“[…] o que é central na teoria de Bakhtin passou a ser chamado de dialogismo. Mas, na verdade, o foco são as relações dialógicas como uma forma de existência do homem no mundo pela linguagem. As relações dialógicas são a nossa base. Bakhtin fala que só em dois momentos estamos sozinhos no mundo, na hora de nascer e na hora de morrer.”
por Flaviane Moraes, Neil Franco, Rafael Alves e Tiago Guimarães
O professor Dr. Adail Sobral se sentiu muito à vontade em dialogar com O Consoante por meio de entrevista realizada durante a disciplina “Gêneros discursivos e práticas linguísticas”, da professora Dra. Terezinha da Conceição Costa-Hübes, do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL), da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, durante sua estada de uma semana (18 a 22/03), em Cascavel-PR. Com foco no dialogismo e seus desdobramentos nos escritos do círculo de Bakhtin, Adail Sobral falou para uma plateia formada por alunos da referida disciplina, bem como por alunos do Mestrado Profissional (PROFLETRAS) da instituição. Porém, outros foram os interessados (estudantes do PPGL e professores da graduação e da pós de Letras) em se fazerem presentes ao diálogo.
Sobral se graduou em Letras (Inglês) pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). É especialista em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestre em Linguística pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Fez estágio de Pós-Doutorado sobre a filosofia do ato de Bakhtin pela Université de Paris VIII. Atualmente é professor do ILA (Instituto de Letras e Artes) da Universidade Federal do Rio Grande e colaborador do PPGL da Universidade Federal de Pelotas, para onde foi transferido o PPGL da Ucpel, fechado em 2018. Já atuou em diversos programas de pós-graduação em Letras e foi, ao lado de Fabiane Marroni e Karina Giacomelli, editor da revista Linguagem e Ensino, entre 2016 e 2018, que nesse período passou a A1 no Qualis Capes. Desenvolve seus estudos em temas como: Filosofias da Linguagem, Gênero Discursivo, Dialogismo, Círculo de Bakhtin, Semiótica Geral e Greimasiana, Tradução e Interpretação. Brincando com a forma de denominar o encontro, Entrevista-Aula ou Aula-Entrevista, Adail Sobral, de maneira carismática, demonstrou grande conhecimento das ideias do Círculo e relatou vasta experiência de sala de aula na formação de profissionais da linguagem.
O Consoante: Em consulta ao seu currículo lattes, notamos que a sua dissertação de mestrado dialoga com a Análise de Discurso francesa. Quando, na sua caminhada acadêmica, você tomou contato com os escritos do Círculo de Bakhtin e o que lhe motivou a seguir ancorando suas pesquisas nos escritos?
Sobral: Tomei contato com os escritos do Círculo de Bakhtin ainda na graduação, no início da década de 1970, na Universidade Federal da Bahia, na disciplina Sociolinguística, quando li o livro de Marcellesi e Gardin, Introdução à Sociolinguística, edição portuguesa, que trazia a ideia de uma linguística social e mencionava Bakhtin. Também na disciplina de Literatura, ao falar de formalistas russos. Depois, no mestrado da Unicamp, que iniciei em 1978, li o livro de Volochinov, que então circulava lá, fora do currículo, em edição argentina, El signo ideológico y la filosofia del lenguaje, trazido pelos colegas [Carlos Alberto] Faraco, [João Wanderlei] Geraldi e Sírio [Possenti], quando estiveram em um evento Buenos Aires. Daí virou uma coqueluche extracurricular. Teve até briga contra nós, porque a gente queria “incendiar” a Unicamp. Porque tudo aquilo era uma loucura. Mais tarde eu conheci um professor canadense, Sebastian Joaquin, e ele trouxe da França o livro Esthétique et théorie du roman, mais basicamente voltado para a Literatura. Logo depois, li o Rabelais, também em francês, intitulado L’œuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Âge et sous la Renaissance, emprestado por minha então colega, mais tarde esposa, hoje falecida, Maria Stela Gonçalves, uma das primeiras pessoas a trabalhar com dialogismo no Brasil. Ela foi determinante para que eu começasse a trabalhar com o círculo. Minha dissertação foi uma revisão da noção de “lugar social”, da Análise de Discurso de Pêcheux, a partir de propostas dialógicas. O título fala de “resgate” da noção, o que pareceu ofensivo a alguns, mas meu objetivo era mostrar que algo além das famosas imagens de Pêcheux [Quem sou eu para lhe falar isso?] poderia ser proposto com êxito para dar conta do discurso, no caso, uma versão ampliada da noção de lugar social. Eu achava “quem sou eu” muito subjetivo. Como é que eu sei quem sou eu? Agora, se eu perguntasse “qual é meu/seu lugar social” talvez funcionasse. Inclusive porque a teoria de Pêcheux não tem uma noção de enunciação. Certamente acharam que não era necessário. Aí fica difícil, pois se não se tem noção da enunciação, fica apenas o produto da enunciação, o enunciado, que vão chamar depois de sequência discursiva de referência. Claro que não podemos analisar de fato o processo, mas podemos tentar reconstituí-lo. E foi o que fiz. Para isso, contestei a existência tanto de um sujeito assujeitado como a de um sujeito autárquico acima da sociedade. Acabei não defendendo na Unicamp, por recusar as sugestões da banca, e desisti do curso em 1985, ficando com um certificado de especialização. Em 1997 retomei o mestrado, na USP, com Diana Barros, e defendi em 1999. Fiz bem poucas alterações. Uma professora da época da Unicamp me disse, quando fui para a USP, “agora você já pode dizer isso”. Quando ela assim me falou, entendi que na época eu estava certo, mas não iam me deixar falar porque eu não tinha lugar de fala. Meu lugar social não foi capaz de admitir que eu não poderia falar. Isto é, eu tinha escrito algo que fazia sentido, mas não podia ser dito quando eu dissera. Logo, a teoria de Bakhtin está certa: tudo depende das relações dialógicas possíveis, que são conjunturais.
