como pecaminosa (como se encontra no discurso religioso), então o que se tem é um objeto e a prática discursiva que vai formar o que é este objeto. Ora, por outra regularidade discursiva, a homossexualidade é definida como um distúrbio (quando inserida no discurso biológico/psicológico), ora ainda a homossexualidade é definida como uma orientação natural (em um discurso de direitos identitários). Assim, podemos ver que os discursos têm um papel central na constituição da verdade. Por isso, se a esfera é sensível a isso, ela não é neutra, ela é o lugar de construção desses discursos. A soma deles é que vai construindo esse objeto e a esfera jornalística também está inserida nos discursos, não têm como ela estar fora disso. Na pergunta sobre se tudo isso interfere na maneira como a esfera jornalística produz esse discurso, a resposta é: interfere! Podemos ver que existem canais de mídia diferentes e cada um faz o recorte de uma forma. Alguns mais moralistas e outros menos, logo, a forma que a esfera jornalística falará sobre o tema será diferente. É possível dizer que parte do jornalismo hoje constrói uma verdade a serviço de um grupo religioso, do neofascismo, do ultraliberalismo e é chamado de jornalismo. O que eu quero dizer é que as notícias falsas não existem por si. Há um jogo de argumentação, deslocamento dos enunciados, que se justificam pelo interesse de determinados grupos. Então, essa interferência na esfera jornalística se dá pela questão financeira desses grupos e, também, pelo medo e pela pressão, assim como a fragilidade da democracia interfere no jornalismo.

OC: Em seu artigo intitulado: “Mentirosos, corruptos e comunista! As Fake News e o politicamente incorreto”, em que trata das produções discursivas que buscavam (re)significar a política realizada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e desqualificá-la, são apresentadas regularidades linguísticas inerentes a essa estratégia, dentre elas algumas que levam à retomada do discurso moralista. Você considera que essa retomada tenha sido a forma mais impactante de uma espécie de descredenciamento do partido opositor, sabendo que há muito tempo essas formações discursivas conservadoras encontram-se interditadas, ou em processo de interdição após as lutas pelas minorias ganharem espaço em nosso país?

 

Vanice Sargentini: Supúnhamos, em anos anteriores, que o discurso conservador estava envelhecido, ainda que sempre estivesse lá. Foi uma suposição malfeita da nossa parte. Esse artigo ao qual faz referência foi publicado na revista Discurso & Sociedad, a partir de uma chamada relativa ao acontecimento da eleição da extrema direita no Brasil. Você me pergunta da pouca atividade da esquerda nesse movimento, o que atrapalhou, o que acontece, enfim. Eu acho que o título já responde um pouco, já que à esquerda se atribuíram historicamente esses três termos: mentirosos, corruptos e comunistas. Trabalhando assim com os discursos políticos desde a abertura, pude ver que desde Collor esses temas são recorrentes. Já orientei teses que analisaram o horário gratuito da política eleitoral, os debates, o jornalismo a esse respeito. Há sempre uma atribuição que eu diria que é histórica e ela é regular, de desqualificação da esquerda, seja em debates eleitorais, seja na mídia de grande distribuição. Isso é regular e acho que não termina nunca. Sabemos que na última eleição houve novas formas de circulação do discurso de campanha. Então, é essa presença forte das redes sociais, como o Facebook, e dos aplicativos, como Whatzapp, que foram empregados como estratégia para esse acontecimento da ascensão da extrema direita. E algo que se fortaleceu muito ainda nesse momento é a pauta dos costumes: o julgamento dos costumes sociais como uma pauta política, a questão do moralismo e do discurso conservador. O ultra neoliberalismo é um discurso que conserva o status quo, e o neoliberalismo em si, poderíamos dizer, é necessariamente conservador. Vejam como é uma junção de pautas distintas. Digamos assim: a esquerda sempre foi retratada como violenta, como defensora de práticas comunistas. Porém, nunca tivemos comunismo no Brasil ou uma organização consolidada para se instaurar o comunismo. E todas as vezes, vários governos caíram por conta dessa imagem fantasmagórica de iminência desse sistema. São pautas mentirosas e assustadoras. E foi impressionante como isso se repetiu em 2018.

