“As redes sociais amplificam certas coisas, não de acordo com a enunciação do discurso, mas de acordo com a sociedade que nós temos. As simpatias e os ódios não vieram do texto ou da pessoa que eu sou. (…) Precisamos pensar as redes sociais como praça pública e ter responsabilidade com elas. Essa rapidez e esse fluxo contínuo das redes não combinam com o pensamento e nos fazem errar.”

 

A Profª Drª Ana Cristina Teodoro da Silva atua como docente no curso de Comunicação e Multimeios, do Departamento de Fundamentos da Educação, da Universidade Estadual de Maringá. É doutora em História pela Unesp e pós-doutora pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ). No início de 2019, foi a paraninfa na colação de grau dos formandos da UEM. Em seu discurso na cerimônia, convocou o público a uma reflexão sobre um país dividido pós-eleições gerais de 2018. A professora trabalha com temas voltados para a comunicação como ética, história ligada à comunicação, teorias da comunicação e metodologia de pesquisa. Em entrevista-aula concedida a O Consoante, intitulada “Corpo, mídia e política”, Ana Cristina discutiu alguns temas relacionados a suas pesquisas e atuação docente, incluindo um olhar bastante peculiar sobre o contexto pandêmico.

por Greyce Silva, Izabelle Diniz, Neil Franco e Talita Souza

O Consoante: Como é para você ser mulher e lésbica em uma universidade pública brasileira?

Ana Cristina: Em primeiro lugar, vou falar algumas palavras sobre a universidade pública brasileira. Trabalhar em uma universidade pública significa um especial compromisso com a sociedade que investe em nós. É ela que paga nosso salário. Logo, temos um grande compromisso com a ética e com a formação do aluno. Quando a pergunta é direcionada para esse contexto específico, é importante lembrarmos que universidade vem da palavra universo. Supõe-se que seja um local de pessoas esclarecidas. E o Brasil é um lugar de enormes injustiças sociais, um país racista, um país machista. Portanto, esse é o contexto presente nessas três palavrinhas da pergunta formulada. Eu vou fazer uma brincadeira antes de responder objetivamente, para pensarmos no tema da entrevista. Por que eu sou lida como mulher? O que em mim me faz mulher? Não tem como não lembrar de Simone de Beauvoir e sua famosa frase. A escritora diz que a mulher não nasce mulher, ela se faz mulher e, claro, isso vale também para os homens. Simone de Beauvoir foi muito precisa em seus estudos no momento em que ela percebe que não nascemos com um gênero. Mais tarde, teóricas dirão que nós não nascemos com um sexo, mas nós nos constituímos assim. Eu sempre enuncio ser mulher, e sabemos que a questão do discurso é muito importante. É importante refletirmos sobre o que nos constitui como mulheres e homens, da mesma forma a lésbica. Por que me leem como lésbica? Claro, existe uma questão corporal, daquilo que é feminino e masculino associado à sexualidade. Se as pessoas forem bastante honestas, verão que existe uma leitura de aparência que imediatamente é associada a comportamentos sexuais e que gera uma identidade a partir de um pré-julgamento. E essa identidade determina como ela será tratada, como essa pessoa poderá fluir nos espaços sociais. Assim, a comunicação corporal constitui nossa vida a despeito do que enunciamos verbalmente. Um teórico alemão, Harry Pross, entende que o corpo é nossa mídia primária. Desde que nascemos, e até mesmo antes de nascer, enunciamos, constituímos narrativas e com elas nos constituímos a partir do corpo. Nossa primeira mídia, a fundamental, é o corpo. Essa é uma base muito importante. Eu enunciei apenas uma vez ser lésbica, e era uma estratégia de discurso, uma estratégia política. Foi na situação do discurso, no ano de 2019, quando fui paraninfa da formatura da UEM. E eu enuncio agora: eu não sou lésbica. Tenho uma trajetória de 23 anos na UEM. Principalmente nos primeiros anos de trabalho, eu era vista como uma mulher heterossexual. Experimentei relações sexistas e vou usar dessas vivências iniciais para falar sobre as experiências de uma mulher heterossexual. A mulher tem que provar que pode estar onde ela está – isso é diferente para o homem na minha percepção – ou sujeitar-se a ser “mulher”, e esse ser mulher significa envolver o corpo com certas roupas, ou com as “roupas certas”, e usar maquiagem, do “modo correto”. Envolve delicadeza e uma certa postura de sensualidade na relação com os homens. A relação da mulher heterossexual, mesmo dentro da universidade, é sexista, não tem como escapar disso. Quando me viram como lésbica, eu passei a viver em uma espécie de não lugar. Os homens em geral me desprezavam, e muitas colegas mulheres pararam de me abraçar. Eu parecia um estorvo, não me enquadrava naquelas relações. Evidentemente, isso tem consequências profissionais. Quem eu seria se fosse uma mulher heterossexual? Ou se fosse um homem? Onde eu estaria? Sofri certamente preconceitos, tristezas, vergonhas. Mas eu quero terminar de responder à pergunta dizendo que eu estou bem aqui hoje. Com o passar do tempo, a maturidade, com alguma sorte, trabalho e elaboração, podemos transformar preconceito em força e energia. Hoje eu gosto muito de ser o que Drummond chamaria de “gauche”, marginal. Costumo dizer que quem está muito confortável no contexto em que vivemos está em uma posição que eu não gostaria de estar.