OC: O que é dialogismo e por que, na maioria das vezes, esse conceito é identificado como o conceito central da teoria do Círculo de Bakhtin?
Sobral: Dialogismo é a designação que se deu às teorias de Bakhtin e o Círculo. Eles nunca mencionaram esse termo. Eles jamais disseram “Estamos desenvolvendo aqui a teoria do dialogismo”. Bakhtin diz quanto a isso apenas que Saussure, em seu trabalho legítimo, se preocupava com a linguística da língua, com as relações lógicas, e ele, de sua parte, que se dedicava à questão da enunciação, se preocupava com as relações dialógicas”. Ou seja, ele nunca disse que era dialogismo. Na verdade, os pesquisadores foram assim dizendo. O nome que Bakhtin deu à sua proposta foi translinguística, ou seja, uma teoria para além da linguística então praticada. Assim, dialogismo é a proposição de que, para dar conta da linguagem, para além do sistema da língua, mas incorporando-o, é preciso ir além do linguístico estrito, tanto o que propõe um sistema imanente que domina os sujeitos (o chamado objetivismo abstrato) como o que postula um sujeito como agente autônomo (o chamado subjetivismo idealista), uma vez que estamos sempre interagindo, em relações dialógicas, portanto. Só que a gente tem de agradecer a Saussure, porque ele foi revolucionário. Ele mudou um paradigma na época. Inclusive ele afirmava que não inventou a língua, mas a descobriu. Saussure disse em seu Mémoire, algo como “quanto mais olho as línguas e suas relações e suas mudanças, tanto mais vejo a língua”. Ele entendeu que todas as línguas poderiam ser entendidas como manifestações da língua. E procurou descobrir o que havia em comum em todas elas, fundando assim a linguística. Aí que está. Se não tivesse isso, como a gente ia contestar que é mais do que isso? Depois tem o Martinet, com a dupla articulação da linguagem. Mas ainda estava faltando alguma coisa. Aí vem Benveniste, com a noção de enunciado. Não falou de diálogo no sentido de Bakhtin, mas trouxe essa noção de enunciado. Sem ele, talvez o próprio Bakhtin teria se perdido, se não tivesse surgido essa noção no Ocidente. Os bakhtinianos mais fanáticos (que os há) até podem questionar, mas estou falando não de quem escreveu historicamente antes, mas de quem foi conhecido por ter escrito primeiro sobre essa noção, quando chega e diz que a gente negocia o referente, o que se chama hoje de referenciação. E, a partir disso, há uma coisa fundamental: o sujeito de Bakhtin é individual, não subjetivo. Eu costumo dizer que quem trabalha com Bakhtin “arruma pra cabeça”, porque tem de entender bastante de língua, de discurso e também de enunciação, ou seja, muita coisa. Só que hoje, se mostrarem qualquer texto, imediatamente me vem à cabeça “Quem escreveu para quem” e “Onde”. Eu não consigo ver outra coisa. E isso nos leva a pensar no que Bakhtin postula sobre o sujeito, que está sempre interagindo, estamos sempre em interação dialógica. Então, o que é central na teoria de Bakhtin passou a ser chamado de dialogismo. Mas, na verdade, o foco são as relações dialógicas como uma forma de existência do homem no mundo pela linguagem. As relações dialógicas são a nossa base. Bakhtin fala que só em dois momentos estamos sozinhos no mundo, na hora de nascer e na hora de morrer.
OC: Qual a relação entre dialogismo e interação? Até que ponto esses conceitos estão intimamente ligados e até que ponto eles se confundem um com o outro?