           O termo comunismo desencadeia um imaginário inapreensível, mas sempre muito ruim. Um imaginário alimentado em favor da manutenção de um status quo sobretudo financeiro. Poderíamos dizer que as questões que envolveram o discurso da mentira, da corrupção e do comunismo atingiram, após a abertura, o ápice na campanha de 2018. O que antes era um incômodo, naquela eleição passou a ser algo intolerável. As pessoas tomam a corrupção e a mentira como intoleráveis. Atitudes que sempre foram próprias do discurso político, como atribuir mentira ao outro, dessa vez, com ajuda do discurso de ódio, tornou-se muito grave e associado à esquerda, impulsionado pelas fake news. Se em eleições anteriores havia uma recorrência de dizeres, por exemplo, como “X é mentiroso”, em 2018, houve um deslocamento, que mudou para “as notícias são fake”. Lembram-se quem instala o termo fake news? É a extrema direita, com Donald Trump. Temos todo um trabalho que é da extrema-direita em dizer que a notícia é falsa. Antes era ‘X mente’, ou ainda, ‘A Dilma mentiu’, ‘O Lula mentiu’. A extrema-direita não vai usar esse tipo de recurso, mas sim dizer ‘tudo o que eles dizem é fake’, ‘o que as pessoas estão dizendo é falso’, por extensão, ‘o que eu digo é o que vale’. Em 2018 a situação de fake news foi mesmo um capítulo à parte. A proliferação de influenciadores digitais criou bolhas de usuários com interesses políticos nas redes sociais. Muitas pessoas que nunca debatiam política passam uma a uma a entrar no debate, muitos compartilhamentos, retuitagem, distribuição de notícias falsas por WhatsApp e, que, de certa forma, também, foram impulsionadas por robôs. Em 2018 quando organizei com a Luzmara Curcino e o Carlos Piovezani o V CIAD, sobre o tema da pós-verdade, a Patrícia Campos não tinha ainda feito a denúncia do impulsionamento digital de notícias falsas. O palestrante Prof. Tales Ab’Saber[1] falou na ocasião, não das notícias falsas, mas de como havia toda uma estrutura sintática, discursiva e uma pauta de discurso de ódio, que fazia com que cada um ouvisse o que quisesse ouvir, e depois isso se fortaleceu mais ainda com o impulsionamento de mensagens. Na própria construção da notícia falsa tem-se uma argumentação interna que é convincente. Não é preciso esforço de verdade para que o outro seja convencido. Ele se convence pelo gênero, pelo tipo de linguagem e pela argumentação que atende a uma lógica interna que, se comparada ao exterior, considerando os fatos histórico-sociais ela é inviável. Mas a extrema-direita constrói uma lógica interna que lhe é favorável. Por exemplo, dizer que o nazismo foi um movimento de esquerda, porque o partido nazista era ‘Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães’, é uma lógica interna. ‘Se se chama socialismo, socialismo é algo relacionado à esquerda, portanto o nazismo é de esquerda’. Isso só se sustenta internamente no texto, porque quando se faz um cotejamento com a história o argumento não se mantém. O emprego dessa estratégia discursiva estava sem discussão, as pessoas estavam despreparadas para rebater essas falsas articulações e no próximo pleito precisamos estar muito atentos a isso. O Prof. João Cezar Castro Rocha, da UERJ, no livro Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político (2021), defende a ética do diálogo, expondo que é preciso mostrar às pessoas como é montado esse silogismo. Insiste que é preciso estudar e analisar a caracterização do bolsonarismo e não somente suas características.

          Vamos a um exemplo. Eu não posso compreender que alguém que estudou minimamente o que foi a ditadura possa pedir ditadura. Israel de Sá, da Universidade Federal de Uberlândia, faz um trabalho belíssimo sobre a memória da ditadura, sobre como os filmes mostraram uma memória da ditadura para que a gente não se esqueça do que aconteceu. Ele analisa diferentes materiais como o filme Lamarca (1994), e também o filme O ano que meus pais saíram de férias (2006), mas também analisa publicações da Comissão Nacional da Verdade – que foi feita para que não só não esqueçamos o que aconteceu, mas que os culpados possam ser julgados. Mas existe ainda uma outra memória da ditadura, que é um autoritarismo glorioso, que faz parecer que está tudo bem e esse desejo de fazer parecer tudo bem só pode ser com o silêncio de alguns. Então se exige o autoritarismo. Veja como há uma construção discursiva que nos leva a compreender que as notícias falsas têm um acordo com aquele que quer ouvir determinada ‘verdade’, quer o silenciamento de uma parte e não quer de outra.

