por Ingrid Lívero e Isabela Cristo
Era um dia comum e eu tinha uma consulta marcada no dermatologista. Cheguei ao consultório e, enquanto esperava ser atendido, ouvia conversas paralelas na sala de espera. Duas senhoras conversavam sobre a filha da Marcinha da padaria, que foi aprovada no vestibular para o curso de Letras.
Uma das senhoras lamentava horrores, falando que “onde já se viu prestar vestibular para Letras? A coitada vai ser professora, para morrer na miséria depois de se matar por anos”, demonstrando sua terrível indignação pela escolha da menina. A outra senhora ouvia tudo atentamente e absorvia todas as informações, como se estivesse internalizando e refletindo sobre.
Coitada da menina mesmo, que não podia nem fazer aquilo o que queria porque os outros iriam julgá-la. Qual o problema da menina cursar Letras? É um curso como outro qualquer, que forma profissionais do mesmo jeito. A única coisa que não entendo é ela querer estudar nossa língua portuguesa, coisa de louco!
Depois de muito ouvir as lamentações da senhora, a outra começa a falar:
– Mas olha só, querida amiga, Letras não forma apenas pessoas para lecionarem. Meu sobrinho fez o mesmo curso e hoje trabalha como tradutor, e ganha um bom salário. Ele estava me contando que, da turma dele, de 20 alunos, apenas 6 seguiram a carreira de professor, os outros foram para as áreas de editoração de revistas e jornais, revisão de textos para grandes empresas publicitárias e, como ele, adentraram agências de tradução.
Foi como um desabafo. Quase levantei da minha cadeira e aplaudi aquela senhora, mas consegui me conter. O interesse pela língua portuguesa ainda era incompreensível para mim.
– Tradução hein? – a senhora da crítica continuou. – Para mim ainda parece um caminho sem saída, ou melhor, sem muito futuro.
– Ora, nosso país não iria muito longe sem professores, ninguém iria, além de revisores ortográficos para os materiais de ensino das crianças, por exemplo. Aliás, tais materiais nem seriam escritos!
Já estava a ponto de me intrometer na conversa e declarar aquela senhorinha a pessoa mais sensata e gente boa que já havia encontrado. Não tinha tanta certeza se só eu havia percebido a ironia em que, tratando-se da argumentação que acontecia ali, a mulher desgostosa quanto à Letras poderia se sair melhor tentando convencer a amiga se dominasse mais as técnicas de linguagem. Quem sabe até a filha da Marcinha aprendesse algo do gênero na faculdade para compartilhar com ela depois?
Nesse momento a atendente chamou um paciente que esperava desde que cheguei ali, e que não parecia nem um pouco satisfeito com a demora, chegando mesmo a dirigir palavras grossas à moça e um tanto emboladas. Só após a própria atendente chamar outro rapaz, que também era funcionário, para responder ao paciente é que percebi que falavam num idioma diferente.
As senhoras, para meu deleite – queria muito ver se alguma ia ceder ao lado da outra! -, não perderam nem um segundo da situação, e assim que o paciente e o funcionário se entenderam já começaram a comentar.
– Aposto um trocado que o rapaz elegante ali conhece algumas das áreas de Letras – a senhora defensora da aprovada no curso disse.
– E estaria aqui trabalhando num consultório? Não acredito mesmo! – a outra replicou. Ainda que ele tenha conversado com o senhor de forma bem fluente.
A senhora defensora soltou uma risada antes de falar:
– Pode até não ser um estudante de Letras, mas garanto que a filha da Marcinha aprenderá toda essa dinâmica e muito mais no curso. Imagine estudar o funcionamento de nossa língua? Entender vários detalhes, poder usá-los para elaborar uma crônica, por exemplo, ou saber se comunicar em qualquer situação, transpor essas palavras de uma língua para outra… até ser escritora em modalidades diferentes!
– Escritora! Puxa vida, minha cara, agora desejo mesmo, do fundo de meu coração, que a menina prospere nessa carreira para não decepcionar os que colocam esperança na área… – a isso a outra não respondeu, apenas sorriu como se sentisse ter ganhado um breve consentimento da amiga, ou talvez por acreditar piamente naquilo que dizia, ao que dispensava falar mais alguma coisa. – Você também entende e muito do curso de Letras, não? Até parece que viu de perto…
A atendente chamou meu nome, e como estava sentado a duas cadeiras de distância das senhoras elas pararam de conversar enquanto eu me levantava para ir até a funcionária. Senti um pouco de raiva por notar que elas continuariam a conversa, só que o alvo agora seria eu e minha camiseta especial do vestibular da universidade. Não saberia o destino da filha de Marcinha, tampouco se aquela senhora tinha visitado uma faculdade. Ainda assim, comecei a considerar o quanto aquela conversa me ajudou a esclarecer muitas coisas, até mesmo o interesse pela língua portuguesa que me parecia tão duvidoso, e talvez era o que faltava, era o empurrão final para que eu me dedicasse a carreira que havia escolhido e tão alegremente conseguido uma vaga: um profissional de Letras.
Parabéns pelo texto.