Sobral: Na verdade não tem como confundir um com o outro, porque eles estão numa relação de todo e parte. Considerando o dialogismo como relações dialógicas, a interação é a forma de realização das relações dialógicas. Dialogismo e interação estão intimamente ligados, porque as pessoas estão em permanente interação. A teoria dialógica se funda numa concepção ampliada de interação, se assim se pode dizer (a interação, no âmbito do dialogismo, não se restringe às interações no hic et nunc, aqui e agora), e insiste que estamos sempre interagindo, estejam os outros presentes ou não. Para Bakhtin, a interação depende da posição relativa dos sujeitos na sociedade. Ele afirma que estamos dialogando sempre, mas nada está garantido. Eu às vezes uso Patrick Charaudeau, que diz que o contato com o outro é sempre uma ameaça, seja quem for o outro, no sentido de que o outro (pois entende que se é o “outro” não é o “eu”), vai ser sempre diferente e vamos ter de lidar com o fato de que é diferente. Bakhtin afirma que a gente é constituído não sendo o outro. A gente se constitui por oposição aos outros. Logo, ninguém é totalmente dominante ou dominado. A conjuntura pode dar em um certo momento poder a quem antes não tinha. Mais do que isso, a teoria dialógica de Bakhtin é mais que uma teoria da linguagem, porque ela mostra que esta depende de relações dialógicas, que se manifestam em interações. Ela [a teoria] vem de uma filosofia que mostra que somos, como sujeitos, constituídos pelos outros, tal como os enunciados o são por outros enunciados, passados e futuros, porque, ao dizer, retomamos os passados e tentamos nos antecipar a futuros, com base nessa experiência. É fácil de ver que a gente se projeta para o futuro. Eu acho revolucionária a ideia de que quando a gente enuncia estamos tentando antecipar o que alguém pode dizer. Ou seja, isso que eu acho que alguém pode dizer já está presente no que eu estou dizendo. Para mim isso é fantástico. Eu sempre vou defender essa teoria como a melhor que eu vi de linguagem, que eu conheço. Vale ponderar que a gente não se antecipa a tudo. A gente se antecipa àquilo que a gente acha que é, o que podemos ver. Esse conceito ampliado de interação é parte do dialogismo, sua parte central, porque as relações dialógicas se manifestam na interação, e essas relações são a tese central do dialogismo. A linguagem se manifesta em relações dialógicas. A meu ver, essa é uma revolução nos estudos do discurso, o que eu acho incomparável. Acho que até agora eu não vi nenhuma teoria que cobrisse isso. Eu diria que Bakhtin tem uma ideia de interação não como algo apenas interativo, e sim constitutivo. Interação não é o momento da interação. Interação é permanente. Por isso entendo que há uma diferença entre as teorias, porque o aspecto filosófico de Bakhtin é fundamental. Para fechar, o dialogismo como as relações dialógicas que definem o ser humano via linguagem tem a interação como sua principal base. E essa interação normalmente está definida em termos de gêneros. Porque todo enunciado é parte de algum gênero. Não tem um enunciado que não seja parte de um gênero. Por isso que eu escrevi o livro do Dialogismo ao gênero [:as bases do pensamentos do círculo de Bakhtin] para mostrar que o dialogismo tem como parte prática o gênero. No gênero a gente consegue perceber tudo isso.
OC: O que é a Análise Dialógica do Discurso (ADD) e o que a diferencia de outras teorias do discurso? Por que se passou a chamá-la de Análise Dialógica do Discurso (ADD)?
Sobral: É uma questão de marketing (risos). A gente precisava de uma nome forte para o fato de que ela se diferencia das outras. Esta questão é aparentemente simples, mas envolve uma grande complexidade. Vários são os motivos da designação, de que vou falar antes de responder à primeira parte da pergunta. Como se sabe, houve em certo momento no país a importação do modelo de análise de discurso de Michel Pêcheux, que levou quase ao esquecimento o fato de haver outras propostas na França. A designação AD sobrepôs esse modelo a todas as ADs francesas, inclusive porque passou a ser chamada de “AD francesa”. Mais tarde houve a incorporação desse modelo a um modo brasileiro de fazer AD, com destaque para o trabalho de Orlandi, e hoje essa AD só existe como tal no Brasil. Surgiu a ACD (também chamada de ADC), a análise de discurso crítica, e a AD de Maingueneau se disseminou no Brasil. A proposta de Bakhtin passou a ser considerada erroneamente interacionista, por analogia com o ISD, que é na verdade uma teoria do texto, e não do discurso, como o reconheceu Bronckart – e isso exigia uma resposta. Inclusive fui a Genebra (em um encontro do ISD, que me acolheu) e levei a proposta de que a gente é interacional, não interacionista. A ideia era diferenciar. Quando começaram a chamar a proposta erroneamente de interacionista, a gente se irritou com isso. Por que o ISD tem uma teoria textual, e não uma teoria do discurso. Nesse contexto, primeiro usamos “dialogismo”, mas, como parecia um “ismo”, uma seita, ou coisa assim, tendo havido acusações nesse sentido, passamos a usar “teoria dialógica”, para defender a existência de uma teoria da linguagem e do discurso, e não um conjunto de crenças. Depois passamos a usar “teoria e análise dialógica”, a fim de defender a existência também de princípios de análise, porque ouvíamos “o dialogismo não tem metodologia”. Observe-se que não se mencionava “discurso”, porque, para o campo bakhtiniano, era evidente que discurso e enunciado estavam ali. Chegou um momento, quando a comunidade internacional começou a falar de “escola brasileira de estudos bakhtinianos”, que se tornou necessário destacar que havia uma proposta de estudo de discurso de cunho dialógico que se diferenciava de todas as outras, logo, uma Análise Dialógica do Discurso. Quem passou a chamar assim foi Beth Brait, e eu prossegui, dentro do nosso grupo, que é o grupo de estudos bakhtinianos da ANPOLL. Nesse sentido a gente é criador de discursividade. Como uma sigla tem poder simbólico, de firmar uma identidade, e de fazer lembrar dela, por isso passamos a chamar de ADD, que lembra AD, ADC/ACD, ISD, logo, compete com essas siglas quanto a ser lembrada. O que é ADD e em que ela difere das outras ADs? É a única que conheço que abrange o texto, a enunciação e o discurso e é configurada no gênero. Então, ela cobre um espectro maior. Digamos que ela pode ser mais