OC: Ao ler seus textos notamos que você desenvolve uma escrita singular com um modo diferente de pensar em temas e ações que temos como algo normalizado em nosso cotidiano. Pensando nisso, como ocorre o seu processo criativo em pensar diferente do tido como normal?

Ana Cristina: Vocês são craques em fazer pergunta difícil. Mas está certo, é isso mesmo! É gratificante alguém identificar um processo criativo no que a gente faz. Eu não imaginava viver um momento em que a minha constituição como pessoa, a trajetória acadêmica e o que eu acredito estivessem integrados. Acho que uma entrevista propicia isso. E vocês estão de parabéns pelo formato. Isso faz pensar fora do lugar habitual na universidade. Agradeço pelo que chamam de escrita singular. Eu não sei se foi um elogio, mas eu vou considerar assim (risos). Certamente eu tenho colegas que usariam como eufemismo para falar “Olha, você escreve de uma forma maluca. Eu não sei como alguma revista aceita os seus textos”. Eu acho que vamos nos permitindo com o tempo expressar mais o próprio pensamento. Sabemos que a universidade é uma instituição plural e isso nos dá esperança. Dentro da normalização pulsam movimentos, linhas, possibilidades que furam ou que subvertem as normas. A própria história natural da espécie humana se constitui com movimentos que fugiram da normalidade. Eu sempre procurei o não dito no normal, o alternativo, o velado. Na realidade essa aparência de normalização, de hegemonia, é só aparência. Acho que caberia a palavra ideologia, uma grande ideologia, como se a vida pudesse ter um rumo só, uma linguagem só, uma organização só, como se ela fosse ordenada de um jeito só. Claro que a normalidade é necessária para que tenhamos alguma ordem social. Vocês imaginam como seria se estivéssemos em uma sociedade sem leis? Se não tivéssemos constituído a moral, nós teríamos nos preservado? A vida também demanda uma certa ordem, uma certa regularidade. E isso é bem interessante de pensar. A norma serve à vida também. Historicamente seria uma ignorância não perceber como as normas, as instituições nos moldaram. A ciência é um exemplo, uma instituição humana e, portanto, cheia de erros. A ciência se institui de modo tão forte, porque ela propõe previsibilidade para a vida ou, muitas vezes, dá a ilusão de previsibilidade. Vou voltar para a pergunta. Por que eu sou “gauche”? Eu sou uma marginal dentro da universidade que pensa as brechas da norma e as limitações dessa norma. Eu não sei dizer como se dá o meu próprio processo criativo. Tem como definir criatividade? Mas algumas coisas eu consigo elencar, para não fugir à pergunta e para explicitar o limite no meu pensamento e até onde eu consigo ter consciência desse processo. Uma primeira coisa: pensar com a minha cabeça. Essa, inclusive, é uma premissa presente na filosofia de Gilles Deleuze. É fácil falar, mas precisamos estudar bastante e deixar o tempo passar, envelhecer, para nos darmos o direito de pensar com a própria cabeça. Eu nunca me conformei em trabalhar por obrigação. Por que o trabalho precisa ser um fardo? Michael Foucault, elaborando sua ética, foi buscar nos gregos a noção de cuidado de si. Quando a pessoa olha para si mesmo, percebe que paixões ela tem, paixões inclusive como vícios. A noção propõe refletir se essas paixões são positivas, criativas ou se são negativas. Então, temos que ter um olhar para dentro, sem dúvida nenhuma, e outro para fora. Terapia e literatura, introspecção e fruição.  Mas é uma pena que tenham forças tão poderosas que querem que produzamos como massa, que nos querem apenas como força produtiva de reprodução de um certo sistema. Eu quero chamar atenção para uma aspecto muito importante: o tempo. Uma das coisas fundamentais para observarmos, na ordem social, é que nós vivemos um ritmo muito intenso, um ritmo que impossibilita o pensamento, impossibilita que possamos minimamente olhar para dentro. Vivemos respondendo expectativas, muitas vezes, exageradas. Dar tempo ao tempo, respeitar as fases da vida, respeitar o tempo do pensamento é bastante importante. Eu acho que é isso que eu consigo dizer, acho que é isso que eu percebo de mim.

OC: Norval Baitello Júnior é um grande teórico da comunicação. Uma de suas problemáticas é acerca do corpo sendo transformado em número, quando se trata das chamadas mídias digitais. Em seus textos vemos que você compartilha da mesma ideia. Assim, quais estratégias podemos ter nesses meios em que respiramos competitividade e produtividade para que corpos, e principalmente vidas, não sejam tratadas como número? Ou melhor, como vencer o efeito desrealizador do número nesses ambientes?