          Além disso, nós tivemos também o fortalecimento de um discurso conservador, de uma atribuição de violência ao discurso de esquerda, porque temos atualmente um governo neopopulista, com tons neofascistas. Observamos neste governo a proposição do moralismo e, ao mesmo tempo, a incitação à desobediência. Eu estou dando todos esses exemplos para falar da pauta dos costumes, porque eu diria, também, que a força do discurso moralista faz “grupos”. É difícil ser contra o moralismo quando se está em um grupo que é moralista, fato que se expõe também, porque o país de fato não é laico. Tem-se essa forte presença da religião, e por isso se faz “grupo” com alguns. Estamos falando aqui de práticas discursivas nas sociedades democráticas, mostrando como o discurso de obediência atua. Por exemplo, a cultura cristã exige a obediência (para que se chegue ao reino de Deus), ou ainda, um certo conformismo que faz a pessoa obedecer, que faz pensar que é melhor seguir a pauta de costumes. ‘Foi sempre assim, por que vamos fazer diferente? É melhor eu me conformar’. É mais fácil seguir no grupo do que ser excluído. É difícil ser oposição, porque aquele que se levanta contra fica isolado. As pautas moralistas se sustentam nos discursos conservadores, que é mais difícil opor-se a eles e isso tudo mostra que se trata mesmo de questões de poder. Os discursos conservadores acabam, por razão da defesa desse discurso conservador, pretendendo censurar discursos identitários, de defesa de diversidade de gêneros. Por exemplo, ouvimos de um ex-ministro da Educação a afirmação: “odeio o termo ‘povos indígenas’, odeio esse termo. Odeio. O ‘povo cigano’. Só tem um povo nesse país. Quer, quer. Não quer, sai de ré”[2]. Sob o discurso conservador não existem os povos tradicionais, indígenas, ciganos, porque o discurso do moralismo unido ao do autoritarismo é que vai dizer ‘não dividam, vocês são um sob o mando do meu governo’. Exige-se, com isso, uma obediência pela submissão, pela subordinação. É o autoritarismo atuando como uma prática discursiva na sociedade democrática. Estamos vendo muito autoritarismo na sociedade democrática. Com frequência no telejornal escutamos “vai ter eleição sim”, mas isso não é notícia! Se vivemos em um país democrático não é notícia! Então se tem notícia é porque está abalando, é porque toda hora tem que dizer “olha, a democracia está abalada, mas ela existe, as instituições são sólidas”. A gente não precisaria dizer isso. Não tenho dúvida de que todo esse empenho dos conservadores e da extrema-direita é para tirar o poder mesmo de outros grupos, seja suspendendo financiamento, seja expondo as pessoas ao ridículo, seja com a violência. Vimos esses tempos um caso de homofobia na CPI da Covid. Expõe-se o outro ao ridículo. Foi o mesmo que aconteceu com o Glenn [Greenwald], quando ele fez a denúncia da lava-jato. Violências pautadas no discurso conservador moralista. Em outras palavras, ridiculariza-se para fazer grupo e manter poder.

OC: De alguns anos para cá, percebemos que o jornalismo passou e ainda passa por diversas mudanças, principalmente quando falamos do contexto político atual. Em live realizada pela editora Parábola para o lançamento do livro “Discurso e pós-verdade”, você comenta que o jornalismo tem sido questionado quanto à expressão da verdade e o direito de tudo dizer. No interior da democracia há necessidade de controle da mídia ou tudo pode ser dito?