produtiva por isso. Além disso, trata-se basicamente de uma teoria filosófica sobre o ser no mundo dos seres humanos, de sua existência coletiva e individual, e de sua interconstituição na interação, que ocorre continuamente e tem a linguagem em uso como seu centro. Não é que um dia fomos constituídos uns pelos outros. Continuamos a sê-lo, e, claro, a constituir os outros. Isso é inerente à nossa condição humana. Claro que as outras ADs têm um fundo filosófico, mas elas não são, como ADD, fundadas em uma filosofia específica que vai além do texto e do discurso e alcança nosso ser no mundo. Em segundo lugar, ela não nasceu como uma teoria ou modelo de análise, mas como uma teoria ontologicamente fundada da linguagem. Ela propõe os enunciados como a forma de manifestação da linguagem, sendo o texto o aspecto técnico do enunciado. O texto realiza o gênero através do discurso. Logo, é a teoria e análise que efetivamente mostra teórica e praticamente que os aspectos linguístico-textuais estritos são recursos de realização da linguagem, e que esta é mais ampla. É ainda a teoria na qual a interação recobre a vida dos seres humanos em sociedade, e não os momentos pontuais de interação concreta. Na hora da interação são dois mundos que se cruzam. Além disso, tem o grande mérito de lidar com parâmetros e não categorias ou formas de análise; ela permite adequar os parâmetros ao objeto e, por assim dizer, partir do objeto, em vez de enquadrá-lo segundo a teoria. Mas vale o alerta de que a ADD não é uma teoria de análise linguística, embora trabalhe com a língua. Só que ela o faz em termos enunciativos, discursivos, e não estritamente linguístico ou textual. Da perspectiva dialógica, o que se propõe é uma análise linguístico-enunciativa, ou discursiva, já que o conceito de discurso da ADD já implica língua e enunciação, língua mobilizada por atos enunciativos. Volochinov e Bakhtin têm inclusive exemplos de análise sintática enunciativa, em Marxismo e no texto de Bakhtin como professor. Ela oferece assim parâmetros que os estudiosos de Bakhtin foram transformando em uma teoria e análise do discurso, tendo, portanto, grande flexibilidade, algo não muito comum em outras ADs. Não posso no momento comparar as várias teorias do discurso, mas, se o fizesse, mostraria também as semelhanças entre elas e a ADD, e os aspectos em que diferem da linguística tradicional (sem a qual, por outro lado, como reconhece Bakhtin, não haveria estudo linguístico). Digo isso para esclarecer que não digo que elas não sejam legítimas ou que não sirvam a uma análise. São, claro, legítimas, e, cada qual em seu domínio, produtivas. O que me atrai na ADD é que sua produtividade me parece maior, especialmente porque ela é dotada, repito, de grande flexibilidade. É claro que acabo sendo tendencioso e considerando a minha melhor, porque é com ela que eu trabalho. Estou tão acostumado que de repente não vejo suas limitações, seus defeitos até. Alguém de outra área pode apontar que de fato a gente não deu conta de alguma coisa. Vamos entender que ela consegue cobrir a ideia de que o enunciado, unidade de análise, que só existe quando objeto de uma enunciação, se constitui de três componentes discursivos, ao lado dos aspectos linguístico-textuais estritos, a saber: a endereçabilidade, o fato de sempre ser dirigido a alguém; a referencialidade, o fato de remeter a algum objeto do mundo que é apropriado linguisticamente; e a expressividade, o fato de sempre refletir a posição valorativa do locutor, que não corresponde necessariamente à do interlocutor, e assim um influencia o outro. Acho que essa é a principal diferença. Nenhuma outra teoria cobre isso. Toma-se o dialogismo como teoria do ser no mundo, da linguagem, do discurso e da enunciação, com destaque para as relações dialógicas permanentes entre enunciados e entre os sujeitos, retrospectivamente e prospectivamente. Trata-se de algo que não se faz presente em nenhuma teoria que seja de meu conhecimento.
OC: Os gêneros do discurso são definidos como formas relativamente estáveis de enunciado. Até que ponto há uma relativa estabilidade do gênero e até que ponto cria-se um gênero?
Sobral: Mesmo quando se cria um gênero, permanece a relatividade da estabilidade. Mas ele se altera quando se alteram as posições enunciativas. No momento em que passo a me dirigir ao outro de maneira distinta, eu mudei o gênero. Por exemplo, uma orientanda minha, Fernanda Guimarães, estudou uma dissertação na área de educação em forma de cartas, cartas dirigidas aos professores, aos gestores educacionais de diversos lugares do país etc. Qual é o gênero, nesse caso? Dissertação de mestrado. A forma pouco importa nesse sentido. Pode até fazer em história em quadrinhos e ela continuará a ser analisada como dissertação de mestrado. Se você vai defender uma dissertação, pode ser em forma de filme, de revista, de livro, de cartaz, de panfleto, não importa, ela continua dissertação. Conheci um trabalho na Física em que o aluno defendeu a tese em forma de história em quadrinhos. Por ser uma HQ significa que eu entendi? Não entendi nada, porque era na Física. Então, o que define o gênero é a parte estável, mas a parte estável também é relativa, porque depende igualmente da posição relativa dos sujeitos. Segundo Bakhtin, os gêneros do discurso são praticamente infinitos, nascendo de acordo com as necessidades de comunicação humana. O surgimento de gêneros não se liga diretamente à estabilidade relativa. Esta se refere ao fato de todo gênero combinar elementos estáveis, que lhe permitam ser identificado como o gênero que é, com variações dependentes do contexto de uso, das necessidades específicas de cada interação e da posição relativa do locutor. A parte estável dá conta dessa identificação, e essa parte define basicamente o gênero. A parcela marcada pelo “relativamente” dá conta desse seu dinamismo. Podemos alterar partes materiais do gênero sem que ele se altere como tal. As mudanças capazes de tornar o gênero outro gênero são aquelas que afetam seu foco, o endereçamento e o projeto enunciativo. Porque o gênero se define pragmaticamente em termos daquilo que realiza e daquele a quem se dirige. Bakhtin é claro quanto a isso. Tema, forma de composição e estilo são meios técnicos de realização do gênero. Ninguém vai entender o gênero tentando identificar esses três elementos. Não são categorias. Apenas estão lá e não podem ser