Ana Cristina: Norval Baitello Júnior é um dos grandes professores com quem tive a honra de aprender. Ele foi da minha banca no doutorado. Trabalha a história das imagens e diz que não é possível definir imagem. Quem é da área sabe que é bem complicado definir imagem. Se vocês olharem no dicionário, tem quinze acepções para a palavra “imagem” e algumas são contraditórias. Há alguns anos, o Professor Norval lançou o livro A era da iconofagia, em que afirma que as imagens estão nos engolindo. Vejam só esse período que vivemos. Estamos dentro de uma caixinha, e não podemos nos encontrar pessoalmente. Isso não diz respeito apenas ao Covid-19. A pergunta diz respeito a estratégias, a como podemos lidar com esses ambientes competitivos e de produtividade. Eu só vou fazer um reparo. A produtividade não é ruim necessariamente. Ruim é o produtivismo, quando a gente é compelido a viver apenas para produzir o máximo possível, correndo atrás de números. Como não ser um número? Eu entendo muito bem a inquietação na pergunta. Eu estou junto nessa cisma. Cito um teórico da comunicação latino-americana, o Jesus Martin Barbero. Ele nos lembra que o fato de existirem grandes corporações e um capital financeiro não significa que nós somos manipulados. Nós somos sujeitos. Vamos entender isso e nos colocarmos como não manipuláveis – é fácil de falar! Mas assumir a posição de sujeito é importante, por mais que sejamos oprimidos e cada vez mais diminuídos, especialmente as ciências humanas. Infelizmente, nós temos políticas públicas de encolhimento da educação. Não é apenas uma ausência de política pública para educação. É a presença de uma política pública que quer encolher a universidade, transformar a universidade em resposta à ansiedade do mercado. Mas nós estamos nesses jogos de poder, me referindo a Foucault novamente. Nós podemos jogar nessas relações de poder. Há grupos que são dominados de uma tal forma que não conseguem entrar nas relações de poder, pois para jogarmos o jogo, para fazermos alguma pressão ou resistência temos que ter alguma liberdade. Se nós temos grupos que são dominados de modo que não conseguem entrar nos jogos de poder, temos de nos voltar contra isso. É uma questão humanitária. Nós temos que lutar para que todas as pessoas possam estar nos jogos de poder, já que esses jogos constituem a humanidade. Voltando à pergunta sobre o que fazer para não virar número? Lembrar que somos seres da natureza. Investir em cultura e arte. Claro que é mais fácil falar do que fazer. É uma batalha para a vida toda. Mas não queremos ser número, não queremos ser meramente produtivistas, não queremos ser massa.

OC: No seu artigo “Em rede e à margem: Ecologia, Comunicação e Sexualidade”, você tem como objeto de estudo sexualidade, comunicação social e cultural e ecologia. A hipótese do artigo pretende mostrar que ecologia, comunicação e sexualidade tramam um espaço em comum. Fale um pouco sobre cada um desses objetos de estudo. Como esses objetos foram formados dentro de binarismos que contrapõem masculino e feminino e emissor e receptor?