 

Vanice Sargentini: Essa questão do controle da mídia está em pauta há alguns anos, e a discussão sobre o direito à liberdade de expressão é sempre atual. Primeiramente, eu vou lembrar de [Tzvetan]Todorov, que fala de uma equação que não tem solução: toda vez que se tem mais liberdade, tem-se menos segurança, da mesma maneira que toda vez que se tem mais segurança, tem-se menos liberdade. Ou seja, quando se fala em controle, você tem menos liberdade, já quando se fala em ‘tudo pode ser dito’, você tem mais liberdade, mas menos segurança. Vou entrar nessa questão ao pensar em A ordem do discurso de Michel Foucault, porque ele vai propor que é sempre muito arriscado dizer, ou seja, é arriscado entrar numa ordem do discurso, porque as pessoas estão sempre sujeitas a um controle do dizer, que se dá por procedimentos externos e internos. Os controles externos vão recair sobre a ideia de que nem todo mundo pode dizer qualquer coisa para qualquer um, em qualquer circunstância. Há uma ordem do discurso que está regrada por interdições, ou seja, há uma exclusão que indica que nem todo mundo pode dizer, que aquele que diz é separado entre louco e são, a fim de desqualificar. E há ainda um outro sistema de exclusão que é separar o verdadeiro do falso. Isso é muito importante, pois mostra como a verdade é uma configuração histórica, que não existe em si. Para Michel Foucault há uma ‘vontade de verdade’. Ainda nesse controle do dizer, há o que Foucault chama de procedimentos internos: o comentário, o autor e a disciplina. O comentário tem um caráter paradoxal, pois é, ao mesmo tempo, multiplicador e restritivo, o que é interessante no controle da circulação das informações é: por que, dentre tantas coisas que poderiam ser ditas, são três ou quatro informações que, de fato, circulam e se repetem? No que diz respeito à autoria, leva-se em consideração se o autor tem uma rarefação do que diz, ou seja, tem-se um controle da autoria, porque ela dá valor ao que está sendo dito. Por fim, é a disciplina que, de certa forma, garante o que se diz sobre um objeto. Essa discussão da ordem do discurso é importante, porque está envolvida no direito ou não de controle midiático.

          Na gestão do governo Lula, Franklin Martins, na ocasião, 2008, era Ministro-Chefe da Secretaria de Comunicação Social, colocou em debate a necessidade de haver um ‘controle de mídia’, e o grupo de oposição disse, imediatamente, tratar-se de censura. Ao retomar a discussão, a então presidente Dilma Rousseff afirmou que era preciso ‘regular a mídia’, fazer uma democratização, e, já ao final do mandato, disse que era necessário fazer uma ‘regulação econômica da mídia’[3]. Ou seja, esse termo foi sendo substituído ou dito diferentemente entre os grupos opositores. Desse modo, a democracia não é a autorização da liberdade de tudo dizer. Isso está regulado por vários meios: jurídico, político e, sobretudo, financeiro. Por exemplo, os incentivos dos governos dados às concessões de tevê, aos blogs e aos grupos de redes sociais garantem um espaço de dizer. Ou seja, para a mídia conservadora, as ações de controle funcionam como censura e, para a mídia progressista, atuam como democracia. Diante disso, recorro a Pierre Lévy, que diz que estamos caminhando para o ‘Estado plataforma’[4], porque quem tem tido força para controlar o que está sendo dito são as plataformas, que têm autonomia e autoridade para tirar os perfis e as postagens das pessoas da plataforma, numa escala mundial. Elas têm um poder de Estado. Quem controla, regula, democratiza e faz uma regulação econômica são as próprias plataformas, que devem ser responsabilizadas por isso.

OC: A partir do Dossiê: Obedecer e insurgir: as raízes e as asas da (des)obediência política, publicada na Revista Fórum Linguístico, v. 18 n. 2 (2021), é possível identificar diversas estratégicas históricas para manutenção do servilismo nas sociedades. É possível dizer em nosso país esses processos acontecem principalmente sob o viés da hierarquia social e uma retomada dos valores cristãos como superiores ou ainda outras formas de alienação? Haveria formas de insurgência?