vistos de forma separada. Podemos mudá-los e manter o gênero. Eis o relativamente da expressão “relativamente estáveis”. Mas se mudarmos o projeto enunciativo, ou seja, aquilo que o gênero realiza, e o interlocutor a quem ele se dirige, na verdade, seu interlocutor típico, o gênero se torna outro. Claro que há mudanças do gênero, mas ele permanece o mesmo. Por vezes, ele apenas se diversifica. Por exemplo, uma carta, ou email, é, na verdade, um conjunto de cartas, que constituem gêneros distintos que têm algo em comum, porque há a carta pessoal, a institucional, a carta convite etc., cada uma com seus objetivos. Do mesmo modo, a capa de revista, de livro, de relatório etc. é um gênero discursivo. Na verdade, capa de revista é um gênero, capa de livro outro, capa de relatório um terceiro. O que há em comum é o fato de serem capas, de indicarem o teor de algo, mas não são o mesmo gênero porque cada qual realiza uma função. A capa da revista não traz os mesmos elementos que a do livro ou do relatório, porque sua função difere. Eu chegaria a propor que capa de revista semanal e revista mensal são diferentes. Tal como quando falei de cartas. O que determina o gênero é o projeto enunciativo, o que se realiza com o gênero. E cada uma dessas capas realiza uma coisa distinta, mesmo tendo algo em comum. Para resumir, os gêneros se alteram quando se alteram seus dois componentes principais: o endereçamento e o projeto enunciativo. Afora isso, há apenas mudanças dos aspectos superficiais do gênero. Agora há casos também que a gente tira o gênero de um lugar e leva para outro lugar. É o caso, por exemplo, de uma placa de trânsito que pode virar um poema. Quando se muda o essencial é que se muda o gênero. Por exemplo, ao pegar os aconselhamentos na medicina, na psicologia, na religião e inserir tudo num livro de autoajuda, aí passamos a ter outro gênero. Portanto, os gêneros novos surgem a partir da necessidade de comunicação dos sujeitos. Outro exemplo: nós inventamos a entrevista-aula ou a aula-entrevista, porque estou respondendo à entrevista na aula, dirigindo-me aos alunos. Ela tem outras características – mas ela continua a ser uma aula? Continua. Ela continua a ser uma entrevista? Continua. Isso que é interessante. Ela não é só aula e não é só entrevista. Os gêneros, assim, mantêm aspectos estáveis, mas estão em contínua mudança. Quando muda o essencial, surge outro ou outros gêneros a partir do gênero afetado. Afora isso, surgem novos gêneros das necessidades de comunicação dos sujeitos, continuamente, a ponto de não ser possível fazer um inventário, ou dicionário, de gêneros.
OC: Em um de seus artigos, você afirma que ensinar gêneros requer possibilitar que os alunos “assumam as posições enunciativas de usuários da língua em formação”. O que é essa posição enunciativa? Como possibilitá-la?
Sobral: A escola está trabalhando em muitos casos com simulacros de gênero. Ela pega o aluno e diz: “Escreva uma carta ao editor”. O aluno, de fato, vai mandar a carta ao editor? Ela vai realmente ser entregue a alguém? Está falando de alguma coisa concreta? Não. O problema é que no Brasil a educação ainda é pensada em muitos casos como transmissão. Yves Clot veio aqui e, diante de um público em evento, disse que gênero não se transmite; gênero se ensina. Alguém da plateia pediu a palavra e disse: “Ou se deixa aprender”. Por isso, sempre digo que o ENEM tem dignidade quando diz que quer a produção de um texto dissertativo-argumentativo. Ou seja, a abordagem é textual. Não fala em gênero. É preciso evitar o simulacro de gêneros na escola. A escola tem gêneros escolares, como o texto da redação do ENEM, que só existem como tais na escola. O aluno escreve na escola para o professor; sua posição enunciativa é a de quem escreve para o professor na escola, algo que na verdade vai se alterar sutilmente de acordo com o professor para o qual escreve. Se ele escreve uma carta ao editor que não for ser enviada ao editor, ele estará praticando a forma textual de carta ao editor, mas não o gênero carta ao editor. O que importa é que ele perceba que sua posição enunciativa, na escola, é a de aluno avaliado pelo professor. O editor, se recebesse a carta, poderia ou não publicar, mas não a iria avaliar como o faria um professor. Na verdade, escrever uma carta ao editor tem de considerar o editor específico, pois o editor em geral é uma ficção. Cada editor é igual aos outros, mas diferente de todos. É preciso ter de fato na escola a necessidade de distinguir claramente a prática escolar de usar a forma de gêneros como treinamento e o uso real de gêneros na vida extraescolar. Devemos mostrar o que é posição enunciativa, dar exemplos e analisar posições enunciativas, com base em textos reais de gêneros. Assim, o que o professor precisa fazer na escola para acabar com essa confusão? Partir dos seguintes pontos de vista: quem são os produtores típicos desse gênero? Quem é que normalmente escreve isso? Em que ambiente social são tipicamente produzidos? Em que ambientes sociais eles circulam? A gente fala em produção, recepção e circulação. Quem produz, para quem produz e onde. E especialmente, quem são os seus receptores típicos ou a quem eles são endereçados? Se o professor der aula e o aluno pensar a partir disso, eles terão aprendido gêneros. Fora isso, terão aprendido a trabalhar só com texto. Porque trabalhar com gênero tem de responder a essas perguntas. O que pode dar certo? Fazer o aluno escrever pequenas coisas para interlocutores reais. O problema é que passamos da análise sintática para a abordagem dos gêneros sem passar pelas teorias de texto devidamente. Se observar os PCNs, em duas de suas páginas, 18 e 62, vamos encontrar três definições de gêneros, uma textual, uma retórica e uma interacionista. Esta última não chega a ser bakhtiniana, não chega a ser discursiva. Ou seja, o texto é o recalcado do trabalho com os gêneros no Brasil. E estamos vendo justamente o problema de reduzir o gênero ao texto ou a uma forma textual, como se todo gênero só pudesse se realizar de uma forma. E isso está errado. A questão é que pegamos o gênero de algum lugar e escolarizamos. O próprio Schneuwly afirmou que não propôs uma sequência didática para todo mundo seguir e copiar. Ele só disse como é que fazia e ressaltando que era de acordo com a necessidade e o ambiente. Mas seu exemplo virou modelo. Com gêneros discursivos houve algo parecido.