Ana Cristina: Eu escrevi esse artigo por perceber em minhas leituras algo em comum nas críticas dos ecologistas, em certas vertentes da comunicação e nos teóricos da sexualidade. Tanto ecologia, quanto comunicação e sexualidade criticam binarismos, polarizações, que seriam limitadores e normalizadores do seu campo. O período da modernidade iniciada no século XVI no ocidente originou a concepção moderna de ciência, que instituiu a natureza como um outro em relação ao homem. O homem cientista seria o sujeito do conhecimento, e a natureza fora dele o objeto do conhecimento. A natureza precisaria ser conhecida para ser dominada e para ser revertida em benefício ao homem. Vejam que esse pensamento da natureza como objeto serve ao homem. Em acréscimo, o entendimento de que a natureza é inesgotável, como se não fosse acabar nunca, como se fosse um recurso gratuito que precisa ser conhecido e explorado. Não é coincidência que hoje nós temos pessoas, inclusive governantes, que acham que podem avançar com os tratores sobre Amazônia, sobre as terras indígenas, como se aquilo fosse nosso e tivéssemos todo direito de dispor. A natureza transformou-se em objeto de dominação e vejam que interessante essa concepção. Ela simplesmente esquece e encobre que nós também somos natureza. Nós somos natureza, nosso corpo é natureza, porém temos toda uma história que nos coloca como alma, como etéreos, transcendentes. Junto com tudo isso nós temos o Cristianismo, que produz uma inflexão na história do ocidente na medida em que diz que o que importa está além da vida. Vem da Bíblia uma certa leitura da criação, de que tudo foi criado para o homem, de que a espécie humana estaria no centro da criação. Juntamos essa premissa com a premissa da modernidade e temos o caldo que constitui o pensamento que é hegemônico até hoje. Nós somos o centro da criação e a natureza é o objeto do qual podemos dispor da forma como quiser. Chamamos de antropocentrismo, o homem no centro. Há pelo menos dois séculos os ecologistas se contrapõem a esta oposição entre cultura e natureza. Nós somos natureza e não podemos abrir mão da natureza. A natureza não está aí disposta para o meu uso, esse é um ponto. Já a comunicação como campo de saber foi instituída no período das guerras mundiais na primeira metade do século XX. Ela foi instituída como campo porque as guerras mostraram dramaticamente a importância dos sistemas informacionais. A guerra fez a tecnologia do rádio avançar bastante na comunicação a distância. Tem coisas que os mecânicos das mídias daquela época pensavam que, de certa forma, anteciparam o que vivemos hoje como, por exemplo, a internet. As tecnologias se desenvolveram bastante para que fossem usadas na guerra, porque a informação fazia parte das estratégias. Quem tinha informação tinha poder e maior chance de vencer as batalhas. Essa compreensão foi muito usada pela publicidade logo na sequência das guerras. Foi usada como força de manipulação, porque as teorias da informação passaram a ser estudadas junto com a psicologia de massas, para conduzir o público urbano cada vez maior a certos comportamentos de consumo. E foram usados também esses estudos na política, evidentemente, no entendimento de que uma boa emissão de um certo conteúdo poderia conduzir as massas. E aí facilmente vamos lembrar das lições de história do fascismo e do nazismo, na Itália e na Alemanha, movimentos autoritários, como Vargas no Brasil. Todos eles com grandes oradores que usavam o rádio, usavam as artes, usavam os meios de comunicação disponíveis de forma excepcional para procurar conduzir o povo. Estou usando exemplos do passado, mas esse pensamento binário em relação ao meio ambiente, à comunicação e à sexualidade é hegemônico hoje. Ele não está no passado. Os jovens se enganam muito ao acharem que as novas tecnologias os afastam desse tipo de controle. Na Pedagogia essa teoria informacional resulta num contrato pedagógico em sala de aula. O professor tem um conteúdo que precisa ser transmitido para o aluno. As pessoas acham que basta gravar um vídeo e com isso a aula é dada. É um entendimento de comunicação que tem desdobramentos, por exemplo, para o sistema educacional, até hoje. Que entendimento de pedagogia tem nas instituições de ensino que estão fazendo aulas pelas vias tecnológicas? É uma pedagogia tradicional que acha que é apenas transmitir um conteúdo e fazê-lo chegar a um receptor. Assim, confundimos conhecimento com informação e isso traz uma série de problemas. No que diz respeito à sexualidade, Michael Foucault observou que a palavra sexualidade passou a ser utilizada como saber de vigilância dos corpos para estabelecer o que é o normal. Foucault tem estudos sobre a prisão, escola, hospital, que são instituições que estabelecem a conduta normal. Para aqueles que não são e não conseguem ser normais, a prisão ou hospício, instituições punitivas e que não reconhecem a humanidade de seus internos. Para estabelecer o normal dentro da sexualidade, a ginecologia nasce no século XIX junto com as ciências humanas. As ciências humanas também fazem parte desse contexto de colocar o homem como objeto de investigação. Foucault fala isso no livro As palavras e as coisas. A partir do momento em que o homem se transformou em objeto, sua sexualidade também foi vasculhada. Até hoje nós falamos bastante de sexualidade, não porque somos libertos, mas sim porque é uma fala normalizadora. Para que esse saber vigente diante dos corpos fosse possível, temos também de conhecer, dominar e estabelecer o que é normal dentro da sexualidade. E é com isso que aprofundamos a distinção