 

Vanice Sargentini: Essa questão me permite falar um pouquinho mais desse dossiê, que explorou o tema da (des)obediência. Contem artigos muito bons, problematizados a partir do livro Desobedecer de Frédéric Gros. Ele é um filósofo francês, que trabalhou na estabilização e publicação de vários cursos de Michel Foucault. Eu considero que as questões principais que abrem esse livro, e que me levaram a desenvolver um projeto com alguns professores da UFPB, como professora visitante (2020 e 2021), são: Por que nós obedecemos tanto? Por que a sociedade obedece tanto? Por que essa obediência é política? O autor passa por várias circunstâncias na história da sociedade para mostrar as diferentes formas de obediência. Às vezes forma de submissão, ou de subordinação, ou de conformismo ou de consentimento.

          Essas discussões levam a verificar que há sempre possibilidade de resistência. Gros cita um filósofo do séc. XVI, Étienne de La Boétie, que escreve um pequeno folheto, “A servidão voluntária”, no período da monarquia. Ele se pergunta por que a sociedade na monarquia, ou seja, havendo só um rei, por que tantos plebeus obedeciam ao rei, quando teriam força para derrubá-lo? E responde, explicando que esse rei que vigia a todos não tem só seu olho. Ele tem os olhos de todos, mil braços, mil pernas que lhe dão poder. Esse poder todo que lhe é atribuído, de certa forma, permite que ele mantenha o poder. E por que lhe atribuem tanto? Uma das razões é que a servidão vem pelo hábito. Os costumes absorvidos na sociedade se passaram por todo um processo civilizatório que acabaram sustentando o conformismo – ‘sempre foi assim’. Esse tipo de obediência continua a acontecer. Quantas coisas obedece-se por hábito? Porque o hábito conforma e faz parecer natural. Tudo o que vem da educação e dos costumes e, por essa razão, o que perpassa os séculos parece ‘natural’. Nos anos 1970, por exemplo, Michel Foucault volta a problematizar esse processo da normalização. Tanto que o que é normal não é necessariamente natural. O que é normal é construído, é uma construção histórica que faz com que algumas coisas sejam normais, que acabamos tomando por natural. (‘Por que vamos mudar isso?’) O hábito permite que se obedeça tanto. Uma outra razão é que há uma rede de apoio de braços e olhos que serve àquele que é servil, que faz com que ele continue sendo servil. Os outros estão olhando para ele e ele pretende ser visto como sendo servil. O medo também faz com que pessoas continuem na submissão e o que se acrescenta nisso tudo é que o gozo faz com que o outro continue na submissão, porque ele sabe que ele se sentindo igual àquele que é o monarca, ele se sobrepõe ao outro e oprime o outro da mesma forma que ele é oprimido e ele tem um gozo particular nisso. Essa é uma das primeiras repostas que F. Gros dá para existência de tanta obediência por uma submissão, por uma superobediência, que faz a sociedade obedecer mais do que precisa.

          De forma paradoxal, o que sustenta a tirania é a própria estrutura democrática, porque é possível escolher continuar sustentando a tirania, uma vez que o poder atribuído ao cidadão retorna ao tirano dada essa subserviência. O cidadão sente esse poder porque deu esse poder ao tirano, se sente ao lado do tirano. A essa subserviência, à superobediência, está associado ser visto como um sujeito humanizado. Desobedecer, por sua vez, está associado à monstruosidade, a alguém que se rebela, que não cabe na sociedade, que está fora da civilização. Isso tudo passa a ser questionável no século XX. As guerras trouxeram esse questionamento, porque as discussões mostraram que muitos ao obedecer tornam-se monstros da obediência. Estou falando tudo isso porque proponho que nos pautemos na história. Como nossa democracia está fragilizada, e temos um governo neofacista, precisamos refletir muito sobre o que já aconteceu. Gros ilustra com algumas discussões do século XX, mais especificamente no período pós-guerra, a monstruosidade da obediência. Exemplifica com o caso Eichmann, que foi o responsável pela deportação dos judeus no período do Holocausto, enviando-os para os campos de concentração. Posteriormente a todo esse genocídio, Eichmann é julgado. E o que ele disse? ‘Eu não fiz nada, eu só obedeci, obedeci às ordens, eu precisava, porque eu tinha um problema, tinha que mandar os judeus para fora de Berlim e eu obedeci, não fiz mais nada que obedecer’. É aí quando a obediência humaniza? Não. É ao contrário. A obediência desumaniza. É o que caracterizamos como os monstros da obediência. São questões da metade do século XX, mas que elas se estendem para o século XXI.