OC: A partir de sua discussão acerca da complexa relação entre os gêneros discursivos em seu processo de escolarização, quais seriam as maiores dificuldades encontradas na transposição desses gêneros de seu “habitat natural” para as práticas escolares?
Sobral: Foi o que falei. De que temos de partir de determinadas perguntas, entender o gênero como uma forma de interação, para além dos aspectos técnicos. É claro que cada circunstância vai exigir um certo gênero ou alguns gêneros específicos. O grande problema é reduzir o gênero ao texto em si ou a uma forma textual, como se cada gênero só pudesse se realizar por um mesmo texto. Todo texto é parte de um gênero, mas nenhum gênero se restringe a algum texto específico. Se eu trabalho com a forma, estou trabalhando com o texto. Se eu trabalho com a relação enunciativa, estou trabalhando com gênero, que é o que se realiza na interação. Logo, é esse o foco do ensino a ser seguido na escola. A escola estuda gêneros não escolares, é claro, mas deve evitar escolarizá-los de um modo que os transformem em objetos estáticos. Porque gêneros não são objetos, mas formas de interação via linguagem, que têm o texto como parte necessária, mas não suficiente. Ela tem seus próprios gêneros, legítimos, que servem inclusive para ela estudar e ensinar outros gêneros. Mas os gêneros extraescolares só circulam na escola como objeto, não como gêneros reais, porque esse não é seu habitat. Um exercício que faço com alunos é pedir que eles descrevam como escreveriam um dado texto para vários interlocutores a, b, c. Quando fazem isso, eles percebem que o texto fala da mesma coisa, mas fala para cada interlocutor de uma maneira específica. Isso ajuda a mostrar o caráter relativamente estável do gênero. Importa mostrar ao aluno o que é gênero como forma de interação, para além dos aspectos técnicos. Do contrário, não faz sentido ensinar gêneros, que não é o mesmo que transmitir. Transmitir gêneros é destruir tudo o que é vital neles.
OC: Em outro de seus artigos, o senhor menciona uma concepção filosófica-discursiva de educação. Poderia falar um pouco sobre as convergências entre os estudos de Bakhtin e Vygotsky que o texto aponta?
Sobral: Os dois partem da ideia de que o mundo é objetivado socialmente e é apropriado individualmente. As teorias de Vygotsky e as propostas do Círculo de Bakhtin permitem dizer que o mundo não chega à consciência sem mediação: o sensível é o plano de apreensão intuitiva do mundo sem elaboração teórica, o plano do dado, das impressões totais de que fala Adam Schaff, dos conceitos espontâneos de Vygotsky; o inteligível é o plano da elaboração do apreendido, dos conceitos científicos, da ação das categorias humanas de organização do contínuo do mundo em sentido humano. Tal como para a concepção dialógica, para ele [Vygotsky] a consciência depende da linguagem para formar-se e manifestar-se, assim como esta precisa da consciência para existir. Volochinov fala claramente que a consciência é totalmente ideológica e a ideologia é totalmente parte da consciência. A ideologia influencia a consciência. A consciência influencia o ideológico. E as duas se articulam. E como a linguagem se acha imersa no mundo, sendo por ele constituída, ao mesmo tempo em que o apreende, a consciência constrói o mundo não lhe impondo suas categorias, mas situando-se na concretude desse mundo para se constituir – ela o apreende relacionalmente. Pode-se dizer que, também para Vygotsky, o sujeito é um agente, um organizador do discurso, responsável por seus atos e responsivo ao outro; alguém dotado de um excedente de visão com relação ao outro: o sujeito sabe do outro o que este não pode saber de si mesmo, ao tempo em que depende do outro para saber o que ele mesmo não pode saber de si. Assim, a discussão de uma educação dialógica, aqui introduzida, é uma tentativa de estabelecer parâmetros para uma junção das teorias do Círculo de Bakhtin e de Vygotsky. No primeiro caso, com ênfase na teoria da cultura e, no segundo, nas relações entre pensamento e linguagem em suas implicações educacionais, a fim de propor uma alternativa que supere tanto a tirania da prática – que se restringe ao singular e perde de vista a generalidade tão necessária ao ato de conhecer (e transformar) o mundo – como a tirania da teoria – que se restringe ao geral e perde de vista a riqueza da(s) singularidade(s). Eu acho que a tirania da teoria é que está estragando o trabalho com gênero na escola, porque esquece também a prática. A escola deveria ser, nessa concepção dialética dialógica, um espaço de exploração sistemática do aspecto dinâmico da vida humana, que é a criação de sentidos a partir da relação entre os seres – não de saberes estáticos pretensamente válidos por si mesmos e transmissíveis como conteúdos, que é o que fazem muitas vezes com os gêneros, e que apagam o indivíduo. Assim, pensando nos dois teóricos, Vygotsky fala para o professor provocar o aluno, fazer o aluno ir além do que sabe. Bakhtin vai dizer, na teoria da cultura, que o sujeito está sempre influenciado pelo outro, que o outro desloca o sujeito.