entre ser homem e ser mulher, associando ser homem e mulher com masculino e feminino, com condutas heterossexuais e homossexuais. A conduta heterossexual só faz sentido se se contrapõe à do homossexual. Vem daí a conduta do homem hétero, aquelas coisas de não vestir rosa “porque isso é coisa de bicha”, “não vou fazer tal gesto porque isso é coisa de gay”, “eu não posso dar banho no bebê porque isso é feminino” etc. É o pavor da vigilância contra aquilo que seria uma conduta homossexual que estabelece o cerco do que é heterossexual, revelando também a misoginia, o pavor do feminino. O que eu estou querendo dizer com esse exemplo? Os binarismos funcionam sempre em par, um em relação a outro. Se não houvesse o homossexual não haveria o heterossexual. Não temos parâmetro de alto se não for o baixo. Não temos parâmetro de escuro se não for o claro.  Parece que nós precisamos dos binarismos. Nós lançamos mão de binarismos para que as coisas possam ser separadas e compreendidas. Talvez seja uma limitação nossa. É mais fácil entender separando, usando o método cartesiano, pelo menos para nós ocidentais. Talvez seja uma limitação do ocidente. A análise já é algo que separa em elementos para que aquele todo possa ser compreendido. Mas será que se eu separar meu corpo, por exemplo, em partes, ele é entendido como todo? Tem aí um limite do nosso tipo de pensamento. Esse raciocínio leva às polarizações em tudo. Por exemplo, se você não apoia o Presidente da República você é de determinado partido e se você não apoia um determinado partido é porque você apoia o Presidente da República. Parece que não tem outros partidos, outras possibilidades. Nós funcionamos por polarizações. Na teoria da informação, ou se é emissor ou se é receptor, ou se é humano ou se é selvagem, ou se é homo ou se é hétero, ou se é lésbica ou se é hétero. A nossa cabeça funciona assim. Se eu falo que eu não sou lésbica, eu tenho certeza que tem gente que vai falar “é sim”. Façamos um exercício de pensar um mundo diferente, não sujeitos e coisas, não sujeito e objeto, não homo e hétero, não eu aqui na minha cultura e a natureza lá fora, longe, na Amazônia perigosa e selvagem. Cada um de nós depende do outro e depende da natureza. Elos de vida que não são hierárquicos. Não é o homem que domina a natureza. É um sistema de vida codependente. A vida não tem cabimento na polarização, não cabe no binarismo. Na comunicação irei usar a figura do rizoma de Deleuze, que é um emaranhado que não tem fim nem começo. O rizoma é uma espécie de bulbo das plantas que nunca tem o mesmo formato, uma coisa meio feia. Qualquer parte que você tira e planta, ela nasce. Essa é a ideia do rizoma. Nós vivemos em emaranhado. Imaginem isso na comunicação. Qualquer ponta do rizoma pode lançar todo um universo, pode lançar todo um mundo, não tem fim nem começo. Qualquer ponta ou signo pode começar uma nova conexão, e não é hierárquico, não determina comportamentos. Na sexualidade usarei um exemplo. Por que a pessoa trans incomoda tanto? Temos muito a aprender com as pessoas trans. Elas podem ser homens, podem ser mulheres. Nem toda pessoa trans quer ser homem ou mulher. Tem pessoas trans que querem estar no meio, querem ser isso e aquilo. Por que incomoda tanto uma pessoa que você encontra na rua e você não consegue determinar instantaneamente se é homem ou mulher? Uma hipótese rápida: incomoda porque a pessoa trans mesmo sem saber está questionando toda a base que constitui nossa ordem social, porque nossa ordem social é construída por binarismos. Uma pessoa que não quer se definir incomoda, pois nós precisamos de previsibilidade, precisamos encaixar as pessoas em certas posições para manter nosso mundo ordenado, para manter nossa identidade acomodada. Então há algo em comum na ecologia, na comunicação e na sexualidade. Ecologia, comunicação e sexualidade têm produções hegemônicas, binárias e têm produções não hegemônicas que questionam isso. E essas produções que trans-formam, a ecologia profunda, na comunicação os rizomas, teorias contemporâneas juntas, estão propondo um outro mundo, um mundo que não é hierárquico, mundo que eu sou natureza e cultura ao mesmo tempo. Vejam a força do “e”. Estou cada vez mais simpática a essa conjunção. Quando eu falo comunicação e multimeios não é só comunicação ou só multimeios, é a relação dos dois. Quando eu falo que sou natureza e cultura não é só um ou outro, mas eu sou algo que relaciona natureza e cultura, e isso não tem muito cabimento no modo tradicional em que fomos formados. E por isso é subversivo. Se pensássemos assim, certamente sugeriríamos outras coisas na história desse mundo. Pensem o que seria isso na política, uma política não hierárquica. Talvez tivéssemos uma democracia de fato. O que seria isso na ciência? Uma ciência que não pensa sujeito e objeto, mas pensa em sujeito e sujeito. Por isso, quando investigo determinado grupo, eu serei investigada também. E tanto eu quanto o grupo vamos aprender um com a presença do outro. Um interfere no outro. Conhecimento é feito de sujeito a sujeito. Posso testemunhar como professora que quando preparo aula aprendo mais que os alunos. Os alunos fazem perguntas que me fazem ir atrás. O próprio movimento das gerações me faz movimentar. A relação professor-aluno certamente é uma relação sujeito-sujeito. São mentes produtivas envolvidas, dois saberes em diálogo. Foi isso que eu pretendi minimamente mostrar no artigo citado na pergunta, como nós temos campos distintos de saberes, que estão problematizando filosoficamente as mesmas coisas, dicotomias, e o que isso propõe para nossa sociedade.