         Há diferentes formas de obediência. Por exemplo, além da submissão, podemos falar também da subordinação. Frédéric Gros avalia que o povo é submisso porque a maioria é silenciosa e é difícil a maioria encontrar uma única voz. Ela é cacofônica. É mais fácil ter uma única voz com minorias do que com maiorias. A minoria consegue se organizar. Ela conspira e se reúne. Tudo isso nos leva a crer que é preciso voltar a pensar no exercício do poder. Para Étienne de La Boétie, obedece-se porque é mais fácil obedecer. Toda essa discussão tem que nos fazer levar a pensar que, conforme Gros propõe, temos de obedecer a nós mesmos. Nesse aspecto, o mais importante não é desobedecer, mas é empregar a obediência refletida que às vezes pode ser desobediência. Essa é uma ideia de obediência a si mesmo. Por exemplo, nos protestos a favor, (é interessante pensar nesse oxímoro, se é protesto como que é a favor?) invocados pelo movimento da extrema direita, o que é obediência e desobediência? É uma desobediência civil? Sair de moto sem máscara, andar pela cidade sem máscara é uma desobediência civil? Por um lado, isso é uma forma de resistência? Não! É uma desobediência para mais bem obedecer. Toda essa discussão nos leva a pensar nesse lugar instável da obediência e da desobediência. O bom mesmo não é ser desobediente e o bom mesmo não é ser obediente. O bom mesmo é ter uma obediência refletida pautada numa obrigação ética. São essas discussões que [Frédéric] Gros levanta e quando vocês me perguntam se “a sociedade está sendo muito regida pelos valores cristãos e essa questão da obediência tem a ver com isso” Digo que tem! Certamente é preciso questionar um pouco mais essa obediência excessiva.

OC: Vimos a emergência de falas agressivas, misóginas e racistas, que se proliferaram e proliferam pela/na oratória do presidente da República. Esses discursos, condenados por parte da sociedade democrática, saem da obscuridade e transformam-se em atos heroicos e de resistência, representando o “cidadão de bem”, o pai de família, o empresário que necessita portar sua própria arma, com a garantia de que nunca será escravizado. Podemos pensar que a sociedade democrática se “constrói e se destrói” por meio de discursos de (des)obediência que a atravessam, que a manipulam?

 

Vanice Sargentini: De fato, essa questão é uma continuidade da anterior. Eu estava dizendo sobre os discursos de obediência e de resistência. A resistência à submissão é a rebelião, o que causa uma força muito desigual, afinal, os resultados de uma rebelião nunca são muito bons para os rebelados. Também pode-se considerar a subordinação, que é uma outra forma de obediência que vai se dar por uma abnegação mística, da qual ela reconhece a legitimidade daquele que ordena, mas considera que tem a liberdade suprema de rebaixar-se, ou seja, sabe-se que é uma divindade maior que ordena, e, então, se rebaixa a ela, mesmo não concordando.