OC: Pode-nos contar brevemente sobre uma das pesquisas que está desenvolvendo, “Por uma pedagogia dialógica ‘Glocal’: os Gêneros do discurso na Escola Básica”?
Sobral: Ao longo de uma pesquisa anterior, consegui identificar as dificuldades, êxitos e anseios sentidos pelos profissionais sujeitos de pesquisa. Contudo, dada a magnitude do processo, não se conseguiu dar início ao processo de desenvolver o último objetivo: “uma metodologia de ensino de gêneros sem modelização tanto para a formação de profissionais de Letras numa universidade privada do sul do Estado do Rio Grande do Sul como para a formação continuada de professores de língua materna do Ensino Elementar e Médio de escolas privadas e escolas públicas municipais estaduais de um município do sul do Estado do Rio Grande do Sul”. O presente projeto, intitulado “Por uma pedagogia dialógica “glocal: os gêneros do discurso na escola básica”, busca desenvolver essa metodologia, entendida em termos dialógicos como uma junção contextualizada e flexível entre saberes e recursos locais (contexto escolar) e fundamentos e experiências globais (contexto universitário). Os saberes e recursos locais vêm de cada sujeito-professor (bem como do coletivo de professores) em seu contexto escolar específico, implicando, da parte da universidade, o devido respeito à especificidade das experiências docentes destes. Os fundamentos e experiências globais vêm da universidade, que, de modo geral, desconhece os contextos locais, trabalhando, por diferentes motivos, na busca de generalizações que permitam difundir os saberes produzidos para além dos contextos de sua produção. Essa junção pretendia constituir a base de uma proposta de ensino de gêneros sem modelização. Assim, unir esses dois planos, o local e o global, criar o que se denomina modernamente uma proposta “glocal”, entendida aqui como o diálogo, em igualdade de condições, entre o contexto de cada sujeito-professor e os princípios gerais vindos da universidade. Infelizmente, o projeto não teve continuidade porque a UCPel fechou os cursos de Letras em todos os níveis. Afora isso, certo órgão de fomento recusou o projeto porque, segundo um avaliador, trazia um “jargão” (!) e, segundo outro, não era de pesquisa, mas de extensão. Isso porque, digo eu, em vez de impor aos professores uma proposta da Universidade, queria que eles participassem da proposta? Torre de marfim?
OC: Os PCN trouxeram o texto para o centro das aulas de língua portuguesa e propuseram um modelo de produção textual baseada nas práticas sociais, consequentemente, lançando mão dos gêneros discursivos, que passaram a ser contemplados pelos currículos e materiais didáticos, de forma geral. No entanto, sabemos que não basta levar o gênero para a sala de aula sem ter clareza da diferença entre ensinar gêneros e transmitir gêneros. É possível dizer que houve avanço no ensino de línguas a partir da ascensão dos gêneros discursivos?
Sobral: Em parte sim. Só que num lugar inesperado, com o qual querem acabar, que é o PIBID. Não sei por que, mas é um lugar em que parece funcionar a questão do gênero, talvez por ser um diálogo entre Universidade e escola, né? Para mim o PIBID deveria ser o modelo de formação de professores de língua materna. Mas ainda se privilegia mais o texto, como se houvesse um medo de o perder de vista. Os PCN têm um problema; eles trazem três definições distintas de gênero, sem as integrar, e vão ver que a Base [Nacional Comum Curricular] não mudou isso: como tipos de texto, como estratégia retórica e como evento comunicativo institucionalizado. Tem tudo que é gente aí, só não tem Bakhtin, embora digam que tem. Mas eu não vejo tratamento propriamente enunciativo-discursivo do gênero. Talvez porque, já falei antes, aqui no Brasil passamos da análise sintática para os gêneros, com as teorias de texto vindo depois, mas aí já era tarde. Acabaram institucionalizando a ideia de gêneros nos documentos oficiais. Deram um jeito de transformar os gêneros em conteúdo a ser transmitido, e não em uma forma de interlocução. E aí o texto virou o nosso recalcado, aquilo de que sentimos falta, e essa falta tem levado muitos a permanecer no texto em termos estritos, sem explorar a radicalidade da abordagem de gêneros. Sim, há grandes teóricos do trato textual, como dizia Marcuschi, incluindo ele e Koch, mas o gênero padece. O que acho é que não ocorreu uma real passagem da análise sintática ao texto e daí para o gênero. Inclusive porque as análises de discurso muito cedo fizeram sucesso no Brasil. Há, portanto, carência de uma abordagem integrativa. Tenho tentado desenvolver isso em textos em parceria com Karina Giacomelli, que é extremamente didática e, assim, complementa minha mente teórica. O Clécio Bunzen vai publicar um livro, com um capítulo de nossa autoria. É a formulação mais prática a que chegamos, destinada a professores dos vários níveis de ensino. Porque vemos que há uma quase textualização dos gêneros, que perde de vista o fato de que a vantagem da ideia de gênero é seu aspecto enunciativo-discursivo. Sem explorar isso, é melhor fazer uma boa análise sintática, porque aí se aprende mais sobre língua do que trabalhar gênero de uma maneira textualizada.
OC: Então, você já teve condições de fazer algum tipo de avaliação do novo documento da educação, a BNCC. Em relação ao ensino de língua portuguesa, o documento está mais próximo ou mais distante do que se entende um ensino baseado nas ideias do círculo de Bakhtin?
Sobral: O que eu disse sobre os PCN se aplica, ao menos em parte, à Base. Ela não mudou muito isso. Tem valor, claro. Mas tenta apenas retomar e explicar, só que no fundo ela traz mais de uma definição para gênero. Fala até em um trabalho com diversos gêneros, mas ainda é de caráter bastante textualizante. Tem até uma passagem que o documento diz sobre reconstrução do contexto de produção, circulação e recepção. Mas como é que vou reconstruir? Vou fazer uma maquete do texto? Fica algo meio complicado. Portanto, o que o documento propõe não me parece muito diferente dos PCN. Aponta-se para a centralidade do texto como unidade de trabalho e até para a perspectiva enunciativa-discursiva, mas não de forma integrada. Ou seja, tem as duas lá, mas ninguém as fez trabalharem juntas. Há, também nela, o tratamento de vários aspectos, mas ainda sem integração. A BNCC é um avanço, mas cabe explorar melhor as possibilidades que uma perspectiva dialógica abre. Ocorre que, no tocante a gêneros, Bakhtin é mais uma citação obrigatória do que uma presença real. Não entendo a dificuldade de se chegar a uma concepção integrativa. O que tenho proposto, com Karina Giacomelli, é que todos os aspectos linguísticos e textuais podem e devem ser tratados do ponto de vista enunciativo-discursivo. Mas vejo, na verdade, que ou não se chega propriamente ao nível da enunciação e do discurso ou, o que é pior, vê-se o gênero do ponto de vista do texto. A concepção vigente é textual, um pouco pela influência do ISD, sem tirar o valor da proposta, claro. Marcuschi, que trabalhava com teorias textuais, já alertava para isso há cerca de 15 anos. Todo texto é parte de um gênero, mas nenhum gênero se restringe a algum texto. Falta ver isso na prática. De todo modo, o simples fato de isso ser mencionado já é um avanço. Precisamos ser modestos em nossas expectativas. Porém, uma coisa é importante dizer: ninguém é obrigado a seguir literalmente um documento. Temos de usar o documento para nossos fins. Fala-se lá algo de forma geral, e a gente deve entender do nosso jeito. Nem sei se precisa, por exemplo, falar em multimodalidade. Vamos dizer que existem textos que combinam várias linguagens. Podemos chegar e verificar como imagem e palavras dialogam em um texto. Qual é a relação entre os dois. Que todo ele cria. Para onde conduz a imagem. Para onde conduz o texto escrito. E de que forma eles se integram para formar um todo. Chego à conclusão que falta a participação na formulação dos documentos de profissionais que sejam de uma perspectiva dialógica. Porque aqueles que foram lá para a elaboração dos documentos estavam falando de Bakhtin em segunda mão. E ainda assim vemos que Bakhtin virou mais uma citação obrigatória do que uma presença real.
OC: Há um discurso circulante do atual governo que “demoniza” bases teóricas marxistas alinhadas a uma perspectiva sócio-histórico-ideológica (o que inclui, também, a própria definição de dialogismo). Como o senhor acredita que isso tende a afetar as escolas e as práticas de ensino? E como nós, professores, podemos servir como um instrumento de resistência?
Sobral: Os sujeitos são o centro da linguagem para a concepção dialógica. No Círculo não se fala de inconsciente, mas não há necessidade de considerar especificamente isso. Importa a ideia de que o próprio inconsciente é afetado em alguma medida pela vida social do sujeito. A ideologia é tratada pelo Círculo de modo revolucionário, para além da teoria do reflexo, a de que a superestrutura reflete a base material invertidamente, a da falsa consciência. Para o Círculo, tudo é ideológico no sentido de que todo material semiótico cria sentido e de que o sentido nasce da interação, do confronto entre as valorações distintas dos envolvidos, e valoração é ideológico. Como tudo que faz sentido é valorado, tudo é ideológico. Na verdade, essa concepção é mais materialista-dialética, fundada em Engels e Lênin, do que marxista. Está bem longe do marxismo vulgar, da teoria do reflexo. Esse discurso do governo é ideológico, claro, e prova a própria tese marxista de que é a existência do homem que lhe determina em alguma medida a consciência que ele tem. É o discurso da classe dominante tentando ocultar o fato de que é dominante porque há dominados, tentando impedir que o oprimido se revolte. O discurso reconhece o poder da linguagem para contestar a versão do mundo que a classe dominante apresenta. Como diz Paulo Freire, o opressor nunca vai querer perder essa condição. Quanto a nós, seremos afetados porque há quase um controle estalinista, mas ele ainda está no plano geral, não no microplano de cada aula. Resistimos pelo simples fato de que somos profissionais da linguagem. Não precisamos mencionar a filosofia de Marx ou o materialismo dialético para manter a liberdade de pensamento. Na outra ditadura líamos escondido o que queríamos, e vamos fazer o mesmo agora, se for o caso. Na época como agora, os repressores não têm conhecimento para identificar o que fazemos. Basta não mencionar certas palavras-chave para eles se atrapalharem. A perspectiva de que o ser humano não é um ser apenas biológico, mas social, e que muda ao longo de sua existência, assim como mudam as sociedades, já é parte do patrimônio da humanidade e nenhuma ditadura, de direita ou de esquerda, vai conseguir apagá-la.
Entrevista-aula ou aula-entrevista excelente.
Oi, Sílvio. Muito obrigado pelo feedback. Teremos mais entrevistas especiais em breve.