OC: Em seu texto “A história da comunicação e os desafios educacionais em época de internet” você questiona até que ponto a escola acompanha as mudanças na relação dos jovens com os suportes midiáticos. Considerando nosso presente contexto em que as escolas vinham se colocando, por uma questão de saúde pública, de modo exclusivamente digital, como você avalia os possíveis impactos dessa “nova” relação escola-aluno?

 

Ana Cristina: Talvez, a primeira coisa que eu deva dizer é que estamos em processo de avaliação. Por isso, vou tentar compartilhar algumas coisas que tenho pensado e aprendido neste momento. Não é de hoje que tenho pensado nisso, por atuar na Comunicação e ter visto a educação a distância surgir na UEM. Logo, não é de hoje que pensamos nessas questões. Mas estamos atrasados. Essa situação poderia ter nos alcançando com um pouco mais de preparo.  As instituições foram um pouco negligentes, devemos reconhecer isso. Por necessidade maior, por uma necessidade de preservação da vida, as escolas estão fechadas, e isso é inquestionável. Lembro-me do texto de uma colega, no qual ela questiona o que significa isso, qual foi a última vez no ocidente que as escolas estiveram fechadas dessa forma. Nós temos como continuar nosso contrato pedagógico com a tecnologia disponível? Todos têm acesso a essa ferramenta que estamos usando agora, todos possuem boa conexão com a internet? Hoje mesmo vivi um momento de ansiedade antes do nosso compromisso, na dúvida se haveria ou não conexão. Nós geralmente pagamos gato por lebre e as queixas de conexão ruim são muito comuns. Todos têm conexão, celular ou um computador para exercer as atividades? Não. E isso já nos coloca uma questão muito importante. Muitas vezes os governantes, as pessoas que possuem cargos, até mesmo professores, acham que só a questão de ter acesso é preciso ser resolvida. Como já disse, eu acho estranho que abruptamente algumas escolas não perderam tempo e já obrigaram os professores a gravar aulas em vídeo como fosse só despejar conteúdo para os alunos. E começamos a ter relatos de como tem sido isso em casa com pais e mães que estão acompanhando essas crianças e adolescentes. Que tipo de aprendizagem é esse? Não é o conhecimento que importa e sim fazer a informação chegar. Os alunos estão aprendendo? Temos que pesquisar isso. Aproveitar esse período e fazer pesquisas educacionais, mais do que nunca, para avaliar o que está acontecendo. Não podemos responder irresponsavelmente, é necessário pesquisar. Os relatos que temos, a princípio, é de que pessoas preocupadas com a economia querem que as escolas funcionem. Na experiência das aulas remotas, a maior parte do público tem suas câmeras desligadas. Não interagem e bem sabemos como é essa situação. Boa parte das pessoas escuta de forma fragmentada, geralmente fazendo outras coisas ao mesmo tempo. Que pedagogia temos aqui? Se o professor já sabe a guerra que é lidar com o celular em sala de aula, eu fico imaginando o que as pessoas estão fazendo, de que forma aquilo que eu estou falando e fazendo está chegando às pessoas. Esse formato de aula atual é dramático. Tem um historiador da literatura, Roger Chartier, que escreveu há 20 anos mais ou menos um texto chamado Do códex à tela.  Ele já percebia que passávamos para um modo de leitura em tela. Nós temos uma cultura livresca associada à mídia livro, que é uma ótima mídia. O que significa passar de séculos de cultura livresca para tela? Isso tem consequências, e nós não pesquisamos o suficiente para realizar essa transição. Tenho a impressão de que já estamos com um imaginário voltado – e eu percebo muito isso nos alunos – a um desprezo da mídia livro em prol da internet, a esse suporte que é eletrônico, elétrico e mecânico, como se fosse melhor. Existem novos hábitos de estudo aí, um novo formato de leitura, com consequências que não foram bem estudadas, e estamos fazendo essa transição no escuro. Não nos preparamos. Sabemos que escolas privadas não querem perder seus clientes e querem manter o calendário. Nosso compromisso é com o que? Estamos formando na universidade apenas para o mercado? O que fazemos nesse período de pandemia também é educativo e eu sou muito orgulhosa de estar na UEM, pelo fato de a universidade ter investido tempo na reflexão. Sabemos que, inicialmente, as aulas foram suspensas. Uma decisão com argumentos interessantíssimos. Esse período propiciou um mínimo de preparo para a relação pedagógica remota com menos prejuízo. Se tivéssemos passado abruptamente a ter aulas remotas, o prejuízo seria muito maior para alunos e professores. Temos relatos hoje de estresse, ansiedade e cansaço. Colegas de faculdades privadas relatam o cotidiano de gravar aulas para inúmeras turmas, e isso não garantiu o emprego de muitos deles.  Lembro-me do cinema-arte, que tem aqueles planos longos, com tomadas de câmera lenta ou parada, que duram um minuto ou mais, que é insuportável para a maioria das pessoas.  Elas perguntam porque aquilo não é cortado. Provavelmente o diretor quer que fiquemos parados naquele momento para pensar, contemplar. Temos de refletir porque vivemos correndo e produzindo como numa narrativa hollywoodiana, que são muito rápidas, que não nos dão tempo para pensar. Você sai do cinema do shopping e vai comer seu cachorro-quente e esquece do filme. Ele foi só um passatempo. O chamado cinema-arte trabalha o tempo, traz até mesmo o incômodo com o tempo e com a própria vida. Essas tecnologias que estamos utilizando agora são usadas, geralmente, pelos jovens, para o entretenimento. Que chances isso tem de dar certo? Já existe um hábito de uso dessas mídias com 30 janelas abertas, 3 mídias ao mesmo tempo, um fazer simultâneo. Com essa mídia, com esses hábitos, saltamos a um contrato pedagógico. O fato de ser usada como entretenimento significa sem foco e de modo dispersivo. E estamos fazendo isso sem o todo dos corpos, sem estar presentes, sem precisar falar “por favor”, “com licença” e “obrigado”, sem os cheiros, sem os olhares e sons ambientes. E todo professor sabe como isso é importante. Essa situação de sala de aula de co-presença nos ensina a estar presentes em uma situação comum. Isso é fundamental para a democracia porque nos ensina a escutar e a estar presentes com outras pessoas. Eu não posso responder ainda sobre o impacto. Eu posso sim dizer que precisamos refletir e pensar muito, tendo como premissa a educação que queremos. De minha parte, nunca penso nos meus alunos sendo formados somente para o mercado. Antes, formamos para cidadania, humanidade, comunidade. É esse tipo de educação em que penso e acredito. Não se trata de assumir uma posição conservadora, não se trata de ser contra a tecnologia que está aí. Mas essa tecnologia foi apropriada por sistemas de uma certa ordem social que é injusta e mercadológica. A culpa não é da tecnologia, mas os modos e hábitos que temos com ela são coerentes com nossa sociedade, nossas instituições políticas, o mercado que temos. Se queremos algo diferente, precisamos fazer algo diferente. Hoje utilizamos aparelhos celulares e internet de grandes conglomerados. Nossas ações são configuradas por empresas e elas estão a nos configurar. Isso é muito grave. Estamos agindo de acordo com esses aplicativos. Assumimos as dicas que aparecem na internet. Os alunos acham que procurar no Google é suficiente, que a consulta ao professor não é necessária. Então nós usamos mídias e softwares que estão configurados e nos configuram.

OC: Em 2019 você foi convidada a discursar na colação de grau da Universidade Estadual de Maringá, e seu texto causou reações favoráveis e contrárias e também ecoou para além daqueles que estavam presentes. Como foi para você a experiência da repercussão do seu discurso na formatura?

Ana Cristina: Quero dizer que ser paraninfa geral foi uma enorme honra. Sempre serei grata aos alunos que me propiciaram aquela situação. Era fevereiro do ano de 2019, ou seja, início do atual governo. Ainda estávamos no clima da eleição. Alguns eufóricos e outros em agonia. Um ginásio com milhares de pessoas. Considerei que estava ali como símbolo, professora, mulher, vinda de família brasileira pobre e misturada, lésbica e por aí vai. E lá vou eu com uma camiseta escrita “Meu corpo é político”. Segurava dois livros, “Brasil nunca mais” e “Grande Sertão Veredas”. Não estava preparada para tantas vaias e aplausos. Mas eu não ando só. Minha bisavó xavante e meu avô negro estavam ali, e, parafraseando Guimarães Rosa, o que a vida quer da gente é coragem. Eu sou uma pessoa discreta e tímida. O tempo mostrou para certos maledicentes que eu não quero me candidatar a nenhum cargo. Eu sou uma professora, uma mulher comum. Eu digo isso porque as consequências de se tornar assunto, mesmo que regionalmente, podem sugerir pensarmos na nossa atuação nas redes sociais e nos julgamentos que fazemos das pessoas. Para quem não sabe, fiz um discurso crítico em Maringá em um ginásio lotado. As reações formaram um espetáculo, prós e contras se expressaram vivamente. Quero dizer que quando aquele estrondo começou me deu muita força olhar para os alunos que estavam de beca e ver que a grande maioria deles estava me apoiando. Eu precisava ser voz para aquela juventude, era para isso que estava ali. Eu estava exposta na fragilidade de meu corpo, mas ali senti a potência da união, a potência do precário. No final da cerimônia, algumas pessoas vieram falar pra mim que não era para voltar sozinha para o carro. Depois fui reconhecida na rua diversas vezes por pessoas simpáticas e outras com olhares não tão simpáticos. Pelas abordagens simpáticas, descobri que naquele dia famílias brigaram. Fui alvo de hostilidade por uma figura pública. Os ataques eram pessoais nas redes sociais, falando da minha roupa, do meu cabelo, me desqualificando. O texto do discurso repercutiu muito nas redes sociais. Parei de olhar os comentários, pois a sensação para uma pessoa comum é muito desgastante, muito tensa. Eu não tinha controle dessa repercussão, mas sei que repercutiu para lados opostos. As redes sociais amplificam certas coisas, não de acordo com a enunciação do discurso, mas de acordo com a sociedade que nós temos. As simpatias e os ódios não vieram do texto ou da pessoa que eu sou. Foi um evento que possibilitou o eco de uma série de emoções que a nossa sociedade vivia ali de modo ainda mais intenso que hoje, pois hoje as coisas estão um pouco mais claras nesse aspecto. Enfim, o episódio diz mais sobre quem somos do que sobre quem eu sou. É interessante mencionar que boa parte não leu o texto, criticaram sem ouvir ou ler – já que o texto foi divulgado nas redes. Não se trata apenas de qual é a leitura de cada um. Muitos não leem ou leem apenas o que é aparente para repetir aquilo que já sabem e isso acontece de todos os lados do espectro político. De novo focaram muito na minha aparência, no meu corpo, no que ali eu representava. Por que isso incomoda tanto? É evidente que se ali estivesse um homem, branco, vestindo paletó e gravata, enunciando o mesmo discurso, a reação seria diferente. Fui surpreendida pelos apoios. E nem sempre são os colegas e amigos que apoiam. Enfim, precisamos pensar as redes sociais como praça pública e ter responsabilidade. Essa rapidez e esse fluxo contínuo das redes não combinam com o pensamento e nos faz errar. Definitivamente o corpo é político. O modo como nós nos revestimos, óculos, camiseta, maquiagem, o jeito do cabelo, o corpo é político e incomoda demais. Foi uma grande experiência de coletivo, que me fez aprender muito e, por fim, me fortaleceu. Um presente que recebi da vida.

OC: Lendo o discurso da colação de grau de 2019 e levando em consideração o contexto do governo atual e quando ainda se podia sair de casa, sabíamos que era extremamente importante ocupar lugares com nossos corpos que até então era dito para nós que não podíamos. Como fazer isso em tempos de pandemia?

Ana Cristina: Eu acho que já falei de como eu acredito na força da presença dos corpos nas ruas, nos espaços públicos. Não é à toa que os poderes hegemônicos, historicamente, trataram de deixar os pobres na periferia, os brancos nos filmes, os gays no armário. Quando corpos marginais ocupam espaços públicos isso gera reboliço, medo. Os grupos de poder têm medo dos marginais. Eu já participei de algumas passeatas LGBTs, algumas aqui em Maringá, e é incrível compor um grupo de trans, de pessoas loucas, coloridas, saindo de frente da prefeitura e caminhando até o estádio, passando pelas avenidas centrais. Você vê apoio e muita hostilidade nas janelas dos prédios. Quando as pessoas resolvem fazer passeatas nas avenidas que são feitas para carros, alguns motoristas ficam ensandecidos. Quando a comunidade da UEM para a [Avenida] Colombo por cinco minutinhos, os caminhoneiros, os motoristas ficam muito raivosos. Se a rua pública não é o local do público, então o que a gente está fazendo? O que a gente está vivendo? Eu moro perto do Bosque Dois, que é um lugar elitizado. Vejo muito bem quem caminha naquele bosque. Não são os pobres da periferia. Então o espaço público é público? Mais ou menos. Ele não foi pensado para a maior parte da população. O corpo nesses espaços fala muito. Judith Butler tem um livro em que trata justamente desta questão: a importância dos corpos em assembleia, os corpos juntos, os corpos dos precários, dos pobres, dos negros, dos refugiados, dos LGBTQI+. Esses corpos, ao aparecerem, mostram e denunciam a sua precariedade. Ao mesmo tempo, juntos, em praça pública, constituem uma incrível força e dão medo. Se fala que vai ter uma passeata na Avenida Paulista, em São Paulo, enche de policiais. Por anos a fio, como a Rede Globo anunciava a passeata LGBT? Informando que uma bomba explodiu no Largo do Arouche, que teve uma dezena de furtos. Aí eu pergunto se não tivesse a passeata quantos furtos ocorreriam na Paulista. Isso ninguém fala. Eles normalmente dão a notícia do que aconteceu de ruim, e sempre acontece muito mais coisas boas. Em São Paulo, são milhões de pessoas distintas juntas na rua. E aí normalmente vira notícia quando acontece algum problema. Daí vemos como o poder instituído tem medo dos corpos juntos. Mas e agora em época de pandemia, o que podemos fazer? Em primeiro lugar, lembrem do cuidado de si de Foucault, cuidar de si (ler um livro!) e cuidar dos outros. Temos as mortes por conta da pandemia, algo mundial que essas gerações não tinham vivido. E temos mortes por má gestão, por descaso.  Precisamos reconhecer que confinamento é necessário, mas é privilégio. Há quem fique condenando pessoas que estão nas ruas. Eu sei que tem gente que está onde não deveria estar, mas tem gente que sai para trabalhar ou está trabalhando, inclusive, para levar comida a quem está confinado. Para que eu possa estar aqui confinada tem agricultor trabalhando, tem caminhoneiro, tem as pessoas do mercado. Nem todo mundo está na rua porque quer. Muita gente precisa trabalhar de manhã para comer à noite. Quem ouviu essa entrevista ou a lê publicada forma um público qualificado, pode escutar, pode ler. Nós temos um olho. Refiro-me ao Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, que nos faz pensar sobre a responsabilidade de ter olhos em terra de cegos. Precisamos filtrar as notícias, ter muito cuidado com notícias falsas. Há muita gente qualificada que continua reproduzindo fake news. Se você não pode checar notícia, não reproduza, não compartilhe. Precisamos, também, limitar nossa conectividade, estabelecer um número máximo de horas. Até para dar tempo de apoiar quem está próximo. O pequeno que está do lado. Solidariedade com quem está ao lado, com quem chega perto da gente, com o vizinho. Olhar para o lado. Contatar amigos. Eu acho que é o momento de parar e pensar como está minha casa, o que eu estou fazendo. O que tudo isso importa para o meu corpo, para o meu próximo, que está próximo de mim e para o bem comum. Constituímos comunidades na rua, no bairro, na escola, universidade, igreja. A partir dessas comunidades é que nós podemos pensar em constituir uma organização social. Quem sabe diferente da que temos agora. Fazer um pão para o vizinho pode ser melhor para o mundo que engrossar a rudeza das redes sociais. É o que eu consigo dizer, mas também estou em pensamento, estou aprendendo, é claro! Estou compartilhando com vocês um pensamento em movimento. Temos que fazer isso, reflexão e pensamento sobre o que estamos constituindo agora. Como está meu corpo aqui, que mundo estou ajudando a constituir. Eu acho que é isso.

 

Um comentário sobre “Entrevista Especial X – Ana Cristina Teodoro da Silva (UEM)

  1. Profa. Ana Cristina. Li (ainda sem a devida acuidade) seu texto. Nesse tempo que torna cada vez mais exíguo nossas incursões teóricas (na universidade e fora desse microcosmo também) mesmo essa “leitura de sobrevoo”, despertou em mim, muitas inquietações. Do início ao fim, provoca a inteligência humana e o afeto (na busca de “novas saídas” ou de “novas entradas”, isso ainda não sei!). Agradeço por compartilhar seu “pensamento em movimento”. Belo! Belíssimo texto. Um abraço. Cris Cavaleiro. 02/02/2020. Em tempo: Ao Grupo Gênese, parabéns pela elaboração da entrevista (um roteiro provocante) e sua publicação!

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