          Pode também haver a obediência pelo conformismo, por exemplo, o sujeito afirma que é mentira e nega que seja: ‘Cloroquina não cura covid, mas todos dizem que cura então vou seguir’. Esse seria um exemplo da lógica do conformismo, pois alguém se alinha a todos por ser difícil ficar isolado. É uma adesão a uma unanimidade por medo de ficar excluído ou por um outro tipo de pressão. Os médicos diziam que estavam sofrendo pressão, sofrendo o risco de serem demitidos. É um “nós” que inclui um ele, que inclui um você e que absorve o eu, afinal ‘todos’ estão fazendo, então ‘eu também farei’.  O conformismo forma o sujeito socializado normal. Ele aceita e deseja a ordem do mundo, e aí é que está o cidadão de bem, o pai de família, o heteronormativo. Destaco o livro organizado pela Amanda Braga e o pelo Israel de Sá, intitulado Por uma microfísica das resistências e as lutas antiautoritárias da contemporaneidade. (Ed. Pontes, 2020). Em um artigo neste livro, transcrevo um trecho de um entrevistado no telejornal: “A mulher deixou o marido há três meses, ele não aceitou isso e acabou matando a esposa”. A afirmação foi enunciada por um delegado em entrevista a um jornalista que lhe perguntava sobre o assassinato de uma mulher. Para análise, ainda incluo a declaração de Sérgio Moro, durante uma solenidade: “Talvez nós homens nos sintamos intimidados pelo crescente papel da mulher em nossa sociedade, por conta disso parte de nós recorre infelizmente a violência física ou moral para afirmar uma pretensa superioridade que não mais existe”. Gostaria que fosse percebido que não há diferença entre esses dois discursos. Há aqui um delegado e um ministro confirmando a normalidade ou o previsível, como se fosse compreensível que essas coisas aconteçam. A sintaxe que eles usaram leva nessa direção, porque o delegado poderia enunciar “houve um feminicídio”, ao invés de “acabou matando”. Por essas razões é que o conformismo está em muitos lugares, insistindo em não querer que as pessoas se revoltem diante de discursos assim. Ele se mostra como uma não exigência de uma reação ou como uma ação contrária a isso. O conformismo pode se passar por diferentes formas e fazer emergir formas de resistência. Alguém pode ver uma ação e ter em relação a isso uma ironia cética, ver algo e não concordar ou não mudar de opinião, mas não se colocar contra isso, não expressar nada, dessa forma se mantém intacto o julgamento interno. A resistência pode também ser uma provocação cínica, ‘inconformado com tanto feminicídio e com aquele fato que aconteceu no Canadá surge a marcha das vadias’. Esse enunciado é uma resposta por meio de uma ação. Pode, também, se fazer um protesto lírico, como ocorreu no museu queer, expondo a discordância de que se pense nas relações de gênero da forma como se tem pensado.

          Enfim, é uma situação muito delicada porque a liberdade prevê o desejo autônomo que é ‘como eu quero’, e a democracia liberal prevê o controle dos desejos, compreendendo que deve haver uma igualdade dos desejos ainda que não haja uma igualdade de condições de acesso a esses desejos. Isso só contribui para a manutenção dessa hierarquia, contribui para a situação do conformismo, para que as coisas continuem sendo feitas assim. Em resposta a sua questão, eu não sei se a sociedade se constrói e se desconstrói por meio de discursos de (des)obediência, mas ela se exibe por meio deles, nós conseguimos ver como é que a sociedade pensa sobre a mulher olhando para esse discurso do conformismo, por exemplo. São as coisas com as quais nos conformamos, escutamos no telejornal e achamos normal. Foi o que ocorreu, um dia ouvi isso num telejornal e pensei: “Eu não acredito que ele disse isso”. São nesses momentos que recusamos nos conformar com as coisas. Essa forma desse homem[delegado] falar, essa frase, com essa sintaxe, esse gerúndio, o verbo “acaba” como se fosse uma inevitabilidade, ora temos que nos levantar contra isso.

OC: No atual contexto político é possível observar a relevância que se tem um discurso quando ele parte de um lugar de poder, argumento de autoridade, vira autoritário. Vimos emergir a questão do voto impresso, um dos itens de pauta das manifestações do último 7 de setembro. Como você acha que essas questões podem exercer algum tipo de jogo de poder sobre as novas verdades a partir de agora?

 

Vanice Sargentini: Não sei se são novas verdades, porque o que nós temos é essa junção da linguagem com a indústria da mentira. O que vemos nessa nova verdade, conforme você me pergunta, me parece que são ações de desdemocratização. A suposta nova verdade é que não há credibilidade nas urnas, elas não são auditáveis e tal. São ações, a meu ver, de desdemocratização. A democracia sempre foi garantida por uma luta contínua contra os processos de desdemocratização, porque não existe a democracia em si, ela sempre está em manutenção. E nós estamos vendo agora toda a construção de um projeto de desestabilização da democracia, o que eu tenho chamado de um projeto de desdemocratização, que se materializa nos discursos, regidos pelo saber-poder. É possível ver, também, uma demagogia, por exemplo, que é uma estratégia que se vale do discurso do saber e do poder, para enganar e impedir o acesso do sujeito à maioridade. Quando se diz que não haverá eleição, porque as urnas não são confiáveis, os votos não são auditáveis, você faz o outro achar que existia alguma coisa que ele não via, você faz o outro crer que agora ele está em um processo de maioridade, pensando na maioridade kantiana, que tem coragem de dizer que ele não está sujeito àquilo que não via antes e que ele vê alguma coisa. Só que esse processo é ao contrário, é para mantê-lo na menoridade. É um saber-poder que se sobrepõe ao outro, que impede que o outro venha de fato há um saber poder de uma verdade construída na história, construída nas instituições. Então, isso exige que o ministro [do STF] Barroso vá a televisão e diga: “Teremos eleição. O voto é auditável. Vocês podem ver, em 25 anos nunca tivemos denúncia”.

          Temos outro exemplo na atualidade, em frase como “A terra é plana”? Isso produz uma enunciação didático-pedagógica, para explicar que é possível compreender que a terra é plana. E isso seria um jeito de mostrar que ‘você nunca viu que a terra é plana. A escola sempre te enganou dizendo que a terra era redonda’; e ‘eu’ ‘agora’, vou lhe tirar da minoridade ao fazê-lo compreende que a terra é plana e, dessa forma lhe dar essa maioridade (sabemos que maioridade não se dá se conquista!). Isso, de fato, é manter o outro na menoridade! Kant dizia que a sociedade não quer assumir a maioridade, prefere ficar na menoridade. Ou por medo, ou por preguiça. E, aqui, a estratégia que tem se usado, que foi essa do 7 de setembro de 2021, e que tem sido recorrente é a de que ‘como representante da extrema direita se é autêntico para dizer a verdade: te deixaram à margem sem saber e agora eu lhe digo! Eu lhe digo e você assume a maioridade’. E na verdade isso faz o sujeito se circunscrever ainda mais na menoridade. É exatamente esse discurso demagógico que se vale do saber é que mantém esse sujeito na menoridade. Isso é terrível e perverso!

          São regimes, de saber-poder que mantém a desdemocratização no limiar do acontecimento, em uma corda bamba que não nos permite superar os anos em que vivemos sob o estado de exceção que foi a ditadura. Essa afirmação, por exemplo, de que o voto impresso é auditável, busca desqualificar as instituições, o que é mais um forte processo de desdemocratização. A democracia precisa ser mantida no embate, e o que nos assusta atualmente é ver o avanço do processo de desdemocratização.

          Outro ponto que se instalou na política, e consequentemente na sociedade, vem do discurso de ódio, que se aprende e que as pessoas têm exercitado bastante. A linguagem não é utilizada para o diálogo, para a exposição dos sentidos, ela é utilizada para agredir, calar o outro. E são feitos ataques que fazem com que o outro seja reduzido a nada, dá-se na forma de um assalto sobre o outro. Quando me pergunta se são formas de poder que estão se exercendo sobre essas novas verdades, o que é mais difícil ainda de ter ciência, é que essa nova verdade é feita sobre a legitimidade de um discurso de saber: ‘Estou te ensinando o que você não sabia’. E o interlocutor vai se sentir mais inteligente, sabendo menos. O indivíduo fica mantido na menoridade. É importante pensar nisso!

          Encerro aqui, agradecendo a oportunidade desta conversa que nos permitiu falar de fatos da atualidade de uma perspectiva dos discursos.

[1]AB’SABER, T. Ilusão, convicção e mentira: linguagem e psicopolítica da pós-verdade. In: CURCINO, L, SARGENTINI, V. e PIOVEZANI, C. (org.) Discurso e (pós) verdade. São Paulo: Parábola, 2021.

[2] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/05/22/weintraub-odeio-o-termo-povos-indigenas-quer-quer-nao-quer-sai-de-re.htm

[3] BARBOSA DOS SANTOS , W. e SARGENTINI, V. A democracia nas malhas do embate político-partidário: o discurso midiático da Folha de S. Paulo sobre a regulação da mídia. In: SARGENTINI, V. Mutações do discurso político no Brasil. Campinas-SP: Mercado de Letras, 2017.

[4] https://brasil.elpais.com/eps/2021-07-01/pierre-levy-muitos-nao-acreditam-mas-ja-eramos-muito-maus-antes-da-